guardião invisível
dormi e acordei sonhando...
um caso me desperta
dentro de outro
sonho com um louco
acordo comigo
e penso onde estará o louco
meu café amargo
começa com o meu dia
cada gole seco
um pensamento
já estou no meio do dia
meu tormento...
só espero minha noite
meu louco talvez volte
vicente filho - belo horizonte
Um certo voô da imaginação para comentar os poemas deste mês - como um breve conto.
Em 'guardião invisível', Vicente Filho dá vida a um irrequieto e sonambúlico personagem. Lembra a anônima melancolia de um daqueles passantes de Baudelaire, a vagar por ruas e cidades hostis, rodeado de gentes levadas à indiferença e ao desconhecimento mútuo, um passante que se vê em desamparado exílio de sua terra, desesperançado de qualquer outra acolhida, refugiando-se então na sua prória e secreta interioridade, à espera de se aconchegar novamente na sua obscura ‘loucura’ noturna.
É um retrato simples, mas que com certeza tem a ver com esse nosso tempo, tornado cada vez mais hostil pelo decadente e degradante modo de viver e produzir na modernidade capitalista. E, claro, tem a ver com o artista e o poeta deste tempo, levado muitos vezes a crer apenas na sua verdade, a criar apenas a partir dessa verdade interior, já descrente de uma ação e criação artísticas que comungue com o coletivo e com a vida cotidiana.
Mas, em 'adormece’, o melancólico sonâmbulo é convocado pela fala pausada de Ernesto, como um convite ao descanso, porém não um repouso feito de imobilismo, desistência ou amargura; ao contrário, é um repouso dialético, que sugere um renascer, ou ao menos uma continuidade do caminhar, agora um caminhar enriquecido pelas derrotas e revelações, mágoas e preciosidades que cada um traz consigo. Uma fala bela, rica de imagens sutis e elaboradas que, sem se apoiar num tom ‘político’ ou panfletário, convoca à superação, à ação e à crença, sustentado no puro e simples desvelar-se para as preciosidades e as virtudes de nosso estranho, mágico e cósmico estar-no-mundo.
Como resposta à invocação de Ernesto, em ‘apego’ Vicente Filho oferece ao seu personagem uma tentativa de volta à terra e à unidade perdidas. Tentativa meio que irônica, como se o persongem soubesse de antemão do fracasso em promover esse ingênuo regresso no tempo e no espaço, sabedor de que o resgate de sua plenitude, de sua capacidade de agir, crer e criar exigirá que ele passe por outras terras; seus surdos passos de poeta terão que continuar em busca de outra festa, talvez uma festa menos precária e individualizada, menos submissa aos ditames das grandes propriedades deste mundo.
Além de retornar a um tema que lhe é sempre caro - que é o tema do retrono à terra - no tom do poema há também um retorno de Vicente: uma fala feita de ironia mesclada de melancolia, presente em vários de seus poemas.
E como se prestasse solidariedade - ou como se fizesse companhia - ao nosso personagem em 'geográfico', de Adair Carvalhais, há também uma tentativa de resgate da unidade perdida, mas sem a mesma ironia que corrói a genuína alegria pelo retorno. Porém, se no conteúdo de sua fala percebe-se uma crença ou uma gravidade maior na tentativa de retorno, a forma dessa fala desmente essa suposta certeza: versos quebrados, palavras soltas, sentido que busca se firmar em passos precários - os mesmos surdos passos?
Em ‘desperto’, o inquieto personagem, novamente às voltas com seus cansaços e perplexidades, ainda tenta se enredar nos aconchegantes labirintos da madrugada, numa aparente recusa em sair para o campo aberto de uma novo dia, no enfrentamento de um mundo tornado por demais hostil e apressado, mecânico e sem poesia - nada então como deleitar-se consigo próprio, seu mundo interior, e com as diáfanas orquestras da noite e dos sonhos.
Tudo indica que de nada teria valido seu ininterrupto périplo mundo afora - nem os convites e companhias de outros poetas - mas os últimos versos revelam: há agora a presença de outras pessoas a sustentar e apontar ao poeta a sua tarefa, a sua sina, não importando se essa companhia - a senhora - representa algo ou alguém simbólico: a história, a ação político-poética, o trabalho como crença e construção do novo, ou algo mais individual: a simples entrega à vida amorosa ou familiar. E em seguindo a sua sina o nosso personagem prossegue no seu périplos por parques, tempestades, países.
um caso me desperta
dentro de outro
sonho com um louco
acordo comigo
e penso onde estará o louco
meu café amargo
começa com o meu dia
cada gole seco
um pensamento
já estou no meio do dia
meu tormento...
só espero minha noite
meu louco talvez volte
vicente filho - belo horizonte
Um certo voô da imaginação para comentar os poemas deste mês - como um breve conto.
