30/10/2009

atento

a noite...
a noite!!!

a lua, a lua...
a rua!!!

a manhã, a manhã...
amanhã!!!

a boneca, a boneca...
a louca, a louca!!!

a chuva, a chuva, a chuva...
a água!!! a água!!! a água!!!

a flor...
a flor da tarde!!!

a vida!!!

a pinga!
manda mais uma...
vicente filho - belo horizonte

27/10/2009

tormentos e utopias de um poeta

guardião invisível

dormi e acordei sonhando...
um caso me desperta
dentro de outro

sonho com um louco
acordo comigo
e penso onde estará o louco

meu café amargo
começa com o meu dia
cada gole seco
um pensamento

já estou no meio do dia
meu tormento...
só espero minha noite
meu louco talvez volte
vicente filho - belo horizonte

Um certo voô da imaginação para comentar os poemas deste mês - como um breve conto.
Em 'guardião invisível', Vicente Filho dá vida a um irrequieto e sonambúlico personagem. Lembra a anônima melancolia de um daqueles passantes de Baudelaire, a vagar por ruas e cidades hostis, rodeado de gentes levadas à indiferença e ao desconhecimento mútuo, um passante que se vê em desamparado exílio de sua terra, desesperançado de qualquer outra acolhida, refugiando-se então na sua prória e secreta interioridade, à espera de se aconchegar novamente na sua obscura ‘loucura’ noturna.

É um retrato simples, mas que com certeza tem a ver com esse nosso tempo, tornado cada vez mais hostil pelo decadente e degradante modo de viver e produzir na modernidade capitalista. E, claro, tem a ver com o artista e o poeta deste tempo, levado muitos vezes a crer apenas na sua verdade, a criar apenas a partir dessa verdade interior, já descrente de uma ação e criação artísticas que comungue com o coletivo e com a vida cotidiana.

Mas, em 'adormece’, o melancólico sonâmbulo é convocado pela fala pausada de Ernesto, como um convite ao descanso, porém não um repouso feito de imobilismo, desistência ou amargura; ao contrário, é um repouso dialético, que sugere um renascer, ou ao menos uma continuidade do caminhar, agora um caminhar enriquecido pelas derrotas e revelações, mágoas e preciosidades que cada um traz consigo. Uma fala bela, rica de imagens sutis e elaboradas que, sem se apoiar num tom ‘político’ ou panfletário, convoca à superação, à ação e à crença, sustentado no puro e simples desvelar-se para as preciosidades e as virtudes de nosso estranho, mágico e cósmico estar-no-mundo.

Como resposta à invocação de Ernesto, em apego’ Vicente Filho oferece ao seu personagem uma tentativa de volta à terra e à unidade perdidas. Tentativa meio que irônica, como se o persongem soubesse de antemão do fracasso em promover esse ingênuo regresso no tempo e no espaço, sabedor de que o resgate de sua plenitude, de sua capacidade de agir, crer e criar exigirá que ele passe por outras terras; seus surdos passos de poeta terão que continuar em busca de outra festa, talvez uma festa menos precária e individualizada, menos submissa aos ditames das grandes propriedades deste mundo.
Além de retornar a um tema que lhe é sempre caro - que é o tema do retrono à terra - no tom do poema há também um retorno de Vicente: uma fala feita de ironia mesclada de melancolia, presente em vários de seus poemas.

E como se prestasse solidariedade - ou como se fizesse companhia - ao nosso personagem em 'geográfico', de Adair Carvalhais, há também uma tentativa de resgate da unidade perdida, mas sem a mesma ironia que corrói a genuína alegria pelo retorno. Porém, se no conteúdo de sua fala percebe-se uma crença ou uma gravidade maior na tentativa de retorno, a forma dessa fala desmente essa suposta certeza: versos quebrados, palavras soltas, sentido que busca se firmar em passos precários - os mesmos surdos passos?

