22/12/2008

"então é natal, e ano novo também..."


Sabemos que a época natalina, há muito tempo, não é mais vivida apenas como momento maior da cristandade. O natal se tornou para todas as pessoas sinônimo de solidariedade, de esperança, de perdão e superação de conflitos. Em parte, talvez pelo fato de ser comemorado tão próximo ao Ano Novo das sociedades ocidentais. A proximidade das datas fortaleceria naturalmente o sentimento de renovação, de fim de um ciclo e início de outro (tal como insinuado no verso da famosa música de Lennon, que escolhemos como título desta postagem). O sagrado e o profano. A memória religiosa e a promessa terrena se encontrando. A celebração anual da esperança de que um dia a Grande Festa ocorra aqui e agora no reino dos homens.

Nem mesmo esta época de desenfreado consumismo e de indiferença e medo entre as pessoas é capaz de desvirtuar ou eliminar completamente esse momento de celebração e de resistência, que chamamos de espírito natalino.

Trazemos então três poemas, tendo como motivo a figura do Cristo, esse que, até hoje no Ocidente, ainda é o símbolo dessa crença, celebração e resistência. Poemas aparentemente amargos, pessimistas, até mesmo irônicos. Mas nem por isso menos tributários da crença e da possibilidade da Grande Festa, nem por isso menos respeitosos para com essa figura-símbolo. Ao contrário, é da sua crença que brota a sua aparente amargura e ironia.


o lamento do ressuscitado
não nasci, não cresci
nem morri de verdade...
até hoje!!!
chorei assim mesmo
sem mais sangue nas veias

é muito complicado ir além
a porta não abre, não abre...
forçá-la é tentativa vã
e pela fresta a fé não vem

nada do que dei fez a festa
o trunfo, sem triunfo
é só um defunto...
vicente filho




fotopoema: madeiro milenar


ei, companheiro crucificado
2000 já veio e já se foi admirado
da abundância de brilhosas bündchens
de bytes & gates, de gatunos & wall streets
e de restos de gente humana exilada
nas ruas capitais
deitadas em escadarias de catedrais salpicadas de bosta


cruz credo! credo em cruz! não
se
acenderam
ainda
as
luzes
de
tuas
árvores

(poema e fotografia de roberto soares - a foto foi tirada em ponta da fruta, vila velha, es)



UMA VEZ bem que o escutei
ele mesmo lavou o mundo, limpou tudo
sem ser notado, a noite toda
efetivamente

Uno e infinito
aniquilado
ilhado

Brilho havia. Luz. Salvação.
paul celan Junto com este poema de Celan, pretendia publicar os comentários de Flávio Kothe, o seu tradutor aqui no Brasil (em sua tradução de “Poemas”, publicada pela Tempo Brasleiro, Kothe comenta todos os poemas de Celan). Mas como estou em viagem não tenho o livro em mãos.
Assim, vou tentar transmitir de memória o essencial dos comentários de Kothe e quando possível publicá-los-ei na íntegra.

É com uma forte ironia que Celan relembra o breve tempo em que pode “escutar”, em que pode acreditar numa redenção da humanidade advinda da fé ou da abnegação cristã. Mas apesar da gradual descrença e do desespero - mesmo em relação à ação política e à própria possibilidade da vida (Celan se matou em 1970) - a figura do Messias mantém o seu fascínio para Celan: o Cristo como poeta que assume para si o louco e absurdo projeto de se imolar em nome de uma tarefa que ele sabia fadada ao fracasso, ao menos em termos imediatos. Mas mesmo assim se aniquilando, se ilhando, anônimo e desamparado, em nome dessa absurda escolha, em nome do projeto de ligar o homem ao divino, de despertar o que havia de divino no homem e de mostrar ao homem o que poderia haver de humano e precário no divino. O poema parece ser uma espécie de acerto de contas de Celan com a sua nostalgia, com o que ainda restava em seu imaginário de fascínio pela figura do Messias, mas um Messias humano, poeta, precário.

