28/04/2009

paisagem urbana, humana (I)

Junte-se o aparecimento da gripe suína, com pessoas acuadas e mascaradas, a lembrar mórbidos cenários futuristas, junte-se as recorrentes crises econômicas do capitalismo, junte-se as primeiras desordens climáticas supostamente resultantes do aquecimento global, junte-se o desemprego, a miséria e a perplexidade de alguns, o consumismo, o medo e a modernosa/presunçosa anestesia de outros, junte-se a institucionalização das violências (mais sofisticada nos países ricos, do tipo garotos e desempregados que assassinam pessoas aos montes, e cada vez mais brutal e cínica nos nossos países de periferia), junte-se colossais engarrafamentos com uma multidão de motoristas a praguejarem dentro de seus tão acalentados sonhos de consumo (os famigerados automóveis, que fazem girar as engrenagens da economia, entopem as ruas já atulhadas de transeuntes e ambulantes e espalham seu odor fétido e seus ruídos agressivos pela cidade afora), junte-se a vertiginosa derrocada das chamadas instituições democráticas e de alguns dos aparatos ideológicos e de controle a serviço do Estado capitalista (escolas, parlamentos, ‘justiça’, polícias, igrejas), junte-se a crescente capitulação e imobilismo da esquerda institucionalizada, junte-se tudo isso e não há como não lembrar de um poeminha de Waldo Motta, publicado em 1991:

turba

quereis fugir
ondas em pânico?
não há onde ir.

Recado curto e grosso.
Mas talvez haja, sim, um lugar para ir. Para as ruas, uns ao encontro dos outros, ao encontro do projeto coletivo, libertário e planetário de finalmente termos o comando de nossas vidas, o projeto de finalmente podermos decidir quais são realmente as nossas necessidades e as nossas potencialidades, o projeto de decretarmos o fim da conquista pela conquista, o fim do domínio pelo domínio, o fim do domínio da lógica predadora e estúpida do capitalismo sobre as delicadas e complexas riquezas do mundo e de nós próprios.
Talvez haja, sim, um lugar para ir, mas um lugar ainda a ser construído, construído por nós, bandeirantes de nós mesmos. E, aí sim, talvez a ingenuidade juvenil do poema abaixo (de minha lavra, escrito no distante 1988) possa dialogar com a corrosiva e implacável certeza do poemeto de Waldo Motta:

bandeirantes do arco-íris

tudo úmido e colorido.
mas um dois três operários
as chinelas de dedo
pedalando molemente as bicicletas
cortaram nosso caminho
fazendo-nos parar no meio da rua
em frente ao jardim

nossos pés estacaram
em cima dos paralelepípedos
nossos rostos tomavam
das gotículas que caíam das ramagens

nossos e deles olhares se encararam
ao mesmo tempo que abraçavam por inteiro
as árvores vivas verdes escorrendo
sobre nós, sobre pedras, sobre o instante

houve a fugaz impressão
de que as árvores nos olhavam
as suas bicicletas nos olhavam
enquanto todos nos olhávamos molhávamos
na umidade que orava e orvalhava na tarde

olhar relâmpago, fogo azulado
tempo verde e exato
de realimentar na tarde cinzenta
a rubra crença de um dia
marcharmos juntos em avenidas
de punhos e corações erguidos
rumo às trilhas do arco-íris
(viçosa, abril de 88)

Textos relacionados: ocupar as ruas, manter a chama e explosões do verbo e da cidade (esse último a ser publicado em maio)

Roberto Soares Coelho

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