Em ‘desperto’, o inquieto personagem, novamente às voltas com seus cansaços e perplexidades, ainda tenta se enredar nos aconchegantes labirintos da madrugada, numa aparente recusa em sair para o campo aberto de uma novo dia, no enfrentamento de um mundo tornado por demais hostil e apressado, mecânico e sem poesia - nada então como deleitar-se consigo próprio, seu mundo interior, e com as diáfanas orquestras da noite e dos sonhos.

Tudo indica que de nada teria valido seu ininterrupto périplo mundo afora - nem os convites e companhias de outros poetas - mas os últimos versos revelam: há agora a presença de outras pessoas a sustentar e apontar ao poeta a sua tarefa, a sua sina, não importando se essa companhia - a senhora - representa algo ou alguém simbólico: a história, a ação político-poética, o trabalho como crença e construção do novo, ou algo mais individual: a simples entrega à vida amorosa ou familiar. E em seguindo a sua sina o nosso personagem prossegue no seu périplos por parques, tempestades, países.
**************

O dia promete. Há o encontro com a doce presença da poeta Mariana Botelho, que de tanto se extasiar com a luxuriante paisagem de um parque ou floresta, clama à misteriosa alma do mundo que lhe permita esquecer os nomes humanos das plantas e das flores, para mais poder se embriagar exatamente nesse mistério da pura presença do mundo, com sua miríade de formas e cores, movimentos e propósitos; para mais poder deixar a jóia dos seus olhos desvelar-se para a simplicidade e preciosidade com que o mundo a presenteia - expressando assim a sua plena aceitação do convite feito há pouco pelo poeta Ernesto - numa fala amena e discreta, concisa e burilada, como é próprio de sua mineira poesia: suave coisa.

Embora ainda esteja longe, chegará um tempo em que não precisaremos mais distinguir entre poetas e não-poetas, quando todo e qualquer indivíduo poderá fazer de sua vida um poema, e quando todo e qualquer artista poderá fazer de sua arte um enriquecido encontro com a vida das gentes que o cercam, vida e arte sendo então um exercício de proximidade.

Mas, enquanto não construímos esse tempo, o nosso personagem precisa se afastar um pouco dos poetas e se irmanar com os sonhos, abismos e buscas de outras gentes. E eis que há loucura, sonho e ousadia da imaginação também nas chamadas pessoas comuns, simples. É o que se nos mostra através do poema do francês Proudhomme. Por distantes terras da Alemanha segue o nosso poeta, como silenciosa e solidária sombra da louca estrangeira que, à maneira da mineira Mariana, também busca a flor essencial, a forma fascinante, a condensada manifestação do ser e do mistério personificada nalgum perfume e nalguma cor singular.

Mas já aprendeu que, por mais intangível que seja, a flor rara está à mão, tal perfume inebriante a qualquer instante nos é oferecido pelo ser, basta que nos desvelemos o suficiente para o nosso estar-no-mundo. Sabe que é preciso procurar a preciosa ave dos ovos azuis em nós próprios e no mar de formas e presenças que nos rodeia.
Mas ao nosso poeta não cabe contrariar a estrangeira, é preciso deixar que ela própria encontre as suas respostas, esgote sua busca, mesmo que essa inquietude perpasse por toda uma vida e perdure até a morte - o que tem a fazer é apenas acompanhar a estrangeira, solidarizar-se com sua busca.
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Cansado de poetas, de loucos e de irrequietas pessoas. Decide por uma visita a um orfanato, onde possa testemunhar um drama mais cotidiano, e menos etéreo.
Numa primeira leitura, ‘menina no orfanato’ parece refletir descrença e até um certo deboche com a dor alheia, mas na verdade pode ser visto como um aprendizado, como se o nosso poeta não quisesse mais se iludir a si próprio, tendo compreendido que a sua ‘sina’ não lhe permite “poetizar o que não pode ser poetizável” (Flávio Kothe, a respeito de Paul Celan).