Em 'guardião invisível', Vicente Filho dá vida a um irrequieto e sonambúlico personagem. Lembra a anônima melancolia de um daqueles passantes de Baudelaire, a vagar por ruas e cidades hostis, rodeado de gentes levadas à indiferença e ao desconhecimento mútuo, um passante que se vê em desamparado exílio de sua terra, desesperançado de qualquer outra acolhida, refugiando-se então na sua prória e secreta interioridade, à espera de se aconchegar novamente na sua obscura ‘loucura’ noturna.
É um retrato simples, mas que com certeza tem a ver com esse nosso tempo, tornado cada vez mais hostil pelo decadente e degradante modo de viver e produzir na modernidade capitalista. E, claro, tem a ver com o artista e o poeta deste tempo, levado muitos vezes a crer apenas na sua verdade, a criar apenas a partir dessa verdade interior, já descrente de uma ação e criação artísticas que comungue com o coletivo e com a vida cotidiana.
Mas, em 'adormece’, o melancólico sonâmbulo é convocado pela fala pausada de Ernesto, como um convite ao descanso, porém não um repouso feito de imobilismo, desistência ou amargura; ao contrário, é um repouso dialético, que sugere um renascer, ou ao menos uma continuidade do caminhar, agora um caminhar enriquecido pelas derrotas e revelações, mágoas e preciosidades que cada um traz consigo. Uma fala bela, rica de imagens sutis e elaboradas que, sem se apoiar num tom ‘político’ ou panfletário, convoca à superação, à ação e à crença, sustentado no puro e simples desvelar-se para as preciosidades e as virtudes de nosso estranho, mágico e cósmico estar-no-mundo.
Como resposta à invocação de Ernesto, em ‘apego’ Vicente Filho oferece ao seu personagem uma tentativa de volta à terra e à unidade perdidas. Tentativa meio que irônica, como se o persongem soubesse de antemão do fracasso em promover esse ingênuo regresso no tempo e no espaço, sabedor de que o resgate de sua plenitude, de sua capacidade de agir, crer e criar exigirá que ele passe por outras terras; seus surdos passos de poeta terão que continuar em busca de outra festa, talvez uma festa menos precária e individualizada, menos submissa aos ditames das grandes propriedades deste mundo.
Além de retornar a um tema que lhe é sempre caro - que é o tema do retrono à terra - no tom do poema há também um retorno de Vicente: uma fala feita de ironia mesclada de melancolia, presente em vários de seus poemas.
E como se prestasse solidariedade - ou como se fizesse companhia - ao nosso personagem em 'geográfico', de Adair Carvalhais, há também uma tentativa de resgate da unidade perdida, mas sem a mesma ironia que corrói a genuína alegria pelo retorno. Porém, se no conteúdo de sua fala percebe-se uma crença ou uma gravidade maior na tentativa de retorno, a forma dessa fala desmente essa suposta certeza: versos quebrados, palavras soltas, sentido que busca se firmar em passos precários - os mesmos surdos passos?
Em ‘desperto’, o inquieto personagem, novamente às voltas com seus cansaços e perplexidades, ainda tenta se enredar nos aconchegantes labirintos da madrugada, numa aparente recusa em sair para o campo aberto de uma novo dia, no enfrentamento de um mundo tornado por demais hostil e apressado, mecânico e sem poesia - nada então como deleitar-se consigo próprio, seu mundo interior, e com as diáfanas orquestras da noite e dos sonhos.
Tudo indica que de nada teria valido seu ininterrupto périplo mundo afora - nem os convites e companhias de outros poetas - mas os últimos versos revelam: há agora a presença de outras pessoas a sustentar e apontar ao poeta a sua tarefa, a sua sina, não importando se essa companhia - a senhora - representa algo ou alguém simbólico: a história, a ação político-poética, o trabalho como crença e construção do novo, ou algo mais individual: a simples entrega à vida amorosa ou familiar. E em seguindo a sua sina o nosso personagem prossegue no seu périplos por parques, tempestades, países.
**************
O dia promete. Há o encontro com a doce presença da poeta Mariana Botelho, que de tanto se extasiar com a luxuriante paisagem de um parque ou floresta, clama à misteriosa alma do mundo que lhe permita esquecer os nomes humanos das plantas e das flores, para mais poder se embriagar exatamente nesse mistério da pura presença do mundo, com sua miríade de formas e cores, movimentos e propósitos; para mais poder deixar a jóia dos seus olhos desvelar-se para a simplicidade e preciosidade com que o mundo a presenteia - expressando assim a sua plena aceitação do convite feito há pouco pelo poeta Ernesto - numa fala amena e discreta, concisa e burilada, como é próprio de sua mineira poesia: suave coisa.
