28/01/2011

a bica



corre, sempre a esperar-te
a água da bica
para que você venha
e lave teu rosto criança
tomada a atitude
ela seguirá no fluxo normal
levando para onde você não sabe
teus sonhos da noite dormida
vicente filho



 

a ontológica angústia do despertar

Alguns poemas que falam da manhã, esse momento mágico que no mais das vezes é visto tão somente como sinômino de luz, renascimento, de celebração da vida que recomeça.

Mas a manhã e os instantes do despertar também devem ser vividos como o decisivo momento em que - mesmo sem perceber, ou manifestar explicitamente - confirmamos ou recusamos as escolhas que fazemos para cumprir a nossa inevitável tarefa de estar na vida e de estar no mundo.

Enfim, momento ora admirado ora angustiado, ora de celebração ora de decisão, mas sempre presente, denso e irrevogável. Embora sejamos formados para ignorar e mesmo condenar essa densidade e essa angústia - somos educados para ter a obrigação de apenas celebrar, nunca interrogar ou duvidar, e quanto mais ruidosamente celebramos, sem fazer perguntas, mais somos socialmente aceitos e benvindos.

Mas Sartre já lembrava que somente pedras e couve-flores é que estão imunes à interrogação, à perplexidade, enfim, somente coisas estão imunes à angústia própria do humano ao se descobrir lançado livre (no sentido de indeterminado, sem essência) no mundo, no tempo e na vida.

E a manhã é o momento por excelência desse reconhecimento da liberdade e da indeterminação ao qual estamos 'condenados' (para usar a famosa expressão de Sartre). A manhã, os instantes de acordar: momentos fugazes, mas densos, quando somos como que convidados, ou exigidos, a retomar cada uma de nossas escolhas, ou cada uma das situações que aceitamos que o mundo e os outros nos imponham, ou nos solicitem.

Ocorre que a modernidade tecnicista e capitalista, com suas sociedades de controle, de tudo faz para que situações de incerteza, de precariedade ou de perplexidade não estejam presentes no dia a dia do seu exército de trabalhdores/consumidores (a propósito, vide texto acerca da morte, publicado aqui em novembro).

De manhã, então, nem pensar em perplexidades, interrogações, angústias. É preciso estar a postos para ir atrás da ração diária de trabalho massacrante, despersonalizado, às vezes rastejante, para alimentar adequadamente os mecanismos de poder, dominação e controle das massas, e em troca os soldados do exército recebem a sua cota de sobrevivência - e de ilusões e falsas necesssidades fabricadas pela sociedade de controle, seja lá que soldado for: masculino, feminino ou de terceiro gênero, seja ‘artista’ ou pessoa ‘comum’, seja ‘graduado’ ou ‘povão’, seja ‘militante’ ou ‘alienado’).

E para que esse exército não fique prostrado na cama, é preciso oferecer-lhe efusões, alegrias, metas, sonhos de consumo, de posse, de imagem, de atitudes, enfim, caricaturas de existência. Mas nunca, jamais, permitir que os cansados e domesticados soldados se debrucem sobre esse tenso e ôntico momento de recomeço, de reinventar-se, de assumir novamente ou recusar as suas escolhas no mundo e na vida.

Finalizando, e relembrando: não é que o despertar para a vida e o mundo tenha que se dar sempre no modo de angústia, indeterminação, perplexidade. Mas também não temos a obrigação social, existencial ou afetiva de apenas celebrar e agir de forma autômata, imposta, escamoteando a angústia e a interrogação, que são constitutivos ontológicos essenciais do ser humano, são aqueles que (ao lado da capacidade de se autoperceber e de perceber o mundo, de se admirar, de se fascinar, de celebrar a vida e o mundo) nos diferenciam radicalmente das coisas, dos animais, enfim, para citar novamente Sartre, aquilo que nos diferencia de pedras e couve-flores.

Manhã é isso: momento de se afirmar novamente como existente autêntico, como consciência ciosa de si no meio do mundo e dos outros, com tudo o que isso implica de celebração e de risco, de angústia e de gratidão, de enfrentamente e de comunhão.
***********
Então, alguns versos e verbos que resgatam um pouco dessa vivência do matinal ontológico ou existencial.

Há o brevíssimo poema de Rui Caeiro, todos os dias logo pela manhã, tão fugaz e cortante quanto o reconhecimento do indivíduo ao se deparar com o sempre renovado enigma da manhã e, no caso do poeta, do renovado enigma do encontro coma a palavra criada, ou revelada. 

Há um poema meu, o poema nosso de cada dia, que também fala desse sempre virginal, embora às vezes angustiante, momento de novamente deparar-se com a palavra criada ou revelada, e isso logo de manhã.

Republiquei o poema de vicente Filho, a bica, por achá-lo bastante oportuno: com certeza é o uma das mais crentes orações já feitas por um poeta à manhã.

Com chego cedo ao café, Adilia Lopes faz outra sucinta saudação à manhã, breve confissão da angústia que lhe traz a manhã que lhe ameaça a 'paz'.