E nesse singelo registro do desamparo e da súbita alegria da orfã, reencontra a si próprio, assume de fato a sua tarefa, concilia o poeta, o louco, o andarilho e o vivente no meio de outros viventes. Começa a exercitar o difícil equilíbrio entre a intimidade com o infinito e o testemunho do finito, entre aves de ovos azuis e bonecas de plástico ordinário.

Enfim começa a fazer a sua poesia transitar entre a busca interior e a ação exterior, a viver tanto na companhia dos caçadores do intangível e do sem nome, quanto dos catadaores da vida cotidiana, vê que um mundo não exclui o outro, uma compannhia não exclui a outra, somos todos construtores da difícil e mágica história, da cósmica tarefa dada a nós pelo misterio do ser e do tempo.

Conclui que viver transcende a nossa própria existência, é compromisso com uma presença maior que nós próprios: a vida é por demais delicada, preciosa e ainda incompreensível em sua inteireza– e construída ao longo de bilhões de anos e trilhões de quilômetros - para que, ao final, fique apenas no âmbito de nossos próprios desejos e medos, sonhos e mágoas. E entende que, além dessa tarefa de viver com plenitude e generosidade que cabe a cada um, ao poeta e artista é dado também o trabalho e o privilégio de contribuir para que outros possam de fato despertar exatamente para essa possibilidasde - viver com plenitude e generosidade.

Depois de se despedir de nossa orfã, caminhando novamente pelas ruas, o nosso poeta reflete que - ao lado daqueles que contribuem com o seu trabalho cotidiano e ao lado daqueles que contribuem com a sua ação política, libertária ou guerrilheira, ou mesmo espiritual – cabe ao artista contribuir com a sua sensibilidade, para que de fato se construa um mundo e uma história onde arte e vida sejam um só e mesmo exercício, onde todos possam de fato fazer de sua breve e precária existência um longo, ininterupto e mágico momento de comunhão, generosidade e confiança com todos os que o rodeiam.

Continuando sua andança pelas ruas, lembra-se de poema escrito há tempos por aqueles mesmos lugares. Admirado da leitura que faz daqueles versos que outrora escrevera sem se dar conta, agora confia em que os mendigos do mundo (sejam eles, poetas, trabalhadores, guerrilheiros ou mesmo mendigos de verdade) estarão todos de olhos abertos, mesmo com todas as suas ‘indigências’, e não permitirão que os lobos e maníacos (sejam do primeio, segundo ou terceiro mundo) imponham para sempre ao planeta os seus destrutivos consensos e exércitos.
Confia em que chegará o tempo em que não haverá mais lugar para os lobos, pois até esses terão sua energia potencial canalizada para a construção de um mundo em que todos se enxergarão de fato como ‘sal da terra’ , como ‘luz do mundo’, como olhos e centelha do divino, como pequena chama da grande energia que alimenta e move o cosmos, o ser, o tempo, os homens, mulheres e crianças... e os loucos e as flores sem nome.

Vai além: percebe que, principalmente em tempos difíceis como esse, mais o poeta deve crer e trabalhar nessa direção. Afinal, toda a hostilidade e indiferença, angústia e insegurança, pressa e massificação, que ele vê nas pessoas ao seu redor, pode não significar necessariamente que a barbárie e o disforme tenham se instalado definitivamente no meio do mundo, isso não significa que seja definitivamente vitorioso o padrão capitalista de comercializar e empobrecer a vida e as pessoas, de ferir e depredar o mundo; ao contrário, pode ser que toda essa massificação, brutalidade e passividade signifique apenas que esse modo de estar-no-mundo esteja com os seus dias contados, afinal, é bem provável que tudo chegue a um ponto insuportável, um ponto em que as pessoas finalmente não mais tolerem submeeter-se a uma tão sufocante alienação e seqüestro de sua tarefa de viver com plenitude e generosidade.
****************

