Gostaria de comentar aqui um duplo cruzamento: entre duas excelentes obras literárias, por um lado, e entre estas obras e a própria tarefa do escritor, por outro. Na verdade, escrevi este texto em 1992, para ser publicado no 'Nova Expressão', jornal cultural alternativo que eu e Eudes de Souza, atualmente professor de português na rede estadual de Minas, editávamos em Viçosa, MG.
Trata-se de “Os trabalhadores do mar” (1866), de Victor Hugo, e “O salário do medo” (1950), de Georges Arnaud. Dois livros com uma convergência: ilustram de forma comovente, mas sem pieguices e ideologias, a admirável presença do herói anônimo nas conquistas da civilização. Essas desconhecidas presenças que, ora complementam de igual para igual, ora até mesmo superam os feitos mais consagrados dos comandantes ocidentais.
Um brevíssimo resumo dos dois livros.
Um brevíssimo resumo dos dois livros.
“Os trabalhadores...”: Mess Lethierry é um capitalista pioneiro, dos tempos da nascente revolução industrial. Tem uma filha adotiva, Déruchette, a quem o excêntrico operário e marinheiro Gilliat dedica um enigmático amor. Lethierry investe todo o seu capital num investimento ousado: compra um navio a vapor, a Durande, para fazer a travessia do Canal da Mancha, uma “prodigiosa novidade” para a época, na ilha de Guernesey. O negócio vai bem até que a Durande encalha no meio de rochedos. O local do naufrágio é perigosíssimo, inacessível para um salvamento com os recursos da época. Gilliat, sem ninguém saber, vai até o local e aí, depois de dias e noites terríveis, consegue trazer a Durande de volta. Lethierry quer que ele se case com Déruchette . Mas Gilliat se deixa morrer afogado pela maré alta, numa espécie de cadeira natural lavrada na rocha a beira-mar, onde ele costumava ficar horas e horas em silêncio, sentado, nas ocasiões de maré baixa.
“O salário...”: há um violento incêndio num poço de petróleo de uma multinacional americana, dezesseis trabalhadores indígenas mortos. A única forma de apagar o sinistro seria através de poderosas ondas de vento provocadas por explosivos colocados em volta do poço. Mas seria necessário transportar a nitroglicerina através de uma distância de 500 km. A estrada de chão é razoável, mas para esse tipo de transporte é preciso muita perícia e coragem: qualquer choque mais forte e o instável líquido se aqueceria a uma temperatura fatal. A Crude consegue contratar quatro motoristas (aventureiros fracassados, desesperados para sair da Guatemala) para tentar levar a perigosa carga, em dois caminhões. Um dos veículos explode na estrada matando os dois motoristas. Gerard, o único que consegue chegar vivo até o poço, recebe o prêmio sozinho (seu companheiro morrera por falta de socorro do próprio Gerard). Mas, na entusiasmada viagem de volta, Gerard também morre, num acidente bobo.
Fica difícil, no exíguo espaço de um artigo, ilustrar a idéia apontada no início, a da admirável tarefa desse dois heróis anônimos. Só mesmo lendo os livros, envolvendo-se na quase mágica batalha de Gilliat: dos rochedos e do fundo do mar ele retira o que comer, improvisa ferramentas, um abrigo onde se proteger das tempestades e do negrume, do navio ele retira material par fazer um 'muro' debaixo d'água, que protegesse o local de trabalho da ação das correntes marítimas, para citar apenas algumas de suas peripécias.
E acompanhar a sôfrega viagem de Gérard e seus companheiros, minuto a minuto no limiar de um colapso, o corpo e a consciência eletricamente ligados a cada buraco da estrada, que poderiam provocar uma explosão na volátil e perigosa carga. E, além da preocupação com os buracos e com uma velocidade mal calculada (tinha que ser ora mais devagar, ora mais rápido, por causa das "costelas" da estrada, por exemplo), há ainda o pavor do fortíssimo sol tropical a aquecer o tanque de explosivo. E é tudo concreto, passível de ser realizado, não há brincadeiras, Victor Hugo e Arnaud não recorrem a efeitos especiais, sabem do que estão falando.