O poema deixe-me te dar o verão embora não seja um olhar à manhã e sim ao verão, não deixa de carregar também uma certa saudação à fugacidade e ao impalpável, carrega uma percepção acerca do tempo e do ser, uma interrogação do narrador no meio das coisas que o cercam – enfim, são palavras, imagens e mensagens bastante diferentes dessas com as quais somos bombardeados pela engrenagem nesses longos dias de sol, e só por isso já valeria a sua publicação.

E não poderia ficar de fora o antológico poema de João Cabral de Melo neto, tecendo a manhã, no qual, com ágil inventividade e vibrante apelo,  o poeta tece uma verdadeira rede matinal de imagens e sons.  

19/01/2011

o poema nosso de cada dia

acordar todo dia
babando tantas gotas
de vazio
não traz a cura
perplexa criatura

é-se
desintegrado
nas noites escuras
nas noites brancas
nas noites
há açoites

mas anda...
nas manhãs
do mundo
há deleites
ainda...

roberto soares

todos os dias logo pela manhã

todos os dias logo pela manhã
as palavras

a cansada surpresa de estar vivo
as palavras

rui caeiro
Baba de caracol (2.ª edição), Língua Morta, Lisboa, 2010

15/01/2011

tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

joão cabral de melo neto, em 'a educação pela pedra'

alerta: a besta agonizante começa a escoicear

O Atentado de Tucson pode ser visto como um pesadelo que anuncia um novo despertar, ou para usar uma expressão mais comum, como a tempestade que necessariamente é substituída pela bonança.
O ato assassino do infeliz  Jared Lee Loughner talvez seja aquele que sirva como símbolo maior (mais até mesmo do que o 11 de setembro) do início da irreversível decadência do império dos Estados Unidos da América.

Traz para o plano da realidade aquilo que até então era apenas uma projeção aparentemente alarmista, qual seja, a de que o povo americano poderá passar por um processo de adesão ao fascismo e ao totalitarismo, processo esse incentivado pelas suas elites econômicas, militares e políticas.

Esse mergulho no fascismo seria fruto da resistência dessas elites em reconhecer o fim do império americano, o fim dos EUA como mandatário do planeta. A já conhecida simbologia: antes de de morrer de vez, a besta fera moribunda sai dando coices para todos os lados, tentando resistir ao fim (claro, nada contra cavalos, éguas e similares). 

Nessa desvairada e perigosa obstinação da elite dos EUA, muita dor ainda poderá ser causada ao povo americano e aos povos do mundo inteiro. O Atentado de Tucson talvez seja apenas a primeira e menos trágica dessa dores. O infeliz é apenas um subproduto da manipulação perpretada pelas elites na sua resistência desvairada. O grosso dessa manipulação ainda está por vir.

Algo similar ao que aconteceu na Alemanha nas décadas de 20 e 30: um povo desesperado em relação à sobrevivência, desolado quanto ao amanhã, abandonado pelos seus governantes ineptos, submissos e fantoches, com a auto-estima lá embaixo, tudo isso configura uam situação extremamente propícia para que as elites americanas distorçam a realidade, invertam as causas do drama americano e finalmente conduzam o povo americano a desvarios, disparates, induzindo esse povo a apoiar e mesmo desejar projetos políticos conservadores, de extrema direita, projetos irracionais, desesperados e desumanos, como o são todos os projetos fascistas e nazistóides.

Enfim, são os coices da besta que agoniza e que se recusa a morrer.

Sem esquecer, é claro, a possíbilidade uma guerra em nível mundial, como forma de tentar dar a volta por cima, de tentar reverter uma conjuntura mundial cada ano mais desfavorável, uma conjuntura mundial que a cada ano deixa mais visível como a presença do ex-império americano (ladeado por seus também decadentes e desesperados satélites europeus) é obsoleta, irritante e mal vista.
***************
Mas por mais que a nação americana esteja longe de um histórico de lutas e de tentativas de revoluções socialistas - ao contrário dos países da Europa e de tantos países do chamado terceiro mundo - isso não significa que as elites consigam manter para sempre o povo americano como uma massa amorfa, consumista, barulhenta, despersonalizada, pretensiosa e desconectada das realidades dos diferentes povos do mundo.

Há, sim, um histórico de lutas populares nos Estados Unidos, principalmente no começo do século XX; há,sim, uma tradição libertária em vastos contingentes do povo americano, que culminou inclusive nas lutas antiguerra da década de 60 e nas jamais esquecidas e inigualadas manifestações da geração da contracultura.

Considerar rigorosamente o povo americano incapaz de ultrapassar sua conjuntura, como incapaz de elaborar uma compreensão própria de sua situação hsitórica e, a partir dessa elaboração, avançar dialeticamente no enfrentamento das estruturas de poder e na transformação de sua realidade, uma tal consideração inflexível serve exatamente aos interesses da elite que mantém o povo americano anestesiado e alienado de seu próprio destino. Considerar dessa forma é exatamente fazer o jogo dos mecanismos de controle e dominação.

