26/04/2011

dala: excertos

Dando seqüência ao mergulho na contrita e transcendente atmosfera da Sexta-Feira da Crucificação (veja vídeo abaixo), selecionei um trecho de minha novela Dala, que publicarei em breve em meio eletrônico.

Dala personifica nada mais nada menos do que a Terra, o planeta.  U. é a sede de Absoluto, de Espírito, do transcendente no cotidiano, e é a radical recusa desse cotidiano, exatamente por não perceber nele o espaço do divino. Tão embriagado dessa sede e dessa recusa, tão desgastado pelo vaivém de sua tarefa de poeta num mundo excessivamente prosaico, que o seu processo de ruptura torna-se-lhe insuportável, culminando em visões mágicas na noite de seu aniversário, através das quais ele é alçado até a órbita terrestre, e lá envolto pela magia de Dala, personagem através do qual dou feições humanas ao nosso próprio planeta.
 
O trecho em questão é a parte final do capítulo em que o jovem U. narra a trajetória de sua existência a Dala, até a noite em que logrou encontrar-se face  a face com ela.

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Dala - final do capítulo V
 
Dala:
(reinstalando a seriedade no âmbito da navigagem)
"então, imune à trajetória terrena, te vi numa tentativa de retorno ao transcendente, às rarefeitas e incompletadas raízes: houve o retornar reticente e tardio aos cânticos e templos. a matriz de Santa Rita de Cássia, repleta de penumbras proibidas, ainda afastadas de ti. a procissão nas manhãs da Crucificação, o roxo lutuar das flores exigindo silêncio. tu de longe, no espaço a ti reservado.’’

U.:
(ainda com a cabeça recostada no peito de Dala, numa voz recatada, olhando para baixo)
"sim, dala amiga, recordo  tais vivências com dolorosa nitidez. nas manhãs:

 procissão. silêncio. contritos todos.
a manhã é um culto secreto, místico
estamos possessos pela melodia, aturdidos

e à tarde e à noite as sete palavras varavam a cidade, ecoavam pela casa. tornavam tudo bíblico, pareciam circundar a cidade com muralhas invisíveis e arcanjos terríveis. um santo sepulcro, transcendental. até que um dia os senhores padres houveram por bem alternar as comemorações da Santa Semana: um ano numa paróquia, o seguinte na outra. mudou-se também o itinerário das procissões. eu habitava longe da outra igreja e das ruas por onde a revivescente passou a passar, ano sim ano não. eu não era bom peregrino, perdi um pouco do ritmo

fomos para o jardim da casa
rezava-se à cidade. articulamos
negras vozes que se dissiparam

a horas altas, olhos nebulosos
plantar lírios azuis, impossíveis

migrar para o alto e além, purificar-se da impressão de pecado que nos invade, nos oprime, por percebermos quão longe o humano está de exercer o seu testemunho, a sua tarefa de sentinela e companheiro do Real, ou de Deus, se preferires. essa mistura de singeleza e magnetismo das alturas que nos advém quando da Santa Semana lavava-me, deixava-me apenas triste, pequeno, amamentava-me numa melancolia modesta, uma espécie de nostalgia e recatada solidariedade para com o Crucificado, que me dispensava da condição de pecador por fazer parte de uma tão incompreensível raça.
enfim, a celebração religiosa, feita ao mesmo tempo de recatos e tremores, parecia fazer com o mundo terreno perdesse sua face medonha, medrosa, religando-se a um outro mundo, não celestial, perfeito, mas apenas distante, diferente, impassível, feito de lírios azuis e impossíveis, modesto e melancólico em sua incapacidade para tornar verdadeiramente azul e etéreo o mundo terreno, concreto, vivente.

enfim, viajava, vivia, celebrava solitário em minha ambígua condição de ateu saudosista. mas o que deveria durar até o domingo de Páscoa (o renascimento, a vida nova) acabava já na manhã de sábado de Aleluia, o mundo e a vida apareciam-me novamente como terrenos, sensuais, triviais. acho que, para mim, o calendário humano deveria ser uma constante sexta-feira da Paixão, um eterno ano de recolhimento, silente respeito e contrição, até que de fato pudéssemos todos enxergar um palmo adiante do nariz, vermos a nossa condição de testemunhas e amparo do Real

senti que caíamos: tudo e todos
houve uma alegria... e uma manga
caiu no quintal. no jardim da casa

em tudo estava ela...
em tudo!

o que digo é que, depois da sexta-feira da Compaixão, da solidariedade lutuosa dos humanos para com o Real e sua testemunha Crucificada, havia sempre a queda, o retorno da lucidez e da desdenhosa resignação para com os justificáveis frutos terrenos dos homens. até que num domingo à noite, embriagado e faminto numa missa, retirei-me definitivamente do culto, cabisbaixo, definitivamente descrente da possibilidade de um mundo azul e etéreo, desdenhosamente prisioneiro de um mundo terreno. devo ter me tornado qualquer coisa como um adulto, feito de sentimentos sérios e confiáveis

ensejei viver por hábito.
amei por necessidade

e assim foi a jornada, em meio a teus filhos,  desta

criatura nula
sem razão, método, ciência
cura

foi só, passaram-se anos
atravessei as terras
ergui o substituto
assim vivi. mas não me bastando
as fontes secaram-se

e por detrás desse espantalho, a quem deleguei a função de substituir-me, estava sempre à espreita Uoutro, dilacerado e entediado, raivoso e desdenhoso, crente e errante, mas sempre escondido, sem se achar com direito à cidadania, impondo a si próprio uma clandestinidade como única forma de não sangrar mais, de não se arrebentar de vez. até que nesta noite imensa, ofegante, não suportei mais, ousei e consegui vir aqui, até ti

por entre fendas e musgos
te entrevi - misto de estrela
seda pedra vento

Dala, errante do plenilúnio
girando girando a dança
dança
cadente e ligeira...
na trança do infinito...
sarabanda

são estas as notícias que te traz teu mais recente acompanhante, confuso... fala-me agora, de ti...”

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