04/12/2008

poema inexato a arthur rimbaud

percebi um anjo correndo
quase-luz, fugia lépido
carregando pesados fardos

no chão algumas moedas engraçadas
no fim da linha um brilho esquisito

o anjo nada via
eu notei que devorava as flores
de um jardim intangível e perfeito


carlos ernesto

orvalho

ORVALHO. e eu estava deitado contigo, ó tu,
no meio do lixo
enquanto uma lua suja
nos lançava respostas

nós nos esmigalhamos separando
e novamente embolamos num só:

o Senhor partiu o pão
o pão partiu o Senhor

paul celan ecos

03/12/2008

arte popular: resgate e comunhão

Esse texto pode ser lido como um complemento ao 'A festa da vida nas ruas', relato poético que escrevi acerca da Iª Festa da Identidade Capixaba, ocorrida no último sábado, no Centro de Vitória.
As tarefas essenciais da arte moderna (entenda-se aqui arte moderna como aquela que veio com a Renascença e se consolidou de vez com o Romantismo, não havendo nessa definição nenhuma pretensão de detalhes acadêmicos) são as da crítica e da inovação, da denúncia e da transformação, seja no aspecto estético, político ou social. Ora, ocorre que com o passar dos séculos, essas tarefas foram se tornando cada vez mais complexas e custosas, pelo próprio fato de que a arte havia que acompanhar as também complexas, custosas, ininterruptas e cada vez mais velozes transformações das sociedades ocidentais, provocadas pelo necessário e revolucionário advento do modo de produção capitalista.

Esse processo de acompanhar, compreender ou questionar a marcha da sociedade, se fez com que a arte moderna cumprisse, e bem, a sua tarefa, por outro lado arrastou-a para a mesma complexidade e sofisticação daquilo que ela acompanhava, e com o tempo esse deslocamento inevitavelmente resultou no distanciamento cada vez maior entre artista, linguagem artística e público, ou pessoas “comuns’’ - distanciamento que só fez se agravar com a consolidação da sociedade e da cultura de massas.
No outro extremo permaneceu a arte popular, sem possibilidade de acompanhar esse projeto de conquista da modernidade, mesmo porque não era e não é vocação da arte popular exercer-se como arte moderna, nessa constante preocupação de renovação.

Ao contrário, a sua vocação é a da permanência, da tradição e, embora a inovação seja também própria da arte popular, ela se dá num ritmo próprio, sem submissão a fatores externos, ou seja, ela não tem como preocupação central a inovação a qualquer preço ou por qualquer motivo; enfim, não existem propostas explícitas de inovação e invenção, quando essas ocorrem são consequências de um proceso natural, decantado ao longo de anos e às vezes décadas. Em razão dessa sua vocação para a permanência e a tradição, a arte popular se manteve mais próxima da maioria das pessoas, de suas vivências e de seus formas de expressão.
É uma arte mais próxima das origens, uma arte que soube conservar um pouco dos mitos, da religiosidade e da transcendência próprias do ser humano, sem se deixar envolver pelo transitório e pelo racional.

Assim, é natural que encontros como o de sábado (Iª Festa da Identidade Capixaba) desemboquem numa verdadeira comunhão entre artistas e povo, entre atores e espectadores, é nada mais nada menos do que o resgate de um tempo em que não havia tanta separação, indiferença e desconhecimento mútuo entre os indívíduos e entre as diversas formas de conhecer e estar no mundo (ciência, arte, religião) - um tempo anterior ao advento da cultura de massas. Na verdade, essa comunhão aponta não só para o resgate do passado, mas também para uma promessa de futuro - um futuro para além da cultura de massas.
Nessas manifestações populares ocorre o encontro concreto, sem mediações teóricas, entre arte e vida, entre cultura e natureza, sem preocupações de se definir aquilo que deve predominar.

E, embora não seja uma aspiração explícita, ou reconhecida, esses momentos de fusão com o público são tambérm uma aspiração de muitos artistas da modernidade, um resgate do elo perdido, ou a construção de um novo elo.
Sabemos que as condições históricas atuais saõ de um cada vez mais visível esgotamento do modelo de conquista proposto pelo outrora revolucionário sistema capitalista. E talvez essas condições históricas permitam e exijam o advento de uma arte que consiga realmente unir as características essenciais tanto da arte moderna quanto da arte popular.

Com certeza que, nessa construção de uma nova arte, celebrar junto com a arte popular não significará para o artista moderno abdicar da sua tarefa de crítica e denúncia, de invenção e de enfrentamento. Comungar com o povo e com a arte popular não significa se anular perante as características mais simples e espontâneas dessa arte.
Participar da construção de uma arte assim não significa jogar fora todo o precioso e grandioso acúmulo construído pela arte moderna, em sua incansável tarefa de acompanhamento, interpretação e expressão dos dramas e vivências dos homens da idade moderna.
Nem a arte popular teria que passar a ser mais elaborada, mais crítica ou estar em busca da constante inovação, sob o risco de também se afastar do universo das pessoas.