É preciso aprender a ver o povo americano como tendo a capacidade e a necessidade de, tal como qualquer outro povo, colaborar na tarefa da libertação dos povos, a partir do momento em que promove a sua própria libertação. É preciso aprender a separar a história em potencial do povo americano do execrável e moribunda do império americano, e passar a contar, amis efeetivamente, com o que há nos EUA de movimentos e organizações populares e sociais, para a planetária tarefa de avançar rumo à superação das sociedades de controle e dominação, de desumanização e espoliação.

Enfim, há sempre a possibilidade de que o povo americano, como tantos outros povos, se levante, abra os seus olhos, tome as rédeas de seu destino nas suas mãos - antecipando assim o advento da bonança e expulsando do seu país e do mundo esse pesadelo que se anuncia.
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Abaixo, o texto de Atílio Boron lança, Tiros em Tucson, lança um pouco de luz sobre toda essa complexa e perigosa realidade do f im do império americano.

O atentado nos EUA..., de Ricardo Kotscho, já publicado aqui, faz um paralelo do Atentado de Tucson com os patéticos mas não menos perigosos nazistóides tupiniquins. Ambos msotram como tudo está interligado: o Atentado de Tucson, a campanha eleitoral de 2010, os desvarios da insípida e enjoativa Sarah Palin, o execrável mas inevitável Tea Party, a dramática crise do centro do capitalismo mundial (que talvez não seja ainda a tão esperada crise definitiva), o avanço paulatino da intolerância e do desespero que propiciam a consolidação da canalha fascista - registrando que o artigo de Kotscho traz o necessário alerta de que os coices da besta moribunda terão seus efeitos fascistas aqui no Brasil e na América Latina.

Entre outros bons e lúcidos textos, vale ler também:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17293
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17298.
Dois trechos desse último texto:

"Samuel Johnson, autor inglês da segunda metade do século XVIII, disse que o patriotismo era o último refúgio do canalha. Sua sentença se aplica bem ao caso da extrema direita estadunidense. Ninguém duvida da safadeza de personagens como Sarah Palin e alguns pseudo-jornalistas, mas agora se tem a conexão direta com o super patriotismo homicida. É importante não esquecer que no Arizona já existia um ambiente político protofascista que literalmente tem os imigrantes latinos na mira. A direita e seus aliados nos meios de comunicação foram o motor do clima de ódio que impera não só no Arizona, mas em muitos outros estados dos EUA."

"O senhor Loughner provavelmente não tem ideia desses problemas. Em seu delírio, pensa que só atua defendendo o Sonho Americano que a senhora Palin reclama para si com tanta insistência. Equivoca-se. O paradoxo é que a deputada Giffords não era a única na mira da nova extrema direita estadunidense. O principal alvo desse movimento é precisamente toda a geração de Loughner, uma geração golpeada e condenada a viver sem educação, sem a promessa de um emprego bem remunerado e estável, sem serviços de saúde adequados. Uma geração perdida que nunca poderá aspirar a um melhor nível de vida. Seu sacrifício é para que uma pequena minoria de privilegiados possam viver o sonho americano, sem sonhar com mais nada. "

o atentado de tucson

Tiros em Tucson e a fascistização dos EUA
Uma nota sobre a tragédia em Tucson, Arizona. Como sempre, toda a obra foi de um “maluco”. Não existe nenhuma explicação na sociedade norte-americana sobre estas matanças recorrentes, às vezes com gente comum e outras com conotação política, ou com figuras queridas como John Lennon. A sociedade está bem, o que ocorre é que sempre há um vilão que comete algum crime hediondo.
por Atílio Boron*, em seu blog

É saudável uma sociedade que produz massivamente viciados em drogas e entorpecentes? É saudável uma sociedade que vende todo o tipo de armas de fogo com a mesma facilidade que se vende doces? Como relacionar a tragédia de Tucson com o amadurecimento do processo de fascistização da sociedade norte-americana? O que ocorre quando uma sociedade faz uma propaganda política que diz “envie um guerreiro ao Congresso” e o apresenta exibindo um fuzil de assalto M16? Na continuação, uma tentativa de resposta.

O atentado criminoso contra a congressista democrata, Gabrielle Giffords, e as várias pessoas que a rodeavam – até o momento custou a vida de seis pessoas, incluindo o juiz federal John M. Roll – mostra o alcance do processo de fascistização da sociedade norte-americana.

Com certeza, a explicação será rejeitada tanto pela Casa Branca como pela mídia. O que ocorreu foi obra de um “maluco”, um a mais de uma venenosa linhagem que já matou a John F. e Robert Kennedy, Martin Luther King e Malcom X, só para citar personalidades significativas da cena pública estadunidense.

Não existe a menor intenção em vincular o ocorrido em Tucson com as profundas tendências da sociedade norte-americana que afloram periodicamente e cada vez com mais virulência e impacto massivo (McCarthy, Reagan, Bush Jr e agora Tea Party).

