26/04/2009

ocupar as ruas, manter a chama

A matéria abaixo, Protestos anti-OTAN, vem como registro de que a esquerda radical e libertária não deixou passar em branco as cúpulas do G-20 e da OTAN, a aliança militar do capitalismo ocidental, ocorridas agora em Abril, na Europa.

O que se vê é que, mesmo para grande parte da esquerda, a solução da crise mundial passa pelas vias institucionais e pela negociação entre países ricos e países emergentes/subdesenvolvidos, ou seja, acredita-se na reforma do capitalismo, obtida através de sua suposta regulação e humanização; haveria depois a substituição pacífica do modelo, através de processos eleitorais e mobilizações sociais. Enfim, ainda não predomina na maioria da esquerda a visão de que é possível e urgente uma ruptura e uma imediata superação deste projeto de civilização do Ocidente, atualmente capitaneado pelo capitalismo.

Se até a esquerda assim se posiciona, não é surpresa que, para a grande maioria das pessoas e principalmente para a mídia, os protestos de abril não tenham passado de distúrbios promovidos por agitadores e sonhadores, que se aproveitam do momento de crise mundial, para tentarem colocar novamente na ordem do dia suas obsoletas idéias de anarquismo e socialismo libertário.
Mas podemos ter uma outra leitura desses questionamentos e enfrentamentos, feitos por movimentos anarquistas e libertários, partidos da esquerda radical e ongs de orientações políticas diversas. Afinal, ainda não terminou o grande combate entre o projeto de conquista capitalista e o projeto de uma caminhada socialista e libertária.

Claro que somente a História poderá dizer quem tem razão, neste momento em que se abrem dois caminhos para a esquerda: 1) apostar num suposto esgotamento do capitalismo e partir para um processo de mobilização, ruptura, enfrentamento e construção de alternativas concretas ao capitalismo e 2) uma postura mais cautelosa e ‘lúcida’, oferecendo às massas uma espécie de capitalismo melhorado para, mais à frente, construir pacificamente uma transição para uma sociedade socialista. Seria uma solução do tipo minar a ordem capitalista ‘por dentro’, com a tática de não fazer o enfrentamento direto com as desumanizadas forças da chamada ‘elite’, nem de se afastar da sempre assustada classe média.

Mas, de qualquer forma, é preciso respeitar e levar a sério a opção do movimento libertário e anarquista. Há uma clara postura do movimento em acreditar que o momento de ruptura é agora, pois se não houver uma conscientização, mobilização, resistência e construção de projetos alternativos e inteligentes, essa devastadora demonstração de irracionalidade dos países centrais do capitalismo pode desembocar num sistema de poder ainda mais desumano, alienante e opressor. O capitalismo, para se manter enquanto poder dominante, pode ter que lançar mão da instabilidade perpétua, da insegurança, da alienação e narcotização crescentes das pessoas, através da ininterrupta oferta de mercadorias e serviços visivelmente dispensáveis, e também visivelmente destruidores do já fragilizado meio ambiente.

Enfim, o tão esperado capitalismo reformado, com o qual a esquerda entende que tem que se comprometer, pode não passar de uma monstruoso modelo social e econômico, um modelo de anticivilização, uma espécie de ditadura com aparência de democracia, disfarçada numa mistura de instabilidade, insegurança e sedução tecnológica e modernosa e, o que é pior, uma ditadura acolhida e até mesmo defendida pela massa assustada e narcotizada.
O que está em jogo então nessas manifestações, como as ocorridas agora em abril, é muito mais que saudosismos de movimentos e grupos desorientados, supostamente incapazes de se adequar a um avanço da história, incapazes de perceber a possibilidade e a necessidade de um suposto encontro entre a esquerda lúcida e responsável e um capitalismo reformado, humanizado, um capitalismo que, em razão de uma crise profunda, estaria disposto a se regenerar, a percorrer o bom caminho.

