31/03/2009

nos bastidores de Capitu

veja também: 'veículos virtuais...'
http://www.capituz.wordpress.com/ é o endereço de um espaço, senão diferente, ao menos não tão comum. Na verdade, são muitas as tentativas de escrever, filmar ou representar em tempo real, ou de mostrar, através da internet, os bastidores de algum trabalho artístico - que me desculpem os mais ‘antenados’, mas prefiro usar o vocábulo ‘bastidores’ ao invés da expressão ‘making-off’, ainda cultivo o hábito de deixar de escrever na língua materna somente quando realmente há uma estrita necessidade vocabular, de entendimento ou mesmo uma sempre benvinda necessidade estética, sem ser necessariamente submissa.
Mas voltando às tentativas de bastidores e de trabalhos virtuais, algumas são cansativas, outras um redondo ou parcial fracasso, outras até mesmo constrangedoras na sua inconsistência, e muitas acertam. O blog referenciado acima, editado por Dinho Marques, é uma dessas que têm tudo para acertar. Trata-se de um espaço onde o diretor e atores de um grupo de teatro, aqui de Vitória, expõem o seu dia a dia, as suas impressões e diálogos acerca da peça que pretendem montar em breve, baseada no Dom Casmurro, de Machado de Assis.
O tom dos textos é no mais das vezes bem didático e descritivo da rotina do grupo, mas passando para o leitor noções interessantes acerca da história do teatro, dos tipos de teatro e principalmente acerca do fazer teatral (Dinho Marques, o editor do blog, é professor de teatro na FAFI e diretor do Grupo Z).
E às vezes o tom é intimista, mas sem resvalar para chiliques verbais; claro, há toda uma espontaneidade e uma forma própria de se expressar, mas cujo limite é uma comunicação minimamente séria, sem esses exageros de impressões e expressões, supostamente originais ou sensíveis, ou seja, não há essa preocupação de ser ‘engraçadinho(a)’, que costuma proliferar nessas situações; aliás, não só nelas - a esse respeito, é interessante um texto já publicado aqui no Desvelar, do escritor Florian Zeller.
Enfim, embora o blogue seja visivelmente dirigido para pessoas ligadas ao teatro, o leigo ou apenas espectador tem muito a ganhar com toda essa partilha de informações e vivências. Se ressalva há, é com relação ao aspecto excessivamente técnico ou detalhista que, às vezes, predomina nos textos. Mas nada que obrigatoriamente canse o leitor, não é difícil filtrar o que lhe interessa.
Num de seus últimos espetáculos de dança-teatro, o "Quatro Intérpretes para Cinco Peças", Dinho Marques conseguia transmitir para o espectador uma leveza mesclada com agilidade. Quem viu o trabalho pode conhecer a preocupação de Dinho com a concisão, a linguagem enxuta, a resistência em inundar o palco com gestos, figurinos e cenários desnecessários. Oxalá, o trabalho ‘Capitu’ mantenha ou aperfeiçoe aquela linguagem às vezes nervosa e apressada, mas de enxuta sedução.
Claro, escrever é algo bem mais pesado, barroco e abundante do que o simples e gostoso dançar, mas é uma experiência que pode valer a pena, essa de acompanhar, ou ao menos visitar, através da escrita a gestação de mais esse trabalho do Dinho e o Grupo Z - e, claro, se possível conferir o resultado no palco.
A título de amostra, segue abaixo fragmentos de um dos relatórios escritos pelo Fernando ‘Dinho’ Marques.

"A memória prega peças - faz acreditar que sabemos objetivamente de tudo o que houve. Não. Retemos apenas parte do que os olhos pegaram. Sobre essa parte, pensamos, sentimos, tecemos impressões, tiramos conclusões - essa parte, nós a reelaboramos. No que fica, no que a memória nos dá, talvez haja apenas traços do que houve; às vezes mais fortes, às vezes mais tênues.

Eu devo - essa foi a tarefa a mim encomendada - escrever sobre a última semana de ensaios. O problema é que eu não sei onde ela começa; eu não sei como ela termina. Tudo é contínuo, um fluxo. Talvez tudo isso tenha começado quando eu li pela primeira vez o Dom Casmurro, lá pela sétima série? Ou antes, quando em 1899 o romance foi publicado? Ou quando o romance, sabe-se lá de que forma, começou a se desenhar para o autor? Ou muito antes - e podemos ir pensando em vários elos, num exercício absolutamente inútil. Mas o fato é que a semana começa, se não me prega peças a memória - e ela sempre prega -, com os olhares; e esses olhares vêm de antes; no mínimo, da semana passada.
Os olhares. Os atores, divididos em dois grupos criaram cenas - não havia sobre essas cenas a serem criadas nenhuma exigência, podiam criar o que quisessem, qualquer cena curta: o exercício não estava aí. A questão era, na verdade, pontuar a cena criada com olhares: depois de feita, refazê-la, interrompendo o fluxo dramático com olhares que perdurassem no silêncio.

E foi interessante notar como há medo de parar a cena no olho, de interromper o diálogo. Medo dessa ação que nos parece, aristotélicos, inação. Mas melhor ainda foi forçar a barra nesse sentido, introduzir os olhares, e ir percebendo como eles sustentam a cena, como podem substituir falas que descobrimos serem desnecessárias, que só estão lá, provavelmente, em função de um vício nosso de querermos ser completamente entendidos a qualquer custo - como se isso fosse possível.

Os olhares são fortes e paradoxais - interrompem a cena e a sustentam; mostram a personagem e seu intérprete; levam a cena ao espectador e trazem-no para dentro dela.
Ao final - apenas como exercício -, repetimos a cena reduzida aos olhares. E ali estava tudo: o enredo, as falas, as ações, as relações, a cena. E vimos que os olhares - que são tão fortes no romance - são algo que queremos mesmo explorar.

Envolvido com Dom Casmurro, tendo a acreditar agora que tudo é uma questão de olhar. Escrito por Fernando, em 25/03/2009 "
Roberto Soares Coelho

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