05/06/2009

'negro é comida de onça'

O texto abaixo foi postado por Wilson Coelho, na lista de discussão 'Opiniões Cênicas', em 05 de junho; trata-se de uma crítica de Gerson R. Albuquerque direcionada a uma peça teatral montada em Rio Branco, capital do Acre.
Como a peça “Se o mundo fosse bom, o dono morava nele” não passou por Vitória, claro que não há como entrar no mérito da crítica que o autor faz.

Mas vale a sua publicação aqui, em razão da instigante postura do autor em relação a uma certa forma estereotipada e acomodada de se ver e interpretar a chamada cultura popular. Vale também registrar a extrema honestidadae e a coragem com a qual o Gerson Albuquerque expõe suas idéias; mesmo não havendo como entrar no mérito da crítica, como dito acima, não parece o caso de uma coragem movida por mágoas ou antipatias pessoais, o que - aliado à inteligência, contundência e pertinência do texto - justifica plenamente a sua reprodução e divulgação neste modesto espaço.

Negro é “Comida de Onça” ou “Alma de Boi Bordado”
Fui assistir a apresentação do Festival Ventoforte, ontem (22/09), na Usina de Arte “João Donato”. Em cartaz “Se o mundo fosse bom, o dono morava nele”, sob a direção do argentino naturalizado brasileiro Ilo Krugli, baseado em “A Pena e a Lei” (1959) de Ariano Suassuna. Discussões técnicas à parte, o espetáculo permite algumas considerações, se é que isso ainda importa nesses tempos em que uma certa lógica estatal e a postura acrítica de muitos que professam a idéia de viver feito um “bando de coitados” num mundo “à margem da história” e a espera de uma “missão civilizatória”, decidem que o que é “bom para si, é bom para todos”, subvencionando suas preferências com verba pública, portanto verba de todos, sem a aquiescência de todos.
Nas mais de duas horas de espetáculo, a representação/montagem/encenação que Krugli faz do texto de Suassuna transborda a velha estética ocidentalizante da ridicularização do negro, há muito presente no cotidiano brasileiro. Mentalidade colonizada/vocação de colonizador é o binômio que articula personagens, falas, máscaras, mamulengos, gestos, movimentos, ritmos, corpos, caricaturas e discursos que se vê/ouve no palco.
Em meio a pretensos improvisos, pitorescos personagens vão tomando lugar no cenário de uma realidade mitificada. O “preto Benedito” se utiliza de “malandragens”, “espertezas” e “truques” saídos do “mundo da vagabundagem” para ludibriar dois “cabras valentes” - Cabo Rangel, o “Rosinha” e Vicentão, o “Barrote” -, humilhá-los ou desmoralizá-los em “praça pública”, bem “ali em frente a todo mundo”, como meio para conquistar o coração de Marieta, a Madalena do “sertão” idealizado de Suassuna, inundado pelas caricaturas espectrais de Krugli.
A marca de identificação do “preto Benedito”, entoada pelo coro e pelos populares que o insultam de fofoqueiro ou “leva-e-traz”, é “preto comida de onça”. “Preto é comida de onça”, repetem os demais personagens, arrancando risos e graciosidades de uma platéia para quem se constituiu como senso comum o conjunto de estereótipos e chacotas “normalizadoras” do profundo preconceito contra negros, africanos ou afro-descendentes no Brasil. Onde as peias e os chicotes dos feitores de ontem e de hoje se tornaram ineficazes, os “ditos populares”, os “causos”, as piadas, mangofas, brincadeiras, burlas e comédias foram ganhando espaço, dissimulando a violência do racismo sob a capa do culto, civilizado e cordial.
Fiquei observando meus colegas professores, estudantes, ativistas de várias frentes das lutas/movimentos sociais e demais pessoas presentes no teatro da Usina de Arte, caírem na gargalhada ante o “preto é comida de onça”, entoado na improvisação, digo montagem que Krugli produziu com base no texto de Suassuna, um dos mais badalados escribas urbanos de um nordeste inventado, condensado na metafísica de um passado a-temporal, petrificado em temas, personagens, falares e cantigas que perfazem a face de uma tradição una, homogênea, vazia de significados. Face essa cujos estereótipos são amplamente popularizados e disseminados por diversos meios e mecanismos que “massificam” um discurso idealizado sobre o “popular” e o “povo” com suas “tradições”, “valores”, “comportamentos” e “crenças”. Com isso – como afirma Durval Muniz de Albuquerque Júnior -, intentam condensar e tornar homogênea “uma realidade múltipla de vidas, histórias, práticas” e culturas produzidas por diferentes mulheres e homens enquanto sujeitos de suas histórias, em diferentes contextos temporais/espaciais.