Ocorreu o mesmo com os casos anteriores: aí está o sinistro Informe Warren como prova – assim chamado com o nome do presidente da Corte Suprema dos EUA que presidiu a comissão de investigação de John F. Kennedy – em que apenas uma única pessoa, Lee Harvey Oswald, foi a responsável pelo crime e que não houve conspiração para perpetrá-lo. Não é uma anedota lembrar um dado: um dos integrantes da comissão era o ex-diretor da CIA, Alan Dulles. Era a raposa cuidando do galinheiro.

Gabrielle Giffords, que agora luta desesperadamente por sua vida, representa uma corrente progressista dos democratas, algo muito perigoso num estado como o Arizona, cuja governadora é a republicana racista Jan Brewe – que aprovou uma lei em maio de 2010 que autoriza a polícia a deter e exigir documentos de qualquer pessoa com aparência suspeita, leia-se “latinos”.

Giffords valentemente se opôs a essa lei e não só isso: apoiou no Congresso a Lei da Reforma do Sistema de Saúde e foi a favor da reforma migratória, das experiências com células-tronco e da produção de energias alternativas. Isto é, tornou-se um alvo perfeito para a crescente legião de fascistas norte-americanos.

Por isso, seu adversário nas recentes eleições parlamentares, Jesse Kelly, um ex-sargento dos “marines” que comeu o pó da derrota no Iraque, aparecia em um cartaz de campanha empunhando um rifle M16 e convidando os eleitores a esvaziar sua munição sobre Giffords. Candidato à tropa dos “freaks” (malucos) do Tea Party, o nome de sua “combatente” havia aparecido – como recorda Fidel Castro em suas Reflexões – em um anúncio patrocinado por Sarah Palin, como uma das cadeiras a ser conquistada pelo movimento nas eleições de novembro passado.

Seu distrito, como outros 19, estava marcado por uma mira de fuzil. Essa descarada apologia à violência não perturbou as engrenagens das abaladas instituições da república imperial. O desenlace trágico de tamanha violência era apenas uma questão de tempo. Em uma repugnante demonstração de hipocrisia, o sítio na internet de Jesse Kelly publicou que o autor intelectual do crime rezava pela recuperação da congressista e para as vítimas fatais do incidente.

Obama, incapaz de impor algumas medidas mais “terrenas” para terminar com as crises que corroem seu país, faz o mesmo. Com suas orações, não irá muito longe. No “18 Brumário”, Marx recordava que, quando “no Concílio de Constanza, os puritanos se queixavam da vida depravada dos papas e lamentavam sobre a necessidade de reformar os costumes, o cardeal Pierre d´Ailly disse, com voz firme: ‘Enquanto somente o demônio em pessoa pode salvar a igreja católica, vocês pedem anjos!’”

Com suas orações, Obama está invocando o auxílio dos anjos, quando a única atitude que pode salvá-lo é o implacável exercício do poder (algo que algumas filosofias idealistas e religiosas consideram uma emanação demoníaca) contra a plutocracia que, com sua cumplicidade, está destruindo os Estados Unidos.

Será preciso analisar os detalhes para compreender o que ocorreu. Em primeiro lugar, o mais importante: um país que embarcou numa militarização internacional descomunal precisa cultivar, internamente, atitudes patrióticas, fanáticas e violentas para sustentar ideologicamente seus planos de conquista militar.

O problema é que impossível evitar que essas “qualidades” não sejam praticadas no espaço doméstico – é impossível estabelecer um debate sereno e racional na política nacional. Esta advertência foi feita por Alexis de Tocqueville há mais de um século e meio nos EUA e é mais atual hoje do que no passado. Não foi casual que Kelly tenha proposto esvaziar seu fuzil M-16 sobre Giffords. Alguém tomou nota e seguiu a mensagem.

Em segundo lugar, é preciso avaliar o papel dos meios de comunicação nos EUA – em especial da Fox – que, salvo algumas exceções, alimenta permanentemente o racismo, o fanatismo, a intolerância e a violência diante da indiferença das instituições. Estas deveriam regularizar o exercício da liberdade de imprensa e não fazem isto sob o pretexto de defender a sacrossanta propriedade privada e a liberdade de expressão, embora a mesma esteja estimulando os crimes.

Terceiro: a crise econômica que, como sabemos, estimula toda ordem de comportamentos anti-sociais propensos a criminalizar e, inclusive, satanizar ao outro, ao diferente. Um país onde os pobres empobrecem mais a cada dia e os setores médios baixos estão caminhando para a pobreza, enquanto contemplam uma minoria que enriquece escandalosamente, cultiva o aparecimento de comportamentos e atitudes absurdas que, rapidamente, serão consideradas como normais. Por exemplo, descarregar simbolicamente um M16 em um adversário político. As conseqüências estão à vista de todos.

*Atílio Boron é cientista político argentino
Tradução de Sandra Luiz Alves, para o Blog do Miro
Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=9&id_noticia=145232

13/01/2011

vídeo: mercedes sosa - razón de vivir

Mais um magnífico momento da cultura de nossa latinoamárica: Mercedes Sosa interpretando, junto com  León Gieco e Victor Heredia, a tocante e poética canção de autoria desse último. Não resisiti e fiz uma tradução livre da letra original, tomando algumas liberdades com o fito de reforçar  a sua poesia.