Ao crepúsculo, dando por finda a sua peregrinação de um dia tão intenso, recolhe-se a um bar qualquer, afinal há horas que uma poética mas insistente chuva escorre pelas ruas e prédios, a anunciar novembro. E também é hora de buscar alguém a quem contar as suas andanças, reflexões e sensações.
Após ouvi-lo, um desconhecido boêmio, um não-poeta, resume em versos para as peripécias de nosso personagem, fundindo Guimarães Rosa e Fernando Pessoa:

Viver é muito perigoso
quando a alma não é pequena
mas vale a pena a travessia’


Ao que o nosso personagem, grato por síntese tão brilhante - embora simples e despretensiosa – responde ao companheiro de mesa que, se não podemos sempre nos deleitar com nossa melhor hora nas madrugadas e flutuar nas tardes, também não precisamos fazer a travessia de nossos dias e meio-dias como se fossem eternos tormentos.
Afinal, se estamos cada vez mais órfãos e mendigos da vida plena, precisamos, ao longo da travessia, nos manter cada vez mais famintos da Utopia, famintos do grande encontro com o divino, ou seja, o grande e enriquecido encontro de todos nós conoscos mesmos e com o mundo, o ser.

E, já inebriado de bebida e poesia, conclui que para o advento de tão grandioso encontro, não podemos nunca deixar que os exércitos e maníacos nos tornem pequena a alma, que jamais matem a ave de ovos azuis, que em tempo algum pisoteiem a flor rara e sem nome e que não permitamos nunca que apaguem a luz do mundo.
Por fim, brinda e homenageia o anônimo boêmio com um novo poema, basatnte apopriado para o momento, ali mesmo forjado - irônico como de costume, mas sincero e pleno de confiança e gratidão ao mundo e às gentes, e que declamam juntos e já embriagados. Afinal, como logo depois proclama o anônimo boêmio, citando Baudelaire:

“- É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos. Embriagai-vos sem tréguas. De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor".

- Ou de utopia, para não serdes os martirizados escravos da barbárie e de uma vida de plástico... – gargalha o nosso poeta.

Roberto Soares

adormece

sempre atento às virtudes da paisagem
que a jóia dos olhos presenteia
guarda as aves dos ovos azuis, preciosos
vislumbra o abandono da tarde de verão...

se os buritis te chamam, atende-os
que outra estiva igual não acontece
enovela os desertos fiados de teus sonhos
agasalha a criança faminta dos teus olhos...

as quatro porteiras da estrada, obstáculos
que o mundo, desigual, te conjurou...
esquece de teus gritos mais recônditos
não esquece ! caminha e mitiga...

colunas gregas, ilhas pacíficas, estranhas paragens...
nada disso podes vencer ou abarcar
recolhe teus olhos para os mundos mais distantes
beija a mão quente da tarde... flutua...

adormece, amigo
carlos ernesto - viçosa, minas

apego


numa sonolenta manhã
tornei à minha imensa terra
sorrindo de seu olhar indiferente
segui meus surdos passos
no amplo terreiro acimentado
da grande propriedade dos Arandina

à frente, sempre sem me dar por nada
vi alguns semi-analfabetos
em improvisados bancos de escola
a lembrança ameaçava penetrar
pelos ocos de minha armadura

até que veio a mim uma mulher
bela e metida a freira
e me disse que ali
ainda se escrevia com carvão fino

sorri e segui meus surdos passos
até que de longe me voltei
e vi que estava numa parte alta
e pensei pensei longamente
numa festa que houvera ali
vicente filho - belo horizonte

geográfico

demorei a chegar neste
lugar onde a
lua se
põe onde constroem se

sorrisos aqui me
afasto do
que não sou do que não
quero

demorei a me
reconhecer neste
lugar onde nascem os
rios e a

noite arde no
fogão onde
retorno para ser eu

mesmo

adair carvalhais - belo horizonte
(do blog ventos desencontrados)

