22/04/2010

a voz ancestral

O poema abaixo, de Fernando Pessoa, vai como resposta a uma solicitação do Beto, do blog rascunhos de um pagão, em comentário feito ao poema a Deus, de Carlos Ernesto.

Bastante apropriado, aliás, já que nesse poema o poeta português mostra uma faceta sua não muito conhecida, ou não muito comentada: a sua ligação com o ocultismo. A esse respeito, um breve trecho do blog vidas lusófonas:
"Começa a procurar respostas nas ciências ocultas. "Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos e em existências de diversos graus de espiritualidades", revela. Entusiasma-se com as Sociedades secretas (Rosa-Cruz, Maçonaria, Templários). Conhece o espiritismo, a magia, a cabala. Traduz para o português muitos livros da Colecção Teosófica e Esotérica. Sob a influência do ocultismo escreverá O último sortilégio e Além-Deus. Inicia-se e cultiva, sobretudo, a astrologia."

Com inquetionável mérito, o poema de Pessoa complementa a seleção dos poetas publicados em Março e comentados no texto poemas para Deus. Grato ao Beto por ter me permitido a oportunidade de suprir essa lacuna.

Pois para além da mensagem ou motivação de Pessoa, o poema se realiza de fato como uma invocação, como um chamado ao Mistério. Há um lamento que se faz pausado, que sabe de sua caminhada em direção ao desencanto.

Desencanto com a perda da sacralidade das coisas, ou melhor, de nossa perda ou embotamento para vivenciar a sacralidade das coisas, perda essa advinda com o Iluminismo e com o predomínio da álgida claridade dessa Razão que sustenta e conduz a história moderna.

Não importa quais as 'sacras potências' que Pessoa invoca, o que importa é o poético resgate que faz do sagrado, o resgate da relação do poeta com o sagrado, através de uma míriade de imagens, num verdadeiro desfile de coisas e sentimentos que adquirem vida, pulsação, na voz do poeta as coisas finitas readquirem a sua capacidade de vibrarem junto com o Infinito, ou por outra, o Infinito se revela na voz do poeta e celebra a si próprio, mesmo que através de um lamento.

Por último vale comparar o poema de Pessoa com a deus de Ernesto e com carta de Cecília Meireles. Em Pessoa há o lamento pela perda da sacralidade, do 'dom', em Ernesto há a orgulhosa resistência do poeta-século XX em ver sentido na entidade chamada Deus, e em Cecília há aceitação e comunhão apesar do artifício literário de uma falsa acusação, acusação que na verdade é apenas uma oportunidade para celebrar o Infinito e o Mistério.

Mas em todos os três poemas a mesma riqueza, a mesma abundância de imagens, situações e sensações. Como se fosse uma úncia e mesma voz - ancestral e infatigável voz do Infinito a se parir através do finito humano.

o último sortilégio

Já repeti o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.

Outrora meu condão fadava as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
E as folhas da floresta eram lustrosas.

Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado erguida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.

Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
A substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.

E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
Inevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.

Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti,
Se já não podeis dar-me essa beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Aos menos meu ser findo dividi —
Meu ser essencial se perca em si.
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!

fernando pessoa
("Fernando Pessoa - Obra poética - Volume único", Cia. José Aguilar Editora, Rio de Janeiro)

******************************

21/04/2010

sabedoria paterna I








sabedoria paterna II

Vejam acima que bela seqüência de charges - embora constrangedora e entristecedora.

Como o chargista capta com argúcia a transformação da infância em infâmia consumista e individualista. Ao pais nada mais a fazer do que repassar de forma robotizada a estreita mensagem de vida que herdaram, ou que lhes foi imposta ao longo de uma existência vivida de acordo com valores nunca questionados.

Junte-se essa tendência para a omissão e para a resistência em exercitar o espírito crítico; junte-se a legítima preocupação dos pais com o futuro de suas frágeis crianças; junte-se a extrema eficiência do capitalismo para manipular nossas fragilidades e afetos e essa tendência do ser humano em se acomodar, em se satisfazer com falsas promessas de plenitude e com fáceis seduções.

E o que se tem é isto retratado pela charge: crianças desde tenra idade possuídas, estupradas por apelos que as alienam de si próprias, que as roubam daquelas descobertas autênticas, apreensões poéticas e mágicas, daqueles diálogos inaugurais com o mundo e com o ser, que somente podem ocorrer na nossa infância.

Triste, muito triste. Nem Marx deve ter imaginado que para sobreviver o capitalismo precisaria lançar mão dessa usurpação da magia, do lúdico e da metafísica. Crianças que, além de usurpadas de si mesmas, terão grande chance de se exercerem como jovens e adultos mimados e arrogantes, tolos e presunçosos - mal habituados a conseguir tudo aquilo que desejarem, educados para não enxergarem o outro como pessoa e sim como mero obstáculo ou confirmação de seu tolo narcisismo, já que os seus pais e elas próprias foram assim forjados, seduzidos e manipulados pelos apelos consumistas, superficiais e individualistas.

Pais e filhos a viverem num virtual mundo de falsos desejos e plenitudes: bela geração de almas de plástico que irá sustentar e administrar a bárbarie capitalista do futuro. É de se reconhecer o extremo brilhantismo do capitalismo ao descobrir esse filão do consumismo infantil, essa extrema eficiência com que o capitalismo prepara e renova sua prole presente e futura.

A finalizar, vale registrar mais uma vez o traço ao mesmo tempo sensível e implacável do cartunista: repare-se no olhar meigo, inocente e disponível do bebê, mas também um olhar solícito, grato, ávido para assimilar as preciosas lições de seu sábio e assustado papá.

Mais do que nunca vive o alerta antigo: Socialismo ou Barbárie!

*****************

Já que este é também um blog de poesia, busquemos abaixo,  num poema de Cecília Meireles,  um complemento para essas constrangedoras imagens do bebê: Cecília há muito já  aceitava que nem sempre  beleza e  inocência podem ou devem caminhar juntas com inteligência, a sensiblidade e a reverência ao mundo e ao outro.
Nestes tempos de bárbárie, então, em que até as nossas crianças estão à mercê do desespero da besta fera agonizante chamada capitalismo...

os dias felizes

Os dias felizes estão entre as árvores
como os pássaros:
viajam nas nuvens
correm nas águas
desmancham-se na areia.

Todas as palavras são inúteis
desde que se olha para o céu.


A doçura maior da vida
flui na luz do sol,
quando se está em silêncio.

Até os urubus são belos
no largo círculo dos dias sossegados.
 Apenas entristece um pouco
este ovo azul que as crianças apedrejaram:

formigas ávidas devoram
a albumina do pássaro frustrado.

Caminhávamos devagar
ao longo desses dias felizes
pensando que a Inteligência
era uma sombra da Beleza

cecília meireles

veja charge e texto sabedoria paterna