De qualquer forma, esses encontros mostram que é possível, sim, o resgate da comunhão entre arte e vida, entre ator e espectador, e o artista que quer caminhar na direção dessa nova arte com certeza só tem a ganhar quando dedica mais atenção à arte popular e, principalmente, a momentos mágicos e grandiosos como aquele que vivenciamos no sábado passado nas ruas do Centro de Vitória.
Roberto Soares
Ir para 'A festa da vida nas ruas'

02/12/2008

[o silêncio]

o silêncio tange o
sino de tão
leve ninguém
escuta
mariana botelho
ecos

minas - de ouro e horizontes

Em 1997, em BH, participei de uma criativa oficina de poesia, orientada pelo escritor mineiro Duílio Gomes. Num dos encontros, Duílio pediu que criássemos um poema a partir da palavra 'mariana'. Na ocasião criei o poema abaixo: 'mina mariana'. Por algum tempo fiquei inquieto, achava que faltava alguma coisa.
Depois desdobrou-se nesta trilogia, onde falo de passado, presente e vislumbres ou promessas de futuro, tendo como cenário e fio condutor as três capitais de Minas Gerais e o caminho para o mar - entre outras coisas, hoje vejo nos poemas uma espécie de reversão ou superação da história (dolorosa mas generosa) como se Minas ainda pudesse oferecer algo ao mundo, para além dos metais e minérios arrancados de suas entranhas - ou seja, percebo hoje que esses poemas são o meu tributo inconsciente a essa Minas mítica que carregamos dentro de nós, a Minas inconfidente, libertária, redentora, que o nosso imaginário insiste em preservar.

mina mariana

minas não mira o mar
o mar não ri para minas
minas canta uma outra ária
bebeu de outra mina: mariana

ouro preto, ponte inconfidente

a pele - becos e escadas, ruas e templos,
é polvilhada de puros poros de tempo

a alma - amores e escravos, poetas e o polvo
é ponte entre a mina e o horizonte

o ouro: duro, dourado e o sangrado alferes
a alimentar o polvo
a apontar perto e reto o porto ao povo

horizonte belo

floresta concreta plantada no prado
gestada já na mina, nutrida no ouro

promessa vibrátil de amoroso
contorno ao derredor da serra sagrada
consagrada

mas por ora: o polvo
devora a cordilheira e a seara

enquanto imensa família
ora pujante ora indigente
labuta o barro do preto sustento
de serena e morena estrada-manhã

a marchar célere como o amazonas
rumo ao cerrado e serrando ao meio
a bastilha e as esquadrilhas do polvo

e então talvez o mar e as minas
se beijem - aliviados
e o mar leve às aldeias do globo
o polvo - domesticado

o mar a murmurar em cada diferente porto
o nome da canção esquecida - canhota, torta
que brota da mina pura, singela
trilha a ponte de ouro e o horizonte belo
e jorra vibrante lavanda no seu corpo gigante.
tal mágica e rubra bandeira
talvez.

roberto soares

ecos

01/12/2008

a festa da vida nas ruas

Numa inciativa conjunta da Prefeitura Municipal de Vitória e da Comissão Espírito-santense de Folclore, aconteceu no último sábado, 29/11, a I Festa da Identidade Capixaba, que reuniu mais de 60 grupos folclóricos capixabas, num grande desfile pelas ruas do Centro de Vitória.

O tema da festa foi a histórica rivalidade entre as irmandades cristãs apelidadas de Caramurus e Peroás, devotos fervorosos de São Benedito que disputavam, ainda no século 19, a primazia de realizar a festa mais bela para o santo, e o trajeto do cortejo passou em frente aos mais importantes prédios e logradouros históricos do Centro de Vitória.

