31/10/2008

a bica

corre, sempre a esperar-te
a água da bica
para que você venha
e lave teu rosto criança

tomada a atitude
ela seguirá no fluxo normal
levando para onde você não sabe
teus sonhos da noite dormida
vicente filho

desarmonia

O romancista é um poeta desgraçado.
Condenado a sua infalível pantomima
Gesticula abarcando sua infindável solidez
Somente com olhos, argutos - acima de tudo, perenes.
É um espantalho carcomido pelo martírio
de ser incapaz de dizer
Coisas.

É a um só tempo verme e coveiro, criatura emblemática
Onde a carência de gestos apenas lhe curva as costas.
É, portanto, desses seres capsulares.
Casulo de seda amparado por brocas.
E, talvez, bocas.

Satisfaz-se com ínfimas atribulações
mas permanece sentado, alvejando
A blindagem sagrada do tempo com vicejante suavidade
caminhando, sabe deus, com que tez altiva e mole
molestando a carnavalesca desordem das impossibilidades.
Curiosa engrenagem de instinto subjugada pela vergonha
de saber-se inconciliável com
Suas verdades.
Somente a concisão lhe impressiona.

george saraiva

28/10/2008

o lado B da feira do verde

Têm sido realizadas, no restaurante “Sol da Terra”, Centro de Vitória, reuniões para a organização de um espaço alternativo na Feira do Verde.
Será um espaço de contraponto ao marketing social e ambiental, no qual as grandes empresas transformam a Feira. Até o momento têm participado membros da Brigada Índígena, do Coleduc - Coletivo Educador Ambiental, FASE, Fórum de Entidades do sul do estado e inúmeros outros militantes e entidades (cerca de 20 pessoas).
A Feira do Verde começa no dia 10/11 e será realizada na Praça do Papa.
Um ponto que tem se feito presente nas reuniões é o cuidado com o caráter da intervenção de um movimento alternativo e contestador, crítico e emancipatório, num evento eminentemente institucional. Afinal, fomos convidados e concordamos em participar de um acontecimento onde vão estar presentes grandes empresas poluidoras de nosso estado, ou melhor, um evento onde o discurso maquiado dessas empresas acaba por prevalecer.
Nesse caso, a saída mais lógica seria ir direto para o enfrentamento e o questionamento explícitos, contundentes, desse discurso e dessas práticas preservacionistas e reducionistas, que tentam direcionar o problema da degradação ambiental para questões meramente técnicas, numa visão fragmentada, distorcida, que inclusive procura sutilmente passar a mensagem de que os cidadãos têm a mesma culpa das empresas e dos governos e de que as pessoas - enquanto indivíduos e não enquanto coletivos - teriam o poder de mudança e reversão do problema ambiental. Vide o slogan da Feira: “Somos todos responsáveis...”
Mas foi observado que o enfrentamento radical poderia não ser a estratégia correta, pois poderíamos perder o espaço conquistado no território do próprio adversário, ou seja, poderíamos dar motivo para que, no próximo ano, não nos fosse permitido participar da Feira. Além disso, seríamos mal interpretados pelo imenso público que comparecerá à Feira, já que essas pessoas não têm, no seu cotidiano, acesso às reais informações do que se passa com relação à degradação ambiental e, possivelmente, não estariam preparadas para absorver tantas informações contraditórias e de forma tão contundente - o que seria certamente bastante explorado pela mídia conservadora e submissa ao grande capital.
Diante do impasse, falou-se na possibilidade de desistirmos dessa participação pois, nos tornando reféns do ambiente de moderação e distorção dos fatos, correríamos o risco de: a) contribuir para a construção, junto ao grande público, de uma imagem negativa do movimento ambiental autônomo e emancipatório ou b) perder nossa própria identidade e até mesmo a credibilidade que conquistamos enquanto movimento autônomo e combativo, enfim, iríamos “queimar o nosso filme” durante a Feira, seríamos domesticados, cooptados, neutralizados pelo aparato que dá sustentação ao atual modelo de produção e consumo.
Por fim, decidiu-se por uma participação que, mesmo sem partir para a contestação pública e radical, provoque uma espécie de tensão interna durante o evento. Ou seja, a idéia é procurar envolver o grande público, atrair, de forma inteligente e criativa, as pessoas para o espaço de nossos debates, palestras, denúncias – e também mostras, vídeos, fotografias e apresentações culturais de raiz, que não sejam massificantes e alienantes.
Assim, estaremos fazendo a disputa interna e política das mentes e corações que passarem pela Feira, de forma equilibrada, com a possibilidade de conquistarmos cada vez mais espaços de atuação na Feira do Verde – e quem sabe até mesmo subverter, no futuro, os propósitos desse que já é dos maiores eventos de meio ambiente do Brasil. Mas isso, claro, sem perder a autonomia e a coerência entre nosso discurso e nossa prática.
Por falar em autonomia, uma das entidades parceiras, a Brigada Indígena, optou por nos apoiar e desenvolver atividades conjuntas, mas sem que as suas manifestações e estratégias de atuação ficassem a reboque da nossa intervenção na Feira. Em suas intervenções a Brigada Indígena sempre opta por manifestações mais contundentes, enfrentamentos mais radicais, sem cair na agressão física ou na destruição de patrimônio. Veremos o que os companheiros da Brigada reservam neste ano para nós, para o grande público e, claro, para os grandes responsáveis pela degradação ambiental.
Ainda sobre o Lado B da Feira do Verde: estarei publicando em breve a programação completa das atividades, assim que a mesma estiver concluída.