No início da peça, ante ao anúncio do Cheiroso – o dono do mamulengo – de que o espetáculo “já vai começar”, a própria crítica que Krugli arremete contra a televisão e, em especial, à rede globo, é adocicada, esvaziada ao longo de todo seu espetáculo, posto que encena ali, “cara a cara” com o público, em todos os seus improvisos treinados e ensaiados, a mesma cantilena da TV Globo, do Globo, do Estadão, da Folha de São Paulo, de toda chamada “grande mídia” e suas sucursais, bem como do senso comum que paira no Brasil em torno das imagens produzidas sobre o “nordestino”, o “retirante”, o “pobre”, o “sertanejo”, o “caboclo”, a “prostituta” e, mais ainda, sobre o “negro” grafado pela pena e discurso do colonizador: “preto é comida de onça”.Ao término do segundo ato, um estrondo e as luzes se apagam, com os personagens de Krugli despencando um a um, enquanto o próprio diretor/ator – em seu treinado improviso – se questiona sobre o pagamento da conta de luz à eletropaulo, quer dizer, eletroacre, pedindo desculpas aos presentes por aquele possível transtorno. Nesse instante o diretor deixa claro que seu “mamulengo” não habita as ruas, mas os teatros e circuitos fechados, inacessíveis aos que vivem nas ruas; é “cultura popular”, sem o “povo” ou, no máximo, com um “povo” que é só caricatura; improviso longe do imprevisto, do não programável.
Passo seguinte, mais uma vez, a voz do diretor/ator – simulando o improviso – convida os espectadores a saírem pela porta de entrada do teatro e se dirigirem até o “final da rua” – a outra metade do palco – onde a equipe da rede globo teria abandonado seus equipamentos de iluminação e, com essas generosas sobras da televisão, seria possível realizar o terceiro ato e o epílogo, encerrando assim seu espetáculo.
A apoteose da nada criativa carga de preconceitos de Krugli se manifesta em falas que, mais de uma vez, repetem os chavões das mídias comandadas pela rede globo em torno de temas como “terrorismo de bandidos” ou “balas perdidas” nos morros cariocas, repletos de “pretos comida de onça”. Porém, é no final do terceiro ato de “Se o mundo fosse bom o dono morava nele”, de Ilo Krugli, que surge em cena a chave de ouro da velha estética do preconceito e de uma “cultura popular brasileira” petrificada por uma tradição escrita e folclorizada sob a égide do olhar colonizador/mente colonizada: a aparição do Boi Bumbá, digo, “Boi Bordado” e a entrada em cena de uma atriz negra - desnuda da cintura para cima - como a alma do boi; aparição insólita de uma “visagem” na fantasmagorica representação desse premiado diretor.
Após esse terceiro ato e mais um epílogo em que, finalmente, Benedito, o “preto comida de onça” se “acasala” com a “sensual” Marieta, “procriando” uma série de “bichinhos”, Krugli encerrou seu espetáculo, efusivamente aplaudido e elogiado. Na saída, velhos e jovens espectadores, satisfeitos com esse contato com “a cultura brasileira”, como afirmava uma senhora ao meu lado, dirigiram-se para suas casas, rememorando as cantigas e retóricas preconceituosas de que negro, isto é, “preto” quando não é “comida de onça”, é “alma de boi bordado”.
Comicidade rude nesses tempos de discussões atravessadas sobre identidades negras, em um país que deveria de auto-proclamar multi-étnico, multi-lingüístico, multi-cultural. Os meios de comunicação, as escolas, as igrejas, os teatros, as músicas, os cinemas, as artes plásticas, as linguagens todas e tudo o que isso implica – em sua possibilidade de produzir corpos e mentes - deveriam entoar outras falas, outros discursos capazes de romper com essa ultrapassada e homogênea idéia de uma ordem, um povo, uma verdade, uma história, uma tradição, uma cultura, um país.
Enfim, os ventos que sopram de lá, de cá e de todos os lugares podem ser capazes de superar essa estética que nos acompanha há mais de cinco séculos. A estética de diferentes multidões de gentes e de culturas enclausuradas ou empasteladas em reduções do tipo “Se o mundo fosse bom, o dono morava nele”, montada, representada e dirigida por Ilo Krugli. Na apresentação do Governo do Estado do Acre, digo, do Grupo de Teatro Ventoforte, infelizmente, o que vi foi a trágica encenação de um patético e racional “improviso”. Ali, bem no “meio da praça”, em frente a todos os presentes, reafirmou-se – entre risos e anedotas de longo alcance – a velha catequese colonizadora: “preto é comida de onça” e “alma de boi bordado”.

Rio Branco, Acre, 23 de maio de 2009
Gerson R. Albuquerque, professor do Centro de Educação, Letras e Artes
Universidade Federal do Acre (
gersonroal@gmail.com)

Nenhum comentário:

Postar um comentário