A seguir, um relato nada jornalísitico do que foi o desfile; ao contrário, a descrição é intencionalmente entusiasmada, decalaradamente apaixonada, de alguém que participou de todo o desfile e se encantou com o que viu e ouviu.

aqui, o início, nas escadarias da Igreja do Rosário e na de mesmo nome

“Foi bonita a festa, pá...”
As ruas da cidade foram tomadas por uma guerrilha multicolorida e multicultural.
Congo, folia de reis, ticumbi jongo, danças indígenas, grupos de dança alemã, pomerana e italiana.
Depois de se concentrar por um longo e festivo tempo na Praça Costa Pereira, lá pelas quatorze horas o assalto se iniciou pelas escadarias da Igreja do Rosário. Com o público e os artistas populares espremidos nas escadas, já se tinha uma impressão, embora ainda vaga, de que estávamos participando de algo diferente, algo mais aconchegante.
Mas, caminhando pelo relvado pátio da Igreja e descendo pela Rua Pereira Pinto, ainda havia uma certa postura de apenas espectadores de um espetáculo promovidos por artistas, ainda havia aquela atitude de distanciamento entre artista e público. Mas também havia já uma atmosfera verdadeiramente efusiva, com pessoas nas portas, janelas e calçadas, aplaudindo, tomadas por uma mistura de surpresa e admiração com aquilo que viam, com aquele rio de gente brotando súbito dos portões da igrejinha da comunidade.

na ladeira e em frente ao bar do Gegê
E na descida da Ladeira São Bento, a coisa começou a mudar de figura. Já não se separava mais público, cantores, músicos, personagens fantasiados. Era uma só vaga humana descendo pela ladeira – sonora, colorida, melodiosa. O cortejo desembocou no cruzamento com a Graciano Neves, em frente ao tradicional Bar do Gegê.
cortando o calçadão da Rua Sete e em frente à Igreja do Carmo
Dali para a frente, certamente que ainda mais animado pelo espírito irreverente da clientela do Gegê, o cortejo assumiu de vez a sua atitude guerrilheira, a sua missão de subverter a ordem natural, que geralmente vemos em relação à arte - de um lado, ou acima, o artista, ativo, centro do espetáculo, de outro lado, ou abaixo, o público, silencioso, espectador passivo.
Do já quarentão reduto da boemia de Vitória, a marcha musical prosseguiu rumo à Igreja do Carmo, passou em frente ao Convento de São Francisco, por cima do Viaduto Caramuru, se afunilou ao lado do Colégio Maria Ortiz e, depois de se espremer num beco, se espraiou pelo paço em frente ao Palácio Anchieta e ao Palácio Domingos Martins.

a bandeira segue em frente mesmo espremida entre os palácios e os muros do poder

Nesse ponto, já havia se configurado em definitivo o caráter subversivo do cortejo. O espetáculo era de todos, feito por todos e para todos, a dança, a cantoria e a música dos instrumentos já não tinham mais sentido sem a participação do público, que ora assistia, ora acompanhava, ora se esgueirava pelas ruas, becos e calçadas junto com os grupos folclóricos, já não havia artistas e público, atores espectadores. Havia apenas arte, cultura, ou melhor, celebração popular - havia na verdade a vida fluindo em festa pelas vias de Vitória, a vida festejando, a vida se festejando numa tarde de sábado.

Era como se os artistas precisassem de fato das pessoas, da sua presença, para que a sua arte se realizasse naqueles momentos: total comunhão, interdependência, entre vida e arte.

Palácio Anchieta

Palácio Domingos Martins

nas proximidades da Catedral

Por fim, depois de ladear a Catedral de Vitória os guerrilheiros da arte popular, descendo pela Escadaria , finalmente retornaram ao ponto de partida.
O que foi realmente uma pena, da próxima vez que o percurso seja um pouco mais longo e demorado. Com certeza os atores do espetáculo – músicos, cantores, dançarinos e o público – encontrarão um fôlego extra, em nome dessa celebração da vida e da diferença, da tolerância e da riqueza cultural.
Aliás, será imperdoável, será injustificável que o Poder Público não faça o que estiver ao seu alcance para que essa celebração ocorra novamente, por muitas e muitas vezes – com certeza, não faltarão recursos para que aarte popular tenha a mesma atenção que o carnaval, o Festival Nacional de Teatro, o Vitória Cine Vídeo e outros eventos culturais de grande e médio porte patrocinados pela Prefeitura de Vitória e pelo Governo do Estado.

Afinal, a arte popular, coletiva, e o folclore merecem o mesmíssimo cuidado que a arte contemporânea, individual ou de grupo. E que não se cometa a afronta, o pecado de querer aprisionar essa celebração da beleza e da alegria, da resistência e da vida, em uma forma convencional, como uma espécie de desfile, com arquibancadas, cordões de isolamento, ingressos e camarotes e tudo o mais a separar o público dos artistas populares, a separar o público de si mesmo e a dividi-lo em castas.