O que está em jogo, nessas manifestações, é o grito de alerta de pessoas e movimentos que conseguem discordar dessa postura otimista, ou conformista. É o grito que ousa discordar dessa postura que vê o capitalismo como um sistema que sempre será capaz de superar suas próprias crises, aliás, um sistema que até precisaria dessas crises para sair mais fortalecido e consolidado e, assim, promover progressos e saltos de qualidade e de aprendizado para o a humanidade.
As manifestação são também um grito contra as táticas da maioria da esquerda mundial, que acredita que haverá tempo para vencer o capitalismo de forma gradual, institucional, até conseguirmos sutil mas firmemente promover a sua substituição. O problema é que o caos e a irracionalidade, a instabilidade e a barbárie estão se institucionalizando, estão se tornando algo natural, estão se tornando até mesmo instrumentos de poder (a esse respeito, aguarde texto poético a ser publicado em maio: explosões do verbo e da cidade); a questão é saber se haverá tempo para essa substituição ‘civilizada’ do capitalismo.

É, então, um grito contra o perigo que pode estar à espreita, o perigo de uma sociedade completamente narcotizada, robotizada, assustada, plastificada, tecnologizada. É um grito alertando para a urgência da ação e do enfrentamento, da urgente construção de alternativas ao modelo de civilização produtivista e consumista, modelo que seduz e aprisiona tanto à esquerda quanto à direita.
Ocupar as ruas significa, também, que o grito de alerta não é apenas abstrato, teórico, acadêmico, intelectualizado. Significa sair do âmbito do pensar, mesmo que seja o correto e lúcido pensar, para realmente acreditar e estar disposto ao enfrentamento do perigo, significa o complemento concreto do pensar lúcido e corajoso.
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É preciso lembrar, também, que as atuais manifestações de rua não são fenômenos isolados, anacrônicos, perdidos no tempo; elas têm toda uma história, fazem parte, sim, de uma seqüência, cujo início podemos, em termos de época moderna, situar na Revolução Francesa (que teve o seu ímpeto libertário capturado, neutralizado pela nascente burguesia).
Há uma continuidade através de centenas de ações de resistência e enfrentamento, mesmo que tenham se dado em contextos e com motivações diferentes, e mesmo que tenham sido derrotadas, capturadas ou distorcidas: Comuna de Paris, Rússia, Guerra Civil espanhola, Cuba, apenas para citar as mais consagradas. As manifestações deste ano e as da última década (Seattle, Washington, Genova, Chiapas, as revoltas dos imigrantes na França, entre outras, sem esquecer, claro, as recentes rebeliões populares na Grécia) têm, assim, ligação direta com todas as ações de resistência e enfrentamento ao capitalismo, e estão bem próximas, no tempo, de um dos momentos maiores mais vibrantes e ousados do movimento de contestação ao atual modelo de civilização, que foram as ações dos estudantes, operários e da juventude em geral na chamada contracultura, nas décadas de 60 e 70.

Enfim, são combativas demonstrações, que mantêm viva a crença na possibilidade de uma humanidade concretamente voltada para sua tarefa essencial, que é a de respeitar e reverenciar a vida, as pessoas e o próprio mundo, uma humanidade que não se entregue a estruturas e grupos de poder cegos, irracionais e cada vez mais desumanos. Mantêm viva a crença de que podemos cuidar e fruirmos da riqueza que há em nós próprios e no mundo que nos cerca, sem estarmos submissos a estruturas que nos alienem de nós próprios, estruturas que cada vez mais nos afastam uns dos outros, tomados pelo medo, hostilidade, indiferença e futilidade.

Claro que uma postura de respeito e de maior atenção, para com essas ações de resistência e enfrentamento do movimento libertário, não exclui a legitimidade a necessidade das outras formas de atuação, propostas ou praticadas pela esquerda institucional, principalmente aquelas mais incisivas, adotadas por alguns governos progressistas da América Latina, na tentativa de construção de um socialismo institucionalizado. O que importa é que cada parte compreenda a escolha e a forma de luta, que reconheça a força e a verdade bem como compreenda as eventuais limitações da outra parte, todos sabendo que o fundamental é resisitir e derrotar o inimigo comum, sabedores de que lá na frente, à época da colheita e da Grande Festa da humanidade, cada um terá dado o seu trabalho e a sua crença.

Que as ruas sejam cada vez mais tomadas, que o grito de alerta dos anarquistas e libertários soe cada vez mais sonoro e vibrante, e que seja cada vez mais ouvido, antes que estejamos todos narcotizados em nossas almas de plástico.
Roberto Soares Coelho

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