desperto

podem voar penas
do primeiro galo
que bateu as asas

meu último sono
virulento
caiu como uma pluma

orquestra de muares e cacarejares
deixem-me no meu leito
deleito
minha melhor hora

minha senhora, já de pé
me chama:
- a tua sina te ensina

vicente filho - belo horizonte

23/10/2009

sobre flores sem nome, poetas e loucos

diz mariana botelho:

num dia como hoje
num lugar como esse
o que eu não daria
por uma flor
sem nome...
( do blog suave coisa, outubro de 2009)

diz Sully-Prudhomme:
a louca

dia e noite ela errava a ver quem descobria
a flor que vira acaso, um dia, na Alemanha
pequena e débil flor, flor como as da montanha
de um perfume esquisito e de uma cor sombria

das viagens que fez, trouxe a melancolia
e o incurável pungir dessa lembrança estranha
certo encanto mortal, sem dúvida, acompanha
a flor que na Alemanha, acaso, vira um dia

- quem, porventura, o odor lhe aspira ao cálix, sente
um novo mundo n'alma, abrir-se de repente -
dizia ela a morrer, saudosa desse odor

por ela muita gente a planta em vão buscara
mas a Alemanha é grande e aquela flor é rara
e a louca morre, enfim, sem ver de novo a flor
(Sully-Prudhomme, poeta francês, 1839-1907)

(tradução de Raimundo Correia)

15/10/2009

casamento

1.
Aceitas para os teus olhares
as impurezas deste homem
e, para o teu corpo,
as cicatrizes que ele traz?

Aceitas para os teus sonhos
a aspereza deste homem
e, para as tuas boas lembranças,
as dores que ele provoca?

Aceitas para os teus dias
os ruídos deste homem
e, para as tuas noites vazias,
os gritos que ele te arranca?

Aceitas para a tua simplicidade
a arrogância deste homem
e, para as tuas delicadezas,
os cheiros do asfalto nele?

Aceitas para a tua beleza
a estranheza deste homem
e, para a tua sensualidade,
a prepotência e a força dele?

Diz que sim e a paz te será negada.
Mas não existe outra maneira de amar
senão em guerra.

Amor não é gelo, nem previsível
— não há uma estação do amor.

Amor é simum
avalanche
pesadelo
amor é ermo.

2.
Aceitas para a tua imponência
a permanência desta mulher
e, para as tuas muitas tristezas,
os cristais dos risos dela?

Aceitas para as tuas ausências
a espera desta mulher
e, para o teu lado de ferro,
as asas que ela te dá?

Aceitas para o teu ódio
as luzes desta mulher
e, para os teus dias de angústia,
os mapas que te oferece?

Aceitas para o teu ranger
de dentes os beijos dela
e, até para o teu cansaço,
as almas desta mulher?

Aceitas pra o teu veneno
as veias desta mulher
e, para os teus tempos de câncer,
o abraço em que te protege?

Aceita, tua sapiência,
as pistas desta mulher?
E aceitas que onde ela esteja
é onde estar é melhor?

Diz que sim e tua guerra será negada.
Existem, sim, outras maneiras de amor
que não em guerra.

Amar não é selo, nem imprevisível.
E toda estação, decerto, é estação de amar.

Amar é brisa
planície
pensamento.

Amar é zelo
— e não tem meio-termo.
miguel marvilla - vitória, es

(do blog os mortos estão no living)

cada um por si

O poeta capixaba Miguel Marvilla faleceu neste mês de outubro. Marvila nasceu em Marataízes, sul do ES, e tinha 50 anos. Era formado em Letras pela Ufes e ultimamente dedicava-se à editora que fundou, a Flor e Cultura. De Miguem Marvilla, ‘Desvelar’ publica, acima, o poema casamento e, abaixo, um texto em prosa.