Para ler mais sobre a poesia e a espontaneidade da arte popular clique em 'Arte Popular: resgate e comunhão'

que vais fazer, Deus?

Optei por publicar duas traduções diferentes do poema que vais fazer...? - a primeira de Geir Campos e a segunda por Paulo Plínio Abreu; os outros poemas de 'O livro de horas' foram também traduzidos por Geir Campos, Ed. Civilização Brasileira, 1994 (nota: os poemas de “O livro de horas” não têm títulos)

que vais fazer, Deus, se eu morrer?
eu sou teu cântaro (e se eu me quebrar?)
eu sou tua água (e se eu me estagnar?)
eu sou teu hábito e sou teu ofício;
sem mim, tu perderias a razão de ser...

depois de mim, não terás casa em que
palavras próximas e tépidas te acolham
vai cair de teus fatigados pés
a sandália macia que sou eu.

teu largo manto deixar-se-á cair.
teu olhar, que com minhas faces eu
aqueço, como se com almofadas,
virá de longe a procurar por mim
- e ao pôr-do-sol se porá
no colo de estranhas rochas.

que vais fazer, Deus? estou preocupado.

Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.

Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.
Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.

(Tradução: Paulo Plínio Abreu)

(rainer rilke, 'O livro de horas')

leveza

leve é o pássaro:
e a sua sombra voante
mais leve

e a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve

e o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto
mais leve

e o desejo rápido
desse antigo instante
mais leve

e a fuga invisível
do amargo passante
mais leve
cecília meirelles

ecos


regresso

minha casa cheira a nordeste
onde são tantas
minas

descubro-me para sempre
atada
a essas portas que se
fecham
mariana botelho
ecos

sertão, poté

debaixo do barranco
passa um rio, tão raso
a correr sobre a areia
tão baixo que deito-me
e não sinto a água

sinto a mágoa calada
o silêncio seco
de um lugar bom
para um rio passar

vicente filho
ecos

outubro

choveu bem agora bem cedo
poças de brilho aquático brincam
pula-pula para os pés passeantes
pássaros ensandecidos à cata
de gotas de arco-íris
cheiro verde e fecundo: sensualidade
saindo de paus umedecidos
no tenro ventre da terra

ruas andam encolhidas
nos becos um ar de susto
sob a ameaça de desabar
sobre todos nós sobre tudo
um céu que desfila plumas
(lavadas, pefumosas)
mas ainda carregando
sob vestes azuis-cinzentas
bombas de chumbo líquido

é precioso prosseguir:
pacificado périplo no templo do dia
tempo de águas primordiais
a imergir a memória com acenos

ora sedentos ora amenos

( roberto soares, outubro 2006)

vivo, divinizo

Ainda envolto na transcendente atmosfera de Rilke, esta modesta tentativa de comunhão poética com o mundo, de minha lavra.

de setembro o sol se perfuma
manhãs de cheiro de mexerica

fumos e incensos insondáveis
escorrem pelas largas alturas

aves inventam voltas
em intérminas vias de vento

límpidas estradas aguardam e acolhem
o andar sereno de secretas sedes

em janelas de escola, sonha-se:
o rolar de sedosas bolas de gude
por trilhas de delicada poeira

tantos moradores do mundo
a entoar o mesmo e uno hino:
- vivo, divinizo...

enquanto o sol de azul se bronzeia
nos aéreos areais

o Teu olho alimenta e aquece
o meu se alimenta e não esquece

juntos nossos olhos
se alumbram em instantes de setembro

(roberto soares, setembro 2006)

a hora inclina-se - rilke

a hora inclina-se e toca em mim
com claro bater metálico
os sentidos me tremem. sinto: eu posso...
e colho o dia plástico.
nada estava acabado antes de eu ver:
todo o devir aguardando em quietude.
maduros meus olhares: a cada um
como uma noiva, chega a coisa ansiada.

nada é pequeno para mim: gosto de tudo
e tudo eu pinto sobre ouro com grandeza
e bem alto o levanto
sem saber de quem vai a alma libertar
(rainer rilke, "O livro de horas")

se ao menos - rilke



se ao menos uma vez tudo se aquietasse
se se calassem o talvez e o mais ou menos
e o riso à minha volta...
se o barulho que fazem meus sentidos
não perturbasse mais minha vigília...

então, num pensamento multifário
poderia eu pensar-te até aos teus limites
e possuir-te (só o tempo de um sorriso)
e oferecer-te a vida inteira, como
um agradecimento