27/10/2008

eternas... - roberto soares

Um de meus poemas, lidos durante o encontro "Poesia ao Vivo" - a leitura foi feita pela atriz Cristina Garcia.
eternas ternuras desencontradas
moça dançarina manhã.
tudo então lhe revelado
o êxtase explodiu sábado
na fronteira da noite com o dia
entre o baile dos clubes e becos
e o piquenique dos ônibus e campos.
domingueira. toda. úmida.
“as veias túmidas de ser.”

embora o fruto tenha sido
colhido
lambido
bebido
comido
por um outro, ímpar
embora saiba ter explodido
o caminho antigo:
o par esquecido

embora assim, vai embora
com o par – atrás do novo par!
segui-lo-á por todo o domingo
e por toda a nova e enevoada
trilha do coração
(par-ou-ímpar?)

ecos


meditação no crepúsculo

que obstinação nesta árvore em dar
por dar frutos por todo o pomar.
e que obstinação em virar lenha
no fogo das causas em que se empenha,
negando-se ao discurso enfadonho
que incendeia as pontes para o sonho,
negando-se a ouvir os boletins
de um mundo de inúteis galarins,
e renegando o homo-hierarchicus
com todos os seus cânceres tão práticos,
rasgando a pele e a carne da aparência
em busca dessa sempre esquiva essência,
e transformando em mantra a vida humana
vibrando nessa consciência una.

(waldo motta, "waw")

19/10/2008

luto - roberto soares

luto, lustro
(cinco anos de 11 de setembro)

olha aí do seu lado
pode ser ele
bin laden
ei, olha de lado
não olha direto

mas onde ele tá
à direita
à esquerda
do lado de lá
do lado de cá?

agora olha lá bin laden
escorregando
nas grutas e ladeiras da ásia
ladino, latino

olha bin laden
bombando todas
bum! bum!
boing! boing!
bom bom?

e olha os doidos dos árabes
orando para bin laden
e lá em cima no norte
a ladainha da morte
o louco balé de bush e blair
envoltos nas bandeiras listradas
por quanto tempo sangrentas
e ensangüentadas?

bin, bin, bum, bum!


ecos

laivos - roberto soares

laivos, lavai-vos


é preciso que a memória
se lave nesses laivos de dourado
que descem escadas de nuvens e pedras
a ondular como carícias aéreas
sobre verdes recém-amanhecidos

(até a dura mãe-montanha
se curva a admirar:
a chuva de ouro matinal
sobre as cabeças das árvores-crianças)

e rasgue como faca
os espessos véus de tempo
rumo a surpresas primevas
e aí erga templos despojados
e precários sustentáculos

antes que a ponte de tempo
se esfume no instante
e que a fome de verbo
de novo ignore a si mesma
e ao alimento aí à tua frente