“O salário...”: há um violento incêndio num poço de petróleo de uma multinacional americana, dezesseis trabalhadores indígenas mortos. A única forma de apagar o sinistro seria através de poderosas ondas de vento provocadas por explosivos colocados em volta do poço. Mas seria necessário transportar a nitroglicerina através de uma distância de 500 km. A estrada de chão é razoável, mas para esse tipo de transporte é preciso muita perícia e coragem: qualquer choque mais forte e o instável líquido se aqueceria a uma temperatura fatal. A Crude consegue contratar quatro motoristas (aventureiros fracassados, desesperados para sair da Guatemala) para tentar levar a perigosa carga, em dois caminhões. Um dos veículos explode na estrada matando os dois motoristas. Gerard, o único que consegue chegar vivo até o poço, recebe o prêmio sozinho (seu companheiro morrera por falta de socorro do próprio Gerard). Mas, na entusiasmada viagem de volta, Gerard também morre, num acidente bobo.
Fica difícil, no exíguo espaço de um artigo, ilustrar a idéia apontada no início, a da admirável tarefa desse dois heróis anônimos. Só mesmo lendo os livros, envolvendo-se na quase mágica batalha de Gilliat: dos rochedos e do fundo do mar ele retira o que comer, improvisa ferramentas, um abrigo onde se proteger das tempestades e do negrume, do navio ele retira material par fazer um 'muro' debaixo d'água, que protegesse o local de trabalho da ação das correntes marítimas, para citar apenas algumas de suas peripécias.
E acompanhar a sôfrega viagem de Gérard e seus companheiros, minuto a minuto no limiar de um colapso, o corpo e a consciência eletricamente ligados a cada buraco da estrada, que poderiam provocar uma explosão na volátil e perigosa carga. E, além da preocupação com os buracos e com uma velocidade mal calculada (tinha que ser ora mais devagar, ora mais rápido, por causa das "costelas" da estrada, por exemplo), há ainda o pavor do fortíssimo sol tropical a aquecer o tanque de explosivo. E é tudo concreto, passível de ser realizado, não há brincadeiras, Victor Hugo e Arnaud não recorrem a efeitos especiais, sabem do que estão falando.
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Mas, voltando a Gérard e Gilliat, eles tinham mesmo que morrer?
Eles personificam a clássica definição que os gregos davam para o herói: mistura de divino e de humano, o divino realizável, tornado possível pela ação dos mortais. Mas se os heróis ousam humanizar o divino, também pagam um alto preço por terem se envolvido com o "fogo do céu" (Hölderlin).
Finda a tarefa do herói é como se existisse um vazio, o cotidiano humano, após o retorno, parece por demais lento, estranho, sem perspectivas. Já no primeiro dia de suas voltas ( e o último de suas vidas) é como se Gérard e Gilliat fossem agarrados pela saudade do Absoluto, do transcendente que haviam experimentado nos últimos dias. Uma saudade que, num nível secreto e inextirpável, deve ter instilado neles um obscuro desejo de morrer, de repousar. Os quatro mil dólares de prêmio (que permitiriam a Gérard retornar à Europa, liberto de uma vida deteriorada num país miserável do terceiro mundo) e o casamento de Gilliat com Déruchette seriam prêmios irrisórios, por demais humanos, para quem havia por alguns dias incorporado no corpo e na consciência situações cruciais da evolução da civilização ocidental: o salvamento do mais moderno meio de transporte da época e a garantia de fornecimento da mais importante fonte de energia do século XX.
O prêmio justo seria que fossem elevados à condição de comandantes, mas, na atual etapa da história, um prêmio impossível para marinheiros, aventureiros e operários que não tiveram a sorte de nascer no lugar de pseudo-comandantes.
Resta dizer que nesse morrer dos heróis vislumbra-se, também, um outro paralelo, do qual falamos no início: a trajetória da personagem se entrecruzando com a do escritor.
É preciso não esquecer que personagens são submissos à vontade e às necessidades inconscientes do autor. E depois de forjar uma relação de tamanha intensidade de nossos heróis com o Absoluto, para o escritor é sem sentido, é banal conceder ao personagem uma existência limitada no meio dos mortais, depois que ambos, o criador e a criatura, beberam do "fogo do céu". O escritor joga para dentro do personagem seu próprio vazio e perplexidade, após ter vivido a desgastante e solitária grandiosidade proporcionada pela feitura da obra. É como se aniquilando as possibilidades da criatura, o escritor aniquilasse a sua própria e inútil saudade do Absoluto proporcionado pela criação da Obra. Resta-lhe esquecer aquela vivência e por isso às vezes precisa "matar" seu personagem.
