31/03/2009

preparar a grande festa da humanidade

No texto abaixo, como escapar do serviço militar, as interessantes peripécias de um jovem para escapar de obrigações impostas pela visão militarista, que por muito ainda influenciará conceitos como os de estado, nação e soberania. E, pelo menos enquanto ainda estiver de pé essa estrutura econômica e política que opõe pessoas e povos, até mesmo nações que lograram romper ou iniciar um processo de ruptura com o capitalismo (felizmente, muitos aqui na América Latina, em maior ou menor grau: Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia, Brasil, Paraguai, Nicarágua e agora o caçula El Salvador) terão que tolerar a presença dessa tola, maléfica e primitiva visão guerreira.

Registre-se também a breve queixa que o rapaz faz dos movimentos anarquistas, com relação à falta de firmeza e coerência dos mesmos. E o interessante é que esse texto vem sendo divulgado por entidades e espaços ligados ao movimento libertário e anarquista. Chamamos a atenção para esse detalhe, aparentemente insignificante, porque isso só mostra que há no movimento a necessária lucidez para perceber e lidar com suas próprias contradições, contradições que fazem parte de qualquer movimento que busca um mínimo de compreensão do desenvolvimento dialético da história e da humanidade.

E também mostra que o importante é ter em mente que, passar do velho para o novo, passar da compreensão à transformação das estruturas - seja para anarquistas, libertários ou socialistas - não significa exatamente agir de forma sempre coerente, perfeita, plena; afinal, isso seria fazer o jogo da velha ordem, seria deixar-se envolver por uma visão purista que somente beneficiaria aqueles que não querem a transformação, que fazem de tudo para negar a presença de pessoas, idéias e movimentos insatisfeitos com a ordem estabelecida.

Aos que querem conservar a ordem, é um ótima tática essa de desqualificar, apontar as incoerências, contradições e supostos oportunismos daqueles que pretendem revolucionar, como se aqueles que apregoam e forjam o novo tivessem que vir como anjos, tivessem que vir já como perfeitos frutos do novo. Como se os agentes da transformação não tivessem o direito de também estar em construção, a viver um constante e às vezes desgastante processo de ruptura com o dia a dia da ordem que negam, e na qual têm que trabalhar, evoluir, criar ou respeitar laços afetivos e familiares. E, nesse processo de recorrente construção e ruptura, claro que existem aqueles agentes que, em maior ou menor grau, aderem aos valores, práticas e vivências que caracterizam a velha ordem, passando reproduzir seus vícios, suas relações de poder, sua visão verticalizada e opressora. Mas isso não significa que todos os agentes da transformação enveredem por esse caminho, ou que não estejam minimamente lúcidos com relação a essas contradições e armadilhas.

Por outro lado, o detalhe acima apontado também mostra que, para aqueles que se colocam revolucionários da ordem, não há palavras, posições ou verdades definitivas. O movimento anarquista é passível das mesmas limitações, incoerências ou contradições que os socialistas. Uns e outros têm que se ver como complementos e não como oposição insolúvel ou agentes mutuamente excludentes.

Anarquistas têm que levar em conta que, talvez, talvez, o projeto de eliminar o Estado limitador, hierárquico e burocrático, somente possa se concretizar junto com o processo socialista, quer dizer, talvez uma sociedade libertária somente possa se consolidar a partir de um mínimo de superação do capitalismo pelo Estado socialista. Enquanto isso, libertários têm que aprender a respeitar e conviver com os agente do processo socialista, mas sem jamais renunciar à tarefa de denunciar os desvios desses agentes, seus deslumbramentos, seus oportunismos, suas reproduções das relações autoritárias próprias da velha ordem.

E, claro, também jamais renunciar à sua tarefa de insistir em apontar para os socialistas, e às pessoas em geral, o horizonte último da caminhada humana sobre a Terra, qual seja, o horizonte do congraçamento, da pacificação, da confiança, da riqueza de relacionamentos, da reverência para com os outros e com o mundo, enfim o horizonte da verdadeira Festa, com a qual podemos nos deparar lá à frente na História.
Anarquistas e libertários talvez sejam os últimos agentes que podem e devem manter acesa a chama que aponta para esse horizonte último da humanidade, e que aponta concreta e lucidamente, com argumentos e análises sérias, convincentes (sem se inspirar na metafísica própria da religião e nem se amparar na liberdade visionária própria da arte). Portanto, devem fazê-lo sem o constrangimento de parecerem utópicos, sonhadores, obsoletos, inconsistentes, escapistas e outros tantos adjetivos que são lançados - ora da direita, ora da esquerda - contra o movimento.

Já socialistas têm que meramente cumprir a sua tarefa de superação e eliminação do Estado capitalista, com eficiência e disciplina, lucidez e coragem, sem se preocuparem com um horizonte muito longínquo, com um hipotético mundo sem contradições e conflitos de qualquer ordem. Socialistas não trabalham com o ideal ou o desejável, mas com aquilo pode ser construído e forjado a partir das condições históricas presentes, concretas. Mas isso não os habilita a ignorar as posições de libertários e anarquistas, ou a desqualificá-las.

Pelo contrário, deveriam entender as aspirações libertárias como algo que mantém acesa a chama da utopia maior para a humanidade, como a lembrança de que a luta não se esgotará na superação do capitalismo, mas terá que ir adiante, rumo à supressão total de toda e qualquer estrutura que aliene o os homens e mulheres de sua palpitante relação com o mundo e consigo próprios.
Socialistas têm que ter em mira o horizonte apregoado pelos movimento libertário - claro, não para se basearem nele, mas para não se mumificarem, não se acomodarem, não se traírem no seu glorioso, redentor e indispensável combate contra o capitalismo, sabedores que os brados e barricadas libertários são como uma alerta para seus desvios de conduta no duro e cotidiano enfrentamento com as estruturas da velha ordem.
E, tão importante quanto os alertas, socialistas têm que aprender a ouvir os chamados à utopia feitos pelos libertários.

Afinal, anarquismo não é brincadeira, não é escapismo ou fuga da verdadeira luta; não é algo abstrato, que existiria independente da realidade humana, o anarquismo não tem vida separada do ser humano, não surgiu antes dos homens e mulheres, as exigências e propostas libertárias são exigências própria da condição humana, há todo um fundamento filosófico, ético e ontológico a ampará-las.
Na verdade, as aspirações libertárias são apenas uma síntese daquilo que há de melhor, mais digno e mais comovente na arte, na religiosidade, na cultura popular, na ação política. O que acontece é que o que diferencia esse diferença desse movimento está exatamente em propor tudo isso para aqui e agora, a essência do anarquismo está na sua postura de acreditar que o melhor do ser humano e da vida pode e deve ser vivido sem mais delongas, sem quaisquer mediações ou condicionamentos, sejam eles filosóficas, políticas, artísticos, religiosos ou econômicos.

Quer dizer, a riqueza libertária está em nos lembrar que sempre seremos capazes de dar o melhor de nós e despertar o melhor do mundo e dos outros aqui e agora. O anarquismo nos lembra que a Grande Festa da vida e do mundo não é utopia, sonho ou delírio, muito menos prêmio raro ou celestial, e sim algo a ser construído pela nossas mãos e mentes, pelos nossos corações e espíritos. . E essa lembrança, esse apelo deve ser levado a sério também pelos seus irmãos de luta, os socialistas das mais diversas correntes.
Roberto Soares Coelho

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