28/01/2011

a ontológica angústia do despertar

Alguns poemas que falam da manhã, esse momento mágico que no mais das vezes é visto tão somente como sinômino de luz, renascimento, de celebração da vida que recomeça.

Mas a manhã e os instantes do despertar também devem ser vividos como o decisivo momento em que - mesmo sem perceber, ou manifestar explicitamente - confirmamos ou recusamos as escolhas que fazemos para cumprir a nossa inevitável tarefa de estar na vida e de estar no mundo.

Enfim, momento ora admirado ora angustiado, ora de celebração ora de decisão, mas sempre presente, denso e irrevogável. Embora sejamos formados para ignorar e mesmo condenar essa densidade e essa angústia - somos educados para ter a obrigação de apenas celebrar, nunca interrogar ou duvidar, e quanto mais ruidosamente celebramos, sem fazer perguntas, mais somos socialmente aceitos e benvindos.

Mas Sartre já lembrava que somente pedras e couve-flores é que estão imunes à interrogação, à perplexidade, enfim, somente coisas estão imunes à angústia própria do humano ao se descobrir lançado livre (no sentido de indeterminado, sem essência) no mundo, no tempo e na vida.

E a manhã é o momento por excelência desse reconhecimento da liberdade e da indeterminação ao qual estamos 'condenados' (para usar a famosa expressão de Sartre). A manhã, os instantes de acordar: momentos fugazes, mas densos, quando somos como que convidados, ou exigidos, a retomar cada uma de nossas escolhas, ou cada uma das situações que aceitamos que o mundo e os outros nos imponham, ou nos solicitem.

Ocorre que a modernidade tecnicista e capitalista, com suas sociedades de controle, de tudo faz para que situações de incerteza, de precariedade ou de perplexidade não estejam presentes no dia a dia do seu exército de trabalhdores/consumidores (a propósito, vide texto acerca da morte, publicado aqui em novembro).

De manhã, então, nem pensar em perplexidades, interrogações, angústias. É preciso estar a postos para ir atrás da ração diária de trabalho massacrante, despersonalizado, às vezes rastejante, para alimentar adequadamente os mecanismos de poder, dominação e controle das massas, e em troca os soldados do exército recebem a sua cota de sobrevivência - e de ilusões e falsas necesssidades fabricadas pela sociedade de controle, seja lá que soldado for: masculino, feminino ou de terceiro gênero, seja ‘artista’ ou pessoa ‘comum’, seja ‘graduado’ ou ‘povão’, seja ‘militante’ ou ‘alienado’).

E para que esse exército não fique prostrado na cama, é preciso oferecer-lhe efusões, alegrias, metas, sonhos de consumo, de posse, de imagem, de atitudes, enfim, caricaturas de existência. Mas nunca, jamais, permitir que os cansados e domesticados soldados se debrucem sobre esse tenso e ôntico momento de recomeço, de reinventar-se, de assumir novamente ou recusar as suas escolhas no mundo e na vida.

Finalizando, e relembrando: não é que o despertar para a vida e o mundo tenha que se dar sempre no modo de angústia, indeterminação, perplexidade. Mas também não temos a obrigação social, existencial ou afetiva de apenas celebrar e agir de forma autômata, imposta, escamoteando a angústia e a interrogação, que são constitutivos ontológicos essenciais do ser humano, são aqueles que (ao lado da capacidade de se autoperceber e de perceber o mundo, de se admirar, de se fascinar, de celebrar a vida e o mundo) nos diferenciam radicalmente das coisas, dos animais, enfim, para citar novamente Sartre, aquilo que nos diferencia de pedras e couve-flores.

Manhã é isso: momento de se afirmar novamente como existente autêntico, como consciência ciosa de si no meio do mundo e dos outros, com tudo o que isso implica de celebração e de risco, de angústia e de gratidão, de enfrentamente e de comunhão.
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Então, alguns versos e verbos que resgatam um pouco dessa vivência do matinal ontológico ou existencial.

Há o brevíssimo poema de Rui Caeiro, todos os dias logo pela manhã, tão fugaz e cortante quanto o reconhecimento do indivíduo ao se deparar com o sempre renovado enigma da manhã e, no caso do poeta, do renovado enigma do encontro coma a palavra criada, ou revelada. 

Há um poema meu, o poema nosso de cada dia, que também fala desse sempre virginal, embora às vezes angustiante, momento de novamente deparar-se com a palavra criada ou revelada, e isso logo de manhã.

Republiquei o poema de vicente Filho, a bica, por achá-lo bastante oportuno: com certeza é o uma das mais crentes orações já feitas por um poeta à manhã.

Com chego cedo ao café, Adilia Lopes faz outra sucinta saudação à manhã, breve confissão da angústia que lhe traz a manhã que lhe ameaça a 'paz'.

O poema deixe-me te dar o verão embora não seja um olhar à manhã e sim ao verão, não deixa de carregar também uma certa saudação à fugacidade e ao impalpável, carrega uma percepção acerca do tempo e do ser, uma interrogação do narrador no meio das coisas que o cercam – enfim, são palavras, imagens e mensagens bastante diferentes dessas com as quais somos bombardeados pela engrenagem nesses longos dias de sol, e só por isso já valeria a sua publicação.

E não poderia ficar de fora o antológico poema de João Cabral de Melo neto, tecendo a manhã, no qual, com ágil inventividade e vibrante apelo,  o poeta tece uma verdadeira rede matinal de imagens e sons.  

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