(rainer rilke, "livro de horas")

anil


manhãs, rastros de infância:
riachos fugidios
paisagens feitas de alimentos
ausências

afluentes recorrentes
areias sem porto fixo

o aberto abraço da manhã carrega um sorriso anil de felicidade, que se estende quilometricamente. borboletas edificam casas bonitas como crianças. um coração ainda não esquecido das primeiras fomes se alimenta nestas veias feitas de mansidão.
roberto soares

sobre o 'desvelar'

o desafio da tensão interna

DESVELAR busca dar espaço também para a poesia que ainda traz um pouco dessa capacidade serena e modesta de testemunhar o ser e o tempo, e que tem sido esquecida por uma certa poesia moderna, na sua preocupação excessiva, ora com labirintos existenciais e narcisistas, ora com a legítima invenção de códigos verbais, ora com o simples jogo com as palavras; jogos, códigos e atmosferas poéticas que, originais ou repetitivos, depois irão servir de objeto/pretexto para críticos, professores e/ou prefaciadores debruçarem-se sobre o poema e as palavras como se estivessem a dissecar entranhas ou analisar partículas com microscópios.

Claro que nada contra as criações poéticas apuradas, que se voltam para o próprio ato de criar e para os elementos do poema - as palavras, a frase, o som; enfim, tanto a metapoética, a poesia do poema, quanto qualquer outra fala poética têm seu espaço e necessidade dentro do exercício da poesia – e seria muita tolice pretender o contrário. Assim, não há neste blog nenhuma ressalva a qualquer poesia mais apurada ou mais técnica, mais cerebral ou mais hermética. Como também não haverá nenhuma ressalva a comentários técnicos, às “dissecações” do poema.
Mas o que é preciso lembrar é que se o poeta, ou se todo poeta, para se aproximar do leitor, precisa ser exaustivamente interpretado - através de análises técnicas, lingüísticas, semióticas, semânticas, certamente profundas e inteligentes - então a poesia corre realmente o perigo de existir somente para si própria e para poetas e especialistas.

Enfim, no blog DESVELAR sempre haverá espaço para uma poesia que busque atingir o leitor de chofre, iluminando-o como um relâmpago, atingindo-o como um soco verbal ou envolvendo-o como uma cariciosa melodia, mas de qualquer forma através de um contato imediato, de primeiro grau, ou com uma razoável grau de pureza, sem excessivas turvações que necessitem ser clareadas por terceiras pessoas; é preciso não se constranger com a comunicação que se faz de forma simples, entre poeta, poema e leitor.

Talvez um dos maiores desafios do poeta seja o de tentar conciliar a pesquisa, a invenção e o apuro com a pureza, a simplicidade e o contato imediato com o leitor. O poeta só tem a ganhar quando busca se esforçar ao máximo para navegar entre essas duas margens, numa constante tensão interna do processo de criação do poema, entre busca interior/exterior e comunhão com o outro e, nesse exercício do equilíbrio, não se deixando envolver além do necessário pelas exigências da pesquisa, da invenção ou do puramente cerebral que, às vezes, traiçoeiramente faz o poeta descambar para o solipsismo.

Claro que tudo o que dissemos nesse último parágrafo diz respeito a poetas que têm, entre suas preocupações, essa proposta de estabelecer um vínculo com o leitor de poesia, seja ele artista ou não.
E a propósito das preocupações e propostas múltiplas dos poetas, e diferentes da aqui exposta, é interessante acompanhar o bate-papo recente que houve no blog “as escolhas afectivas”, a respeito do papel da poesia. Recomendamos especial atenção à fala do poeta Carlito Esteves, com sua defesa da poesia enquanto “uma aventura intelectual’.

sobre rainer rilke

Neste blog, há vários poemas do tcheco Renê Rilke que foram extraídos da obra “O livro de horas”, publicado em 1905.

São belas amostras de sua poesia metafísica, vazados numa fala mais singela, que às vezes lembra o tom coloquial, mas nem por isso destituídos da densidade própria de seus poemas, densidade até aflitiva para esses nossos assépticos tempos e, infelizmente para muitos, uma densidade obsoleta . Nessa obra Rilke parece dialogar diretamente com a fonte de todo o universo, mas numa espécie de religiosidade terrestre, como se estivesse a conversar com um Deus acessível, quase tão frágil e desamparado como a criação. A própria referência do título é significativa: livros de horas são manuscritos próprios da Idade Média, ricamente ilustrados para fazer referência à devoção cristã, contendo textos, orações e salmos. Em sua forma original o livro de horas servia como leitura litúrgica para determinados horários do dia.