Aqui, talvez coubesse fazer uma ressalva a essa 'solução final' praticada pelo escritor: caso o autor colocasse a sua obra num plano maior, no plano do coletivo, do engajamento, talvez ele não precisasse recorrer à dissolução, à aniquilação, para dar um sentido para essa mesma obra; quer dizer, se estivesse de fato comprometido com a lucidez e com a esperança proporcionadas pela luta coletiva, o escritor não se permitiria reduzir a sua criação, com tudo o que ela tem de complexo, a uma necessidade puramente egocêntrica, subjetiva. Realmente, desse ponto de vista, parece muito presunçoso, da parte de Hugo e Arnaud, aniquilar seus personagens, apossar-se de seu destino final como deuses arbitrários, entediados - ainda que o façam de maneira inconsciente.
E, avançando um pouco mais, poderíamos até mesmo acusar os nossos escritores de reacionários, de proporem um falso enfrentamento: na medida em que criam personagens que desafiam aquilo que está colocado, que transgridem as regras, e depois aniquilam esses mesmos personagens, os escritores seguem apenas a velha fórmula moralista de alertar para os perigos de se desafiar a ordem estabelecida, seja ela colocada pelas forças da natureza ou da sociedade - enfim, o castigo para os heróis que ousam desafiar os deuses.
Com relação a essa última possibilidade, basta ler as obras em questão para se chegar a conclusão bem diversa. E quanto a exigir do escritor uma solução sempre construtiva, lúcida, crente, para as contradições que ele consegue manifestar através de personagens e situações, isso já seria querer demais, já seria falsificar a própria realidade, ou melhor, seria dar vida a situações e personagens pré-fabricados segundo moldes morais, filósoficos ou ideológicos: neutralizar as contradições de personagens em nome de um engajamento, de um projeto de transformação seria o mesmo que negar esssas contradições e, portanto, distorcer ou negar a possibilidade superá-las efetivamente.
Que nos contentemos com a tarefa essencial dada ao escritor, que é a criação de algo, a tarefa de provocar no Real o advento de mais um ente novo, como se o escritor fosse um demiurgo, a cooperar com a criação, com este Todo que se criou, que se cria e que continuará a se criar. Ao escritor já basta ter operado como instrumento para o surgimento de mais uma manifestação no Real, ou neste Todo. Afinal, o escritor tem também o direito de existir tão somente enquanto construtor e conquistador, tanto quanto os comandantes e os comandados, tanto quanto os heróis anônimos representados por Gerard e Gilliat. As duas obras acerca das quais viemos falando neste artigo são, em primeiríssimo lugar, nada mais do que duas novas manifestações lançadas ao Real, e ao mesmo tempo duas novas celebrações desse mesmo Real, desse Todo. Então passa para um plano secundário exigir que os escritores dêem soluções abstratas ou convenientes para as contradições que ele encontra no Real. O que o escritor pode e deve fazer é registrar essas contradições e dramas da maneira mais comovente que puder; para que, aí sim, aquele que ler e acolher a obra possa escolher a leitura que fará delas - se filosófica, ética, política ou apenas estética, ou prazeiroza, sem outro compromisso que não a comunhão. Para que leitor e escritor possam celebrar a nova criação lançada no Todo, ou no Real. É o que esse texto tentou fazer - acolher, celebrar e fazer a sua leitura dessas duas criações.
Roberto Soares Coelho
Eles personificam a clássica definição que os gregos davam para o herói: mistura de divino e de humano, o divino realizável, tornado possível pela ação dos mortais. Mas se os heróis ousam humanizar o divino, também pagam um alto preço por terem se envolvido com o "fogo do céu" (Hölderlin).
Finda a tarefa do herói é como se existisse um vazio, o cotidiano humano, após o retorno, parece por demais lento, estranho, sem perspectivas. Já no primeiro dia de suas voltas ( e o último de suas vidas) é como se Gérard e Gilliat fossem agarrados pela saudade do Absoluto, do transcendente que haviam experimentado nos últimos dias. Uma saudade que, num nível secreto e inextirpável, deve ter instilado neles um obscuro desejo de morrer, de repousar. Os quatro mil dólares de prêmio (que permitiriam a Gérard retornar à Europa, liberto de uma vida deteriorada num país miserável do terceiro mundo) e o casamento de Gilliat com Déruchette seriam prêmios irrisórios, por demais humanos, para quem havia por alguns dias incorporado no corpo e na consciência situações cruciais da evolução da civilização ocidental: o salvamento do mais moderno meio de transporte da época e a garantia de fornecimento da mais importante fonte de energia do século XX.
