20/08/2009

duas vezes nada

"é assim, amiga. encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

constatamos o pior, os seus aspectos.
corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
de facto, crescemos em alcoolémia
acordamos tarde, em pânico
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
não temos, ao que parece, serventia.

sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte
seus gestos de ternura ou de exuberância.
talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor
o desejo, até o onanismo da destruição.
antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas
mas duas vezes nada, ninguém
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram."

manuel de freitas (vale de santarém - portugal)

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