21/01/2021

sobre verdes e cinzas

O meu fotopoema "casa verde" é uma singela conversa com uns versos de Esteer Basílio, publicado há pouco no Instagram:


grande pedra no verde ve: cinza

parede de pedra na cidade verte: lares

com seus dois olhos, a pedra testemunha:

a sua esquerda, o desolar o desolar

a sua direita, como falar?

:

uma selva de torres

e um quase-mar


Esse poema de Esteer é um diálogo com outro fotopoema meu, que criei, lá anos atrás.  Palavras minhas acerca de uma fotografia que registrei em Ipatinga, Minas. Ei-lo:




pequena pedra
no verde vê                         água
paredão de pedra
na névoa verte                    água
pedra de cá pede
pedra de lá perde                água

lá, pressa e fuga da             água

cá, prece e pedido de          água


Achei interessante e gratificante o lúdico jogo. No seu poema Esteer se inspira no dialogo de minhas pedras em meio ao verde transcendente, denso, mas traz o seu olhar para o meio das suas desoladas pedras urbanas, sufocadas, intranscendentes.

E, por coincidência, começaram a demolir, há pouco, uma casa, a Casa Verde, ao lado e abaixo da Catedral de Vitória, perto da qual gosto muito de passar, a caminho de meu trabalho. Para mim, um desses entes e lugares que nos remetem a Origem, ao frescor e silencio com que o Ser se manifesta nos entes.

Por óbvio, quando já estamos suficiente abertos para o manifestar, para a aparição dessa Origem através dos entes, não é preciso nenhum lugar especial, nenhuma espécie de "mandala" ou de fetiche,  para que tenhamos acesso a abertura que o Ser constante, incessante e silenciosamente nos oferece, a qualquer tempo e lugar

Mas, por outro lado, certamente que - nessa busca e encontro da Origem, do frescor do Ser através dos entes - cada um de nós, com sua trajetória de vida toda própria e singular,  tem a legítima necessidade  de se identificar com este ou aquele lugar, com esta ou aquela situação, neste ou naquele momento.

Esse é, então, o meu "caso" com a Casa Verde perto da Catedral. Um lugar, um momento, uma situação escolhida pela minha consciencia para escutar, ver, sentir a Origem, a abertura do Ser através dos entes -  no caso, Origem e abertura que se deu através dos vários entes, ou elementos, presentes na manhã e nas proximidades da Casa Verde e da catedral.

E, então, acompanhado das fotos, nasceu o poema, certamente vindo ao mundo também inspirado pela necessidade - inconsciente, espontanea , por óbvio - de continuar a conversa poética com os versos de  Esteer Basílio.  

E um outro registro. Embora eu não tenha chegado a frequentar, a Casa Verde chegou a funcionar como espaço cultural, espaço de resistencia de um grupo de artistas, acho que mais ligados a música e/ou teatro experimental. Então , o poema não deixa de ser um testemunho de mais essa demolição da memória de uma cidade e de suas pessoas, em nome da outra cidade, da "cidade que eles constroem em busca da felicidade" (Paul Celan).

14/01/2021

a casa verde

                                  a esteer basílio

leia também   sobre verdes e cinzas


a menina que lépida
subia a ladeira da manhã
e surpresa-sorridente súbito 
 admirou e arquitetou fantasias:


bem que a solitária casa verde
poderia se manter de pé
bem que dessa vez
os bichos deixassem
livre a verde e velha  lindeza 
a sua frágil e simples verdeza
já ferida de morte, mas viva
e altiva - uma diva e dádiva 
para a menina que arquiteta
tão no seu lugar, plantada no tempo
sob a sombra do branco templo
e da alta torre protetora 
que ainda intenta alertar
aos cegos bichos demolidores:
haverá crime, pecado, sujeira
e cegos, e também surdos
não ouvem o Alto
não vêem o Branco
não sentem o Azul
não cantam com o Negro
 
não podem admirar
a verdadeira obra de arte
pintura que juntos criam:
a casa verde, o anil céu
a alva alta torre catedral
o negro poeta pássaro
o cinza triste do olhar menina

 
os bichos, coitados e cruéis
e seus poderosos braços e máquinas
e maravilhosas ideias e engenharias:
peças de sempre a servir
 “as cabeças monstruosas
e a cidade que elas constroem
em busca da felicidade”  *

inda assim a menina passa leve
releva as cinzas dos bichos
desolha o desolado e o quase-demolido
e o olhar só leva a lavada alma da manhã
flutuando como moldura da pintura
e é só o que irá morar na sua memória


a menina a arquitetar a quimera
da casa verde eternamente em pé
num mundo multicolorido
sem as sombrias cinzas expelidas
"das cabeças monstruosas” 



*   versos de paul celan, poeta  romeno (1920-70)