Como é gratificante lembrarmo-nos da existência de momentos assim, nesses tempos de atentados fascistóides, de lastimáveis e nauseantes BBBs e de patéticos endeusamentos aos ronaldinhos da vida.

Mas um dia esse valoroso povo de latinoamérica e de todo o planeta  há de se reencontrar, e se livrar das garras dessa venenosa e desumanizada sociedade de controle, essa  decrépita mas eficientíssima tábua de salvação do decadente sistema capitalista.



razão de viver
victor heredia
(tradução livre: roberto soares)

Para decidir se eu sigo colocando
Este sangue em terra
Este coração que bate seu remendo
de sol e trevas.

Para continuar andando ao sol
Por esses desertos
Para lembrar que estou vivo
No meio de tantos mortos

Para decidir
Para continuar
Para lembrar
Eu só preciso de você aqui
Com seus claros olhos

Ai! fogueira de amor e mestre
Razão de viver de minha vida

Para aliviar o pesado fardo
desses nossos dias
Essa solidão que todos somos
Ilhas perdidas

Para perder esse sentimento
De te perder todo
Para procurar por onde seguir
E escolher o caminho

Para aliviar
Para perder
Para procurar e escolher
Eu só preciso de você aqui
Com seus claros olhos

Ai! Fogueira de amor e mestre
Razão de viver a minha vida

Para combinar a beleza e a luz
Sem perder a lucidez
Para estar contigo sem perder o anjo
Da nostalgia

Para descobrir que a vida vai
Sem nos pedir nada
E compreender que tudo é lindo
E não custa nada

Para combinar
Para estar com você
Para descobrir e compreender
Eu só preciso de você aqui
Com seus claros olhos

Ai! Fogueira de amor e mestre
Razão de viver a minha vida


razón de vivir
victor heredia

Para decidir si sigo poniendo
Esta sangre en tierra
Este corazon que bate su parche
Sol y tinieblas.

Para continuar caminando al sol
Por estos desiertos
Para recalcar que estoy vivo
En medio de tantos muertos

Para decidir
Para continuar
Para recalcar y considerar
Solo me hace falta que estes aqui
Con tus ojos claros

Ay! fogata de amor y guia
Razon de vivir mi vida
Para aligerar este duro peso
De nuestros dias
Esta soledad que llevamos todos
Islas perdidas

Para descartar esta sensacion
De perderlo todo
Para analizar por donde seguir
Y elegir el modo

Para aligerar
Para descartar
Para analizar y considerar
Solo me hace falta que estes aqui
Con tus ojos claros

Ay! fogata de amor y guia
Razon de vivir mi vida

Para combinar lo bello y la luz
Sin perder distancia
Para estar con vos sin perder el angel
De la nostalgia

Para descubrir que la vida va
Sin pedirnos nada
Y considerar que todo es hermoso
Y no cuesta nada

Para combinar
Para estar con vos
Para descubrir y considerar
Solo me hace falta que estes aqui
Con tus ojos claros.

Ay! fogata de amor y guia
Razon de vivir mi vida.

11/01/2011

não entrar no jogo dos perdidos e dos brucutus

Um alerta para que blogueiros, ativistas e simpatizantes dos governos petistas não caiam na armadilha da retórica da radicalização. Afinal, embora estejamos testemunhando um inequívoco momento de transformação da realidade política e social neste espoliado Brasil, ainda estamos muito longe de viver um processo efetivamente revolucionário e de ruptura com as estruturas de poder.

Assim, responder com radicalismo retórico às provocações e intolerâncias dos capangas midiáticos da direita - ou  dos infelizes e  despersonalizados simpatizantes dessa mesma direita - é entrar num jogo ingênuo, nada acrescenta, não reflete nenhum embate ideológico de fato, não responde a uma situação efetivamente revolucionária. Somente os provocadores, os intolerantes, os derrotados e os perdidos na história é que têm a ganhar com esse jogo. Afinal já vencemos a Batalha de 2010 e temos é que nos preparar para a de 2014. 
O instrutivo texto abaixo aborda extamente esssa preocupação.     

 O atentado nos EUA e a radicalização por aqui

por Ricardo Kotscho, do Balaio do Kotscho


Ainda não chegamos a tanto, mas é bom tomarmos cuidado para que o clima de radicalização política, que se acirrou na campanha presidencial, não acabe em tiros por aqui, como aconteceu nos Estados Unidos neste final de semana.

Lá também ninguém esperava que os discursos irados da oposição republicana contra o governo Obama e o seu projeto de reforma da saúde, amplificados na velha e na nova mídia por jornalistas da direita radical, cada vez mais belicosos, fosse acabar em tragédia.

Mas hoje parece ninguém mais ter dúvidas de que “a insensatez retórica que permeia nosso momento político”, na perfeita definição de Matt Bai, no New York Times, levou Jared Loughner, um jovem de 22 anos, a cometer o atentado que deixou seis mortos e feriu gravemente a deputada democrata Gabrielle Giffords, além de outras 13 pessoas, em Tucson, no Arizona.