FOI ASSIM: anoiteceu exatamente quando ela, no sinal fechado, percebeu que o motorista do carro ao lado, distraído, mordia levemente o lábio inferior. Induzido por essa visão, o coração dela pulou uma batida. Foi nessa mudança involuntária de ritmo que o outro motorista reparou quando o sinal abriu.
Tornaram-se cúmplices, num acordo feito de avenidas e olhares, enquanto atravessavam a cidade, até uma delicatessen. Ele pediu uma Coca-Cola e ela, um tímido sorvete de creme com crocante. [No jogo de sedução que se seguiu, não foi possível definir quem era assaltante, quem era vítima; quem era conquistador, quem, conquistado.]
Depois, alguém abriu uma porta e deixou que Marisa Monte se materializasse de algum lugar ao fundo e oferecesse a ela o mote para fugir:

Eu não sou da sua rua,
Eu não sou o seu vizinho.
Estou aqui de passagem.
Este mundo não é meu,
Este mundo não é seu.

Mas ela não fugiu e, em resposta, quase rasgou com um pensamento qualquer o silêncio caudaloso que, então, se abateu sobre eles, sem saber que pensavam ambos as mesmas coisas, simultaneamente.
E saíram juntos, abraçados com força, não era porque fosse a primeira hora deles juntos que se furtariam à libido. Muito pelo contrário. Estou aqui de passagem.

É ASSIM: ele subtrai à pele dela a camiseta de algodão e, bolívar, liberta os seios arfantes de sua inexpugnável prisão de lingerie. Ela, serpêntica, enrosca-se nas coxas dele e o surpreende com quantas mãos inventa para tocá-lo. Ele, mal esteve aqui, em beijos abrasivos na planície dos ombros e da nuca, preparando o que haverá em pouco, e já reaparece em outro lugar, desbravando vertigens e regiões que ela ignorava desconhecer na própria anatomia.

Mas. Porque o ar vai ficando irrespirável de tanto uso, é necessário que se abram sem interrupções cortinas portas janelas e, assim, separada do outro, ela retorna rapidamente à consciência e se recompõe. “Não foi para isso que vim”, pensa, sem muita convicção. Este mundo não é meu.

Recortado, nu, contra um néon intermitente, ele também se recupera da presença dela e está mais calmo quando ela torna a aninhar-se em seus braços, sublinhando cada gesto com um olhar muito muito azul. “Pena”, pensam tristemente, hipnotizados.
Os lábios dele beijam de leve o lobo da orelha dela e descem suavemente, sem pressa, até o pescoço delicado que lhes é oferecido. No espaço agora virtual entre os dois, o desejo acumulado de tempos em que ainda não se conheciam forma uma película oleosa, sobre a qual deslizam sons, gostos, cheiros, formas. “Pena mesmo”, repetem, cada um por si.

ANTES QUE um corte brusco de energia elétrica deixe o quarteirão inteiro às escuras, o néon ainda brilha tempo suficiente para ilustrar a surpresa de ambos quando os caninos afiados de um penetram furiosamente a jugular desprevenida do outro, em busca de alimento.

A ilustração lá em cima, "O beijo", pra quem não sabe, foi pintada em óleo sobre tela, entre 1907 e 1908, por Gustav Klimt, um pintor austríaco. Se um dia perguntarem a vcs no Faustão, digam que, junto com Rembrandt (esse vcs vão perguntar ao oráculo quem é, se não souberem), é o meu favorito. Aqui há uma centena de quadros do cara e uma penca de informações preciosas, ainda que básicas, mas... em inglês, sorry.

miguel marvilla - vitória, es

12/10/2009

menina no orfanato

(dia das crianças)

aquela mãe veio do céu
também caiu uma bicicleta
e duas bonecas
uma, pretinha, de pano
com os olhos vermelhos
em forma de estrela
e a outra, de plástico ordinário
dessas de 1,99

vicente gonçalves - belo horizonte