21/05/2009

os rios profundos

Obra do escritor peruano José Maria Arguedas (1911-1969).

Essa obra reflete a preocupação de Arguedas com o resgate das raízes míticas e históricas não apenas do povo peruano mas de todos os povos andinos. O que estava em questão, para o escritor, não era apenas defender ou buscar uma identidade nacional para o Peru, mas desconstruir a própria noção de pátria tal como imposta pelos colonizadores europeus. Antes das pátrias de imposição européia, já existiam as pátrias andinas, astecas, maias, guaranis, tupis, mapuches e inúmeros outros.

Mas os trechos aqui escolhidos não refletem essa problemática de identidades e alteridades, eles mostram outra faceta da prosa de Arguedas. Mostram um encantamento com as coisas que ultrapassa até mesmo o poético: árvores, rios, rochas, pontes, estradas, são mostrados numa fala que tem algo de denso e cósmico. Fogem daquela magia meio delirante que é comum na literatura do chamado realismo fantástico, a qual imperou por algum tempo na literatura latinoamericana.

A magia de Arguedas não recorre a nenhum fantástico, antes, com a sua sensibilidade, mostra o que há de fascinante mesmo nas coisas e paisagens que não aparecem como espetaculares. É como se em sua obra Arguedas buscasse um reencontro com o mítico e com o ancestral, não apenas através dos homens e de suas culturas e costumes, mas também através das coisas, dos lugares, do mundo, vendo o ancestral na simples presença ou na simples aparição das coisa no mundo e em volta de nós; como se buscasse, à maneira de um Heidegger (um europeu, note-se), a pura manifestação do ser nos entes que nos rodeiam.

A ressalvar, apenas o clima cansativo que o enredo adquire, por girar excessivamente em torno das aventuras e desventuras afetivas, físicas e existenciais do jovem narrador. Abordagem mítica, busca ancestral das coisas, com a maestria com que Arguedas o faz, exigiria um enredo menos juvenil, mais amadurecido; embora vazado na mesma poesia frágil e encantada que perpassa a narrativa do jovem em questão.
As Viagens
"Meu pai nunca pôde encontrar onde fixar residência; foi advogado do interior, instável e errante. Com ele conheci mais de duzentas cidadezinhas. Temia os vales quentes e só passava por eles como viajante; ficava algum tempo morando nas cidades de clima temperado: Pampas, Huaytará, Coracora, Puquio, Andahuaylas, Yauyos, Cantagallo... Sempre junto de um rio pequeno, sem bosques, com grandes pedras brilhantes e peixes miúdos. A murta, os sachos, o salgueiro, o eucalipto, o capuli, a tara, são árvores de madeira limpa, cujo galhos e folhas se recortam livremente. O homem as contempla de longe; e quem procura sombra se aproxima delas e repousa sob uma árvore que canta sozinha, com uma voz profunda, em que o céu, a água e a terra se confundem.

As grandes pedras fazem parar a água desses rios pequenos; e formam os remansos, as cascatas, os redemoinhos, os vaus. As pontes de madeira ou as pontes pênseis e os cestos para as travessias apóiam-se nelas. Brilham ao sol. É difícil escalá-las porque quase sempre são compactas e polidas. Mas desses pedras percebe-se como o rio se remonta, como aparece nas curvas, com em suas águas se reflete a montanha. Os homens nadam para alcançar as grandes pedras, cortando o rio chegam até elas e dormem lá. Porque de nenhum outro lugar se ouve melhor o som da água. Nos rios largos e grandes nem todos chegam até as pedras. Só os nadadores, os audazes, os heróis; os outros, os humildes e as crianças, ficam; espiam da ribanceira como os fortes nadam na correnteza, onde o rio é profundo, como chegam até as pedras solitárias, como as escalam, com quanto trabalho, e depois se erguem para contemplar a quebrada, para espirar a luz do rio, a força com que corre e se interna nas regiões desconhecida."
(Página 27)****************
"Por isso, aos domingos, saía precipitadamente do colégio, a percorrer os campos, a atordoar-me com o fogo do vale.
Descia pelos caminhos dos canaviais, à procura do grande rio. Quanto mais descia, mais poeirento e quente era o caminho; os pisonayes formavam quase bosques; os terebintos ficavam mais altos e grossos. O terebinto que nas montanhas mornas é cristalino, de vermelhas uvas musicais que cantam como chocalhos quando sopra vento, aqui, no fundo do vale ardente, transforma-se numa árvore frondosa, alta, coberta de terra, como que esmagada pelo sono, seus frutos apagados pelo pó; submersa como eu no ar denso e calcinado.
Às vezes podia chagar ao rio, depois de andar várias horas. Chegava a ele quando mais angustiado e aflito me sentia. Contemplava-o, de pé sobre o vão da grande ponte, apoiando-me numa das cruzes de pedra encravadas no alto da coluna central.
O rio, o Pachachaca temido, aparece numa lisa, na base de um precipício onde não crescem senão trepadeiras de flor azul. Nesse precipício costumam descansar os grandes papagaios migradores; prendem-se nas trepadeiras e chamam aos gritos, da altura.

Rumo ao leste, o rio desce em corrente tranqüila, vagarosa e trêmula. Os grandes galhos de chachacomo, que roçam a superfície de suas águas, arrastam-se e voltam violentamente, ao desprender-se da corrente. Parece um rio de aço líquido, azul e risonho, apesar de sua solenidade e de sua fundura. Um vento quase frio varre o alto da ponte.
A ponte do Pachachaca foi construída pelos espanhóis. Tem dois olhos altos, sustentados por bases de alvenaria, tão poderosas como o rio. Os contrafortes que canalizam as águas estão presos nas pedras, e obrigam o rio a avançar agitando-se, dobrando-se em correntes forçadas. Sobre as colunas dos arcos, o rio esbarra e se parte; a água se eleva lambendo o muro, pretendendo escalá-lo, e se lança depois nos olhos da ponte. Ao entardecer, a água que salta das colunas forma arco-íris fugazes que giram com o vento.

Eu não sabia o que mais amava, se a ponte ou o rio. Mas ambos desanuviavam minha alma, inundavam-na de fortaleza e de sonhos heróicos. Apagavam-se de minha mente todas as imagens lastimosas, as duvidas e as recordações más."
(Pagina 67)
Os rios profundos, editado pelo Círculo do Livro, com cortesia da Editora Paz e Terra

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