O prêmio justo seria que fossem elevados à condição de comandantes, mas, na atual etapa da história, um prêmio impossível para marinheiros, aventureiros e operários que não tiveram a sorte de nascer no lugar de pseudo-comandantes.
Resta dizer que nesse morrer dos heróis vislumbra-se, também, um outro paralelo, do qual falamos no início: a trajetória da personagem se entrecruzando com a do escritor.
É preciso não esquecer que personagens são submissos à vontade e às necessidades inconscientes do autor. E depois de forjar uma relação de tamanha intensidade de nossos heróis com o Absoluto, para o escritor é sem sentido, é banal conceder ao personagem uma existência limitada no meio dos mortais, depois que ambos, o criador e a criatura, beberam do "fogo do céu". O escritor joga para dentro do personagem seu próprio vazio e perplexidade, após ter vivido a desgastante e solitária grandiosidade proporcionada pela feitura da obra. É como se aniquilando as possibilidades da criatura, o escritor aniquilasse a sua própria e inútil saudade do Absoluto proporcionado pela criação da Obra. Resta-lhe esquecer aquela vivência e por isso às vezes precisa "matar" seu personagem.
Aqui, talvez coubesse fazer uma ressalva a essa 'solução final' praticada pelo escritor: caso o autor colocasse a sua obra num plano maior, no plano do coletivo, do engajamento, talvez ele não precisasse recorrer à dissolução, à aniquilação, para dar um sentido para essa mesma obra; quer dizer, se estivesse de fato comprometido com a lucidez e com a esperança proporcionadas pela luta coletiva, o escritor não se permitiria reduzir a sua criação, com tudo o que ela tem de complexo, a uma necessidade puramente egocêntrica, subjetiva. Realmente, desse ponto de vista, parece muito presunçoso, da parte de Hugo e Arnaud, aniquilar seus personagens, apossar-se de seu destino final como deuses arbitrários, entediados - ainda que o façam de maneira inconsciente.
E, avançando um pouco mais, poderíamos até mesmo acusar os nossos escritores de reacionários, de proporem um falso enfrentamento: na medida em que criam personagens que desafiam aquilo que está colocado, que transgridem as regras, e depois aniquilam esses mesmos personagens, os escritores seguem apenas a velha fórmula moralista de alertar para os perigos de se desafiar a ordem estabelecida, seja ela colocada pelas forças da natureza ou da sociedade - enfim, o castigo para os heróis que ousam desafiar os deuses.
Com relação a essa última possibilidade, basta ler as obras em questão para se chegar a conclusão bem diversa. E quanto a exigir do escritor uma solução sempre construtiva, lúcida, crente, para as contradições que ele consegue manifestar através de personagens e situações, isso já seria querer demais, já seria falsificar a própria realidade, ou melhor, seria dar vida a situações e personagens pré-fabricados segundo moldes morais, filósoficos ou ideológicos: neutralizar as contradições de personagens em nome de um engajamento, de um projeto de transformação seria o mesmo que negar esssas contradições e, portanto, distorcer ou negar a possibilidade superá-las efetivamente.
Que nos contentemos com a tarefa essencial dada ao escritor, que é a criação de algo, a tarefa de provocar no Real o advento de mais um ente novo, como se o escritor fosse um demiurgo, a cooperar com a criação, com este Todo que se criou, que se cria e que continuará a se criar. Ao escritor já basta ter operado como instrumento para o surgimento de mais uma manifestação no Real, ou neste Todo. Afinal, o escritor tem também o direito de existir tão somente enquanto construtor e conquistador, tanto quanto os comandantes e os comandados, tanto quanto os heróis anônimos representados por Gerard e Gilliat. As duas obras acerca das quais viemos falando neste artigo são, em primeiríssimo lugar, nada mais do que duas novas manifestações lançadas ao Real, e ao mesmo tempo duas novas celebrações desse mesmo Real, desse Todo. Então passa para um plano secundário exigir que os escritores dêem soluções abstratas ou convenientes para as contradições que ele encontra no Real. O que o escritor pode e deve fazer é registrar essas contradições e dramas da maneira mais comovente que puder; para que, aí sim, aquele que ler e acolher a obra possa escolher a leitura que fará delas - se filosófica, ética, política ou apenas estética, ou prazeiroza, sem outro compromisso que não a comunhão. Para que leitor e escritor possam celebrar a nova criação lançada no Todo, ou no Real. É o que esse texto tentou fazer - acolher, celebrar e fazer a sua leitura dessas duas criações.
Roberto Soares Coelho
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