Embora ainda esteja longe, chegará um tempo em que não precisaremos mais distinguir entre poetas e não-poetas, quando todo e qualquer indivíduo poderá fazer de sua vida um poema, e quando todo e qualquer artista poderá fazer de sua arte um enriquecido encontro com a vida das gentes que o cercam, vida e arte sendo então um exercício de proximidade.
Mas, enquanto não construímos esse tempo, o nosso personagem precisa se afastar um pouco dos poetas e se irmanar com os sonhos, abismos e buscas de outras gentes. E eis que há loucura, sonho e ousadia da imaginação também nas chamadas pessoas comuns, simples. É o que se nos mostra através do poema do francês Proudhomme. Por distantes terras da Alemanha segue o nosso poeta, como silenciosa e solidária sombra da louca estrangeira que, à maneira da mineira Mariana, também busca a flor essencial, a forma fascinante, a condensada manifestação do ser e do mistério personificada nalgum perfume e nalguma cor singular.
Mas já aprendeu que, por mais intangível que seja, a flor rara está à mão, tal perfume inebriante a qualquer instante nos é oferecido pelo ser, basta que nos desvelemos o suficiente para o nosso estar-no-mundo. Sabe que é preciso procurar a preciosa ave dos ovos azuis em nós próprios e no mar de formas e presenças que nos rodeia.
Mas ao nosso poeta não cabe contrariar a estrangeira, é preciso deixar que ela própria encontre as suas respostas, esgote sua busca, mesmo que essa inquietude perpasse por toda uma vida e perdure até a morte - o que tem a fazer é apenas acompanhar a estrangeira, solidarizar-se com sua busca.
O dia promete. Há o encontro com a doce presença da poeta Mariana Botelho, que de tanto se extasiar com a luxuriante paisagem de um parque ou floresta, clama à misteriosa alma do mundo que lhe permita esquecer os nomes humanos das plantas e das flores, para mais poder se embriagar exatamente nesse mistério da pura presença do mundo, com sua miríade de formas e cores, movimentos e propósitos; para mais poder deixar a jóia dos seus olhos desvelar-se para a simplicidade e preciosidade com que o mundo a presenteia - expressando assim a sua plena aceitação do convite feito há pouco pelo poeta Ernesto - numa fala amena e discreta, concisa e burilada, como é próprio de sua mineira poesia: suave coisa.
Embora ainda esteja longe, chegará um tempo em que não precisaremos mais distinguir entre poetas e não-poetas, quando todo e qualquer indivíduo poderá fazer de sua vida um poema, e quando todo e qualquer artista poderá fazer de sua arte um enriquecido encontro com a vida das gentes que o cercam, vida e arte sendo então um exercício de proximidade.
Mas, enquanto não construímos esse tempo, o nosso personagem precisa se afastar um pouco dos poetas e se irmanar com os sonhos, abismos e buscas de outras gentes. E eis que há loucura, sonho e ousadia da imaginação também nas chamadas pessoas comuns, simples. É o que se nos mostra através do poema do francês Proudhomme. Por distantes terras da Alemanha segue o nosso poeta, como silenciosa e solidária sombra da louca estrangeira que, à maneira da mineira Mariana, também busca a flor essencial, a forma fascinante, a condensada manifestação do ser e do mistério personificada nalgum perfume e nalguma cor singular.
Mas já aprendeu que, por mais intangível que seja, a flor rara está à mão, tal perfume inebriante a qualquer instante nos é oferecido pelo ser, basta que nos desvelemos o suficiente para o nosso estar-no-mundo. Sabe que é preciso procurar a preciosa ave dos ovos azuis em nós próprios e no mar de formas e presenças que nos rodeia.
Mas ao nosso poeta não cabe contrariar a estrangeira, é preciso deixar que ela própria encontre as suas respostas, esgote sua busca, mesmo que essa inquietude perpasse por toda uma vida e perdure até a morte - o que tem a fazer é apenas acompanhar a estrangeira, solidarizar-se com sua busca.
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Cansado de poetas, de loucos e de irrequietas pessoas. Decide por uma visita a um orfanato, onde possa testemunhar um drama mais cotidiano, e menos etéreo.