E “O Livro de horas” de Rilke é como se fossem singelas conversas com o divino, das quais lançamos mão ao longo do precário horário de nosso existir. Nessa obra Rilke consegue com naturalidade exercitar um encontro entre beleza e transcendência, oferecendo um pequeno vislumbre daquilo que poderia ser um real encontro entre arte e religiosidade, para além das limitações impostas impostas por religiões, filosofias, sabedorias e escolas artísticas.

Enfim, poetas como Rilke oferecem uma visão do que poderá ser o grande encontro entre arte, religião e razão, a grande integração - entre todas as formas de saber e perceber o mundo - que nos espera lá á frente da história; claro, desde que consigamos superar este momento de barbárie imposto ao mundo pelo perda de controle da razão tecnicista, domindora e instrumental própria do capitalismo industrial, caso consigamos criar e consolidar alternativas ao visível esgotamento do outrora revolucionário e necessário modo de produção capitalista.

sobre o 'Poesia Viva'

DESVELAR publica uma amostra de uma dessas boas surpresas que encontramos na rede. É o jornal "Poesia Viva", já em sua edição de número 33.
Repare-se na espontaneidade e na precisão dos poemas selecionados, no seu esforço para envolver o leitor na temática em questão, repare-se como não deixam de oferecer ao leitor imagens nítidas, situações convincentes, mesmo sem abandonar a invenção e a autonomia da linguagem; enfim, os poemas realizam aquele difícil equilíbrio de todo bom poema, aquela tensão interna entre a necessidade da invenção e a possibilidade da real comunicação com o leitor.
Falamos aqui um pouco mais das propostas do jornal e da Editora UAPÊ. Mas antes conheçam alguns poetas publicados na última edição online do jornal, começando pelo editorial – o tema deste número é a vida urbana.
o projeto UAPÊ
O jornal 'Poesia Viva' tem uma longa história, foi lançado em 1994. É um excelente veículo de divulgação da poesia: rigoroso e despretensioso, sóbrio e criativo, sem abrir mão da leveza e da criatividade.
E no caso do Poesia Viva há ainda um diferencial, pois, na verdade, o jornal faz parte de um projeto mais amplo, que é editora UAPÊ.
E parece que não só os poemas selecionados, mas todo o projeto do jornal Poesia Viva e da editora UAPÊ, procura seguir essa linha do equilíbrio entre a invenção e expressão, entre a pesquisa e a comunicação com o leitor - o que é bastante gratificante nesses tempos de afastamento da poesia em relação ao leitor.
O compromisso fundamental da UAPÊ é exatamente o de valorizar e divulgar a criação poético-literária que tenha um mínimo de respeito e afinidade com a cultura brasileira: “A Editora Uapê - Espaço Cultural Barra traz no seu significado o compromisso com a cultura brasileira. Uapê na língua índigena dos Uaupés, tribo do alto amazonas, expressa a flor vitória-régia.
Nossa proposta editorial valoriza a produção intelectual e artística dos autores, criando oportunidades para aqueles que querem publicar obras de qualidade, comprometidas com a realidade brasileira, cultivando, assim, as raízes do nosso solo cultural.”
Em sua edição impressa o Poesia Viva é uma publicação em formato tablóide, trimestral, e um dos seus principais objetivos é “ a troca entre novos e consagrados poetas, curiosos e amantes, viabilizando a divulgação dos poemas publicados e estimulando a leitura e as discussões sobre a poesia.”
Ainda com a palavra, os editores do Poesia Viva:
“A apresentação dos poemas é feita a partir de um fio condutor que se manifesta nas ilustrações de artistas contemporâneos. A cada exemplar, uma entrevista exclusiva com um grande poeta: Manoel de Barros, Adélia Prado, Fernando Py, Olga Savary, Affonso Romano de SantAnna deram depoimentos preciosos sobre suas obras e o universo literário.
A partir de janeiro de 2005, o Jornal Poesia Viva passou a ter também uma versão online, com todo o conteúdo do jornal impresso disponível na internet”.
Se você ainda não clicou lá em cima, conheça aqui alguns trabalhos de poetas publicados pelo "Poesia Viva".