Autoridades americanas informaram nesta segunda-feira já ter provas de que Loughner planejou a ação. Por que será que, momentos após a divulgação dos primeiros relatos sobre o atentado de Tucson, sumiu da internet o infame mapa de “mira telescópica” de Sarah Palin, que mostrava distritos como alvo de tiros, incluindo o de Giffords, segundo a denúncia de Matt Bai?
Candidata derrotada a vice na chapa republicana, uma espécie de Indio da Costa dos americanos, Palin é a voz mais estridente da oposição a Obama. Em março, logo após a votação da reforma na saúde, ela publicou propaganda colocando alvos em 20 Estados e listava Giffords entre os parlamentares democratas que deveriam ser derrotados nas eleições legislativas de novembro, segundo o relato de Álvaro Fagundes, correspondente da Folha em Nova York.

A oposição partidária por aqui está em férias, mas continua atuante na mídia, até desenterrando toda hora o passado para lembrar a participação de Dilma Rousseff na luta armada e lançando a cada dia novas denúncias contra o ex-presidente Lula.
“O PSDB que me desculpe, mas ter um presidente que vai para a Disneylândia enquanto o governo se inicia é um absurdo. Ficam os desmandos sem oposição”, chegou a se queixar no twitter o ex-secretário tucano Herbert Alqueres.

Nada contra o Sergio Guerra ir passear na Disney, onde eu também estive, mas Alqueres está sendo injusto com os bravos editores, colunistas e blogueiros que continuam dedicados a manter acesa a chama na luta contra o antigo e o atual governo.
Basta ver a grosseria e a intolerância constantes nos artigos e nos comentários dos leitores na internet para constatar que o clima por aqui não é muito diferente daquele que antecedeu o tiroteio com 20 vítimas no Arizona.
Os fundamentalistas pró e contra o governo brasileiro, o que saiu e o que entrou, continuam com o dedo no gatilho, como se a eleição de 2010 já não fizesse parte da história. Agora, caros amigos, gostemos ou não do resultado, só tem outra em 2014.

Matt Bai comparou o quadro atual com os embates ideológicos dos anos 1960, “marcados por uma série de assassinatos políticos que mudaram o rumo da história americana”, e das guerras culturais dos anos 1990, em torno do direito ao porte de armas e ao aborto, quando extremistas de direita deixaram 168 mortos em Oklahoma City.

“O que é diferente no atual momento é o surgimento de uma cultura política em blogs, no twitter e na TV a cabo que, em voz alta e sem hesitar, reforça visões sombrias de extremistas”, constata o articulista do New York Times.

Lá como cá, havia cheiro de pólvora nas palavras. Para virar tragédia, basta aparecer um maluco armado.

09/01/2011

deixe-me te dar o verão

o verão é feito de coisas
que não precisam de nome
um passeio de automóvel pela costa
o tempo incalculável de uma presença
o sofrimento que nos faz contar
um por um os peixes do tanque
e abandoná-los depressa
às suas voltas escuras

josé tolentino mendonça
De Igual para Igual, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001

chego cedo ao café

chego cedo ao café
à hora a que estão a entrar
as batatas e as cebolas
os legumes dão-me paz

adília lopes
Apanhar ar, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010

07/01/2011

contra os abusos da western union

Segue Manifesto da Avaaz  e coleta de assinaturas contra os procedimentos  abusivos da empresa Western Union, que detém o domínio de grande parte das remessas internacionais feitas por trabalhadores imigrantes para os seus familiares nos seus países de origem.

Caros amigos
Neste período de festas, Josh, um estudante do Quênia na Holanda, juntou todas as economias de um ano de trabalho e as enviou para casa, para ajudar a sua família de 10 parentes que passa necessidade. É chocante, mas uma das empresas que monopoliza o envio de remessas internacionais – a Western Union – arrancou 20% do dinheiro destinado à família do Josh cobrando taxas abusivas.
A história de Josh se repete dolorosamente todos os dias ao redor do mundo, em uma escala assombrante – estimados US$ 44,3 bilhões foram tomados em taxas no ano passado! O próprio Banco Mundial recomenda que as taxas de envio não ultrapassem 5% do total, mas o Western Union nunca foi desafiado publicamente a abaixar suas taxas abusivas.

Se nós gerarmos um chamado global agora, poderemos expor as práticas predatórias e forçar eles a diminuí-las. Vamos demandar que o Western Union diminua suas taxas para 5% para os países pobres e em desenvolvimento, quando a petição chegar a 250.000 nomes, nós as entregaremos para o seu conselho de diretores que é sensível à imagem da empresa. Assine agora e depois encaminhe este email para amigos e familiares.

Contribuições de trabalhadores imigrantes para famílias carentes ao redor do mundo contribuem muito mais que a assistência contra pobreza de governos ricos, provendo recursos fundamentais para as economias mais pobres do mundo. O corte nos lucros obscenos de empresas como a Western Union iria aumentar substancialmente a assistência direcionada aos países pobres. Enquanto as famílias necessitadas ao redor do mundo recebem muito menos do que merecem, os executivos da Western Union levaram para casa US$ 8,1 milhões só em 2009.

O próprio Banco Mundial recomenda que as empresas de envio de remessas limitem suas taxas em 5% sobre o valor enviado, mas alguns bancos em empresas têm taxas astronômicas escondidas. Os países que mais precisam, aqueles saindo de uma guerra ou desastre, sofrem as piores perdas por que as empresas de transferências têm monopólio e acordos exclusivos com bancos locais.
Ao invés de ajudar suas famílias, as economias suadas de homens e mulheres que trabalham em hospitais, construção civil e restaurantes, só aumentando os lucros da Western Union. A empresa financia projetos sociais para melhorar a sua imagem corporativa, mas isto não esconde a desigualdade imensa que o seu modelo corporativo perpetua. Vamos erguer nossas vozes para demandar taxas de envio de remessas justas para ajudar a trazer um benefício imediato para as famílias ao redor do mundo. Juntos nós podemos garantir que famílias necessitadas – e não executivos – recebam os benefícios do árduo trabalho dos imigrantes.
Quando cidadãos ao redor do mundo se unem para protestar contra injustiças, nós podemos vencer a ganância e desigualdade que passa despercebida, como nós fizemos muitas outras vezes. Inspirados pelo calor e solidariedade do periodo das festas, vamos garantir que os presentes generosos cheguem onde eles mais precisam.

Com esperança e gratidão,
Luis, Stephanie, Graziela, David, Paula, Ben e toda a equipe Avaaz

Leia mais:
Imigrantes enviam fortunas a seus países:

Eles migram, a Western Union ganha:

Imigrantes pobres nos EUA mandam mais remessas:

Brasil é o segundo maior destino de remessas de imigrantes latino-americanos:

Remessas dos emigrantes são usadas para a educação e consumo:

Migrações sustentáveis:

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05/01/2011

tv globo: o começo do fim?

Sabemos que se o povo brasileiro possibilitar a continuação do processo de transformação política, social e econômica que vem ocorrendo no Brasil nos últimos 08 anos, certamente que até mesmo o até então intocado poder da grande mídia sofrerá as necessárias regulação, diversificação e democratização.

E talvez dentro de dez anos, no máximo, tenhamos marcantes transformaçãoes no âmbito das grandes redes de televisão aberta. Não é difícil imaginar que a já não tão poderosa Rede Globo venha a ser apenas uma entre quatro ou cinco grandes emissoras de televisão.

O instrutivo artigo abaixo, escrito por um jornalista que já trabalhou na Globo e atualmente trabalha na Record, confirma essa difusa intuição que todos nós temos de que, finalmente, vai se consolidando o fim do reinado da arrogância,  da alienação e da despersonalização representado pelo domínio quase total da Rede Globo nos lares brasileiros.   


Os números da Globo: lenta decadência
por Rodrigo Vianna, do blog Escrevinhador

Altamiro Borges, aqui, e Paulo Henrique Amorim, aqui, destacam fatos que demonstram a decadência da TV Globo.
O texto de Miro mostra que o Faustão – em crise de audiência (e de faturamento?) – demitiu a banda de músicos. E que o “Fantástico” enfrenta a pior crise de sua longa história. O Paulo Henrique relata como a audiência do “JN” encolheu em dez anos: o jornal apresentado por Bonner perdeu um de cada quatro telespectadores de 2000 para 2010 – são números oficiais do IBOPE.

São fatos. Não é bom brigar com eles. Mas é bom analisar esse proceso com cautela.
Quando entrei na TV Globo, em 95, o “JN” dava quase 50 pontos de audiência. Era massacrante. O “Globo Repórter” dava perto de 40 pontos.

Em 2005/2006, quando eu estava prestes a sair da emissora, o “JN” já tinha caído pra casa dos 36 ou 37 pontos (havia dias em que o jornal local conseguia mais audiência do que o principal jornal da casa) e o “Globo Repórter” se segurava em torno de 30 ou 32 pontos (programa que desse menos de 30 abria crise, era preciso sustentar a marca dos 30).

Esse tempo ficou pra trás. O “JN” já caiu pra menos de 30 pontos. E o Globo Repórter hoje patina em 24 ou 25 – dizem-me.
O “Jornal da Record” dobrou de audiência. Em São Paulo chega a 10 pontos, em outros Estados passa dos 12 ou 13. Nas manhãs, a Globo e a Record (com o SBT um pouco atrás) brigam pau a pau. E a Record vence em muitos horários matutinos, há meses. Aos domingos, a Globo também sofre. A grande jóia da coroa da emissora carioca é o horário nobre durante a semana: novelas+ JN. Nesse caso, os números revelam que o domínio da Globo se reduz, ainda que de forma lenta.

Muita gente espera o dia em que a Globo vai passar por uma hecatombe e deixará de ser a Globo. Acredito que isso não vai acontecer: a queda será lenta, negociada, chorada…
A Globo poderia ter quebrado ali pelo ano 2000. No primeiro governo FHC, Marluce (então diretora geral) tivera duas idéias “brilhantes”: tomar dinheiro emprestado, em dólar, para capitalizar a empresa de TV a cabo do grupo; e centralizar as operações numa “holding”. Ela acreditou nas previsões do Gustavo Franco e da Miriam Leitão, de que o Real valeria um dólar para todo o sempre! Passada a reeleição de FHC, em 98, o Brasil quebrou, veio a crise cambial e a Globo ficou pendurada numa dívida em dólar que (de uma semana pra outra) triplicou.

A dívida era da TV a cabo mas, como Marluce e os geniais irmãos Marinho tinham centralizado as operações na holding, contaminou todo o grupo. A Globo entrou em “default”. Quebrou tecnicamente. Poderia ter virado uma Varig. Mas conseguiu (sabe-se lá com quais acordos e pressões políticas) equalizar a dívida.

Quando saiu da crise, em meados do primeiro mandato de Lula, a Globo (o jornalismo) estava já sob os auspícios de Ali Kamel – o Ratzinger. Ele conduziu a empresa para a direita: contra as cotas nas universidades, contras as políticas de combate ao racismo (“Não somos racistas”, diz), contra o Bolsa-Família. O grande público não percebe isso de forma racional. Mas (mesmo que de forma despolitizada) sente que a Globo ficou contra todos os avanços sociais dos últimos 8 anos. Lentamente, foi-se criando uma antipatia no público. Ouve-se por aí: a Globo não fica do lado do povão.

Não é à toa que um fenômeno novo surge nas grandes cidades, como São Paulo. Nas padarias, restaurantes populares, pontos de táxi, era comum ver televisores ligados sempre na Globo. Isso há 7 ou 8 anos. Acabou. De manhã, especialmente, a programação da Record e do SBT (e às vezes também dos canais a cabo) entra nas padarias, ocupa os lugares públicos.

Essa é uma mudança simbólica.
Mas é bom não brigar com outro fato: boa parte do público segue a ter admiração e carinho pela progamação da Globo. E há motivos pra isso, entre eles a qualidade técnica. A iluminação, a textura da imagem, o cuidado com o bom acabamento. Tudo isso a Globo conseguiu manter – apesar de muitos tropeços aqui e ali.

Fora isso, apesar de toda crítica que façamos (e eu aqui faço muito) ao jornalismo global, é bom não esquecer que na TV da família Marinho há sim ótimos profissionais, gente séria que tenta (e muitas vezes consegue) fazer bom jornalismo.

Esse capital – qualidade técnica – a turma do Jardim Botânico tem conseguido manter. O que não ajuda: a política editorial, adotada por exemplo durante a posse de Dilma. Ironias desmedidas, falta de compreensão do momento histórico e uma arrogância de quem se acha no direito de “ensinar” como Dilma deve governar. A seguir nessa toada, a decadência será mais rápida…
E o que mais pode entornar o caldo por lá? Grana.

A Globo tem custos altíssimos de produção. Quem conhece de perto o Projac diz que aquilo é uma fábrica de boas novelas e minisséries, mas também uma fábrica de desperdício. Empresa familiar, que cresceu demais. Cada naco dominado por um diretor, como se fosse um feudo. Até hoje a Globo conseguiu manter essa estrutura porque ficava com uma porção gigante das verbas públicas de publicidade (isso mudou com Lula/Franklin) e com uma porção enorme da publicidade privada: o BV – bônus em que a agência é “premiada” pela Globo se concentrar seus anúncios na emissora – explica em parte essa “mágica”; outra explicação é que a Globo detem (detinha!?) de fato fatia avassaladora da audiência.

Com menos audiência, as agências (ou as empresas anunciantes, através das agências) podem pressionar para que o valor dos anúncios caia. Se isso acontecer, a Globo vai virar um elefante branco. Impossível manter aquela estrutura verticalizada se a grana encurtar.
Qual o limite que a Globo suporta? Difícil saber. Mas dispensa da banda do Faustão é um indicador de que a água pode estar subindo rápido.
Outro problema sério: o risco de perder a transmissão do futebol, ou de ter que pagar caro demais para mantê-lo.

Tudo isso está no horizonte. E mais: a entrada das teles no jogo. O Grupo Telefônica, por exemplo, fatura dez vezes mais que a Globo. Como concorrer? Só com regulação do mercado, assegurando nacos para os proprietários nacionais.

Ou seja: a Globo – que é contra a regulamentação (“censura”, eles bradam) por princípio – vai ter que pedir água, vai ter que negociar alguma regulação pra conter os estrangeiros. E aí pode entrar também a regulação que interessa à sociedade: critérios para concessões, e também para evitar o lixo eletrônico e os abusos generalizados na TV. Regulação, como em qualquer país civilizado. Até aqui a Globo tentou barrar esse debate. Mas vai ter que aceitá-lo agora, porque ficou mais frágil.

De minha parte, não torço pra que aconteça nenhuma “hecatombe”, nem que a Globo quebre. Mas para que fique menos forte, e que o mercado se divida.
Parece que é isso que está pra acontecer. Seria saudável para o Brasil.