Numa primeira leitura, ‘menina no orfanato’ parece refletir descrença e até um certo deboche com a dor alheia, mas na verdade pode ser visto como um aprendizado, como se o nosso poeta não quisesse mais se iludir a si próprio, tendo compreendido que a sua ‘sina’ não lhe permite “poetizar o que não pode ser poetizável” (Flávio Kothe, a respeito de Paul Celan).
E nesse singelo registro do desamparo e da súbita alegria da orfã, reencontra a si próprio, assume de fato a sua tarefa, concilia o poeta, o louco, o andarilho e o vivente no meio de outros viventes. Começa a exercitar o difícil equilíbrio entre a intimidade com o infinito e o testemunho do finito, entre aves de ovos azuis e bonecas de plástico ordinário.
Enfim começa a fazer a sua poesia transitar entre a busca interior e a ação exterior, a viver tanto na companhia dos caçadores do intangível e do sem nome, quanto dos catadaores da vida cotidiana, vê que um mundo não exclui o outro, uma compannhia não exclui a outra, somos todos construtores da difícil e mágica história, da cósmica tarefa dada a nós pelo misterio do ser e do tempo.
Conclui que viver transcende a nossa própria existência, é compromisso com uma presença maior que nós próprios: a vida é por demais delicada, preciosa e ainda incompreensível em sua inteireza– e construída ao longo de bilhões de anos e trilhões de quilômetros - para que, ao final, fique apenas no âmbito de nossos próprios desejos e medos, sonhos e mágoas. E entende que, além dessa tarefa de viver com plenitude e generosidade que cabe a cada um, ao poeta e artista é dado também o trabalho e o privilégio de contribuir para que outros possam de fato despertar exatamente para essa possibilidasde - viver com plenitude e generosidade.
Depois de se despedir de nossa orfã, caminhando novamente pelas ruas, o nosso poeta reflete que - ao lado daqueles que contribuem com o seu trabalho cotidiano e ao lado daqueles que contribuem com a sua ação política, libertária ou guerrilheira, ou mesmo espiritual – cabe ao artista contribuir com a sua sensibilidade, para que de fato se construa um mundo e uma história onde arte e vida sejam um só e mesmo exercício, onde todos possam de fato fazer de sua breve e precária existência um longo, ininterupto e mágico momento de comunhão, generosidade e confiança com todos os que o rodeiam.
Continuando sua andança pelas ruas, lembra-se de poema escrito há tempos por aqueles mesmos lugares. Admirado da leitura que faz daqueles versos que outrora escrevera sem se dar conta, agora confia em que os mendigos do mundo (sejam eles, poetas, trabalhadores, guerrilheiros ou mesmo mendigos de verdade) estarão todos de olhos abertos, mesmo com todas as suas ‘indigências’, e não permitirão que os lobos e maníacos (sejam do primeio, segundo ou terceiro mundo) imponham para sempre ao planeta os seus destrutivos consensos e exércitos.
Confia em que chegará o tempo em que não haverá mais lugar para os lobos, pois até esses terão sua energia potencial canalizada para a construção de um mundo em que todos se enxergarão de fato como ‘sal da terra’ , como ‘luz do mundo’, como olhos e centelha do divino, como pequena chama da grande energia que alimenta e move o cosmos, o ser, o tempo, os homens, mulheres e crianças... e os loucos e as flores sem nome.
Vai além: percebe que, principalmente em tempos difíceis como esse, mais o poeta deve crer e trabalhar nessa direção. Afinal, toda a hostilidade e indiferença, angústia e insegurança, pressa e massificação, que ele vê nas pessoas ao seu redor, pode não significar necessariamente que a barbárie e o disforme tenham se instalado definitivamente no meio do mundo, isso não significa que seja definitivamente vitorioso o padrão capitalista de comercializar e empobrecer a vida e as pessoas, de ferir e depredar o mundo; ao contrário, pode ser que toda essa massificação, brutalidade e passividade signifique apenas que esse modo de estar-no-mundo esteja com os seus dias contados, afinal, é bem provável que tudo chegue a um ponto insuportável, um ponto em que as pessoas finalmente não mais tolerem submeeter-se a uma tão sufocante alienação e seqüestro de sua tarefa de viver com plenitude e generosidade.
Cansado de poetas, de loucos e de irrequietas pessoas. Decide por uma visita a um orfanato, onde possa testemunhar um drama mais cotidiano, e menos etéreo.
Numa primeira leitura, ‘menina no orfanato’ parece refletir descrença e até um certo deboche com a dor alheia, mas na verdade pode ser visto como um aprendizado, como se o nosso poeta não quisesse mais se iludir a si próprio, tendo compreendido que a sua ‘sina’ não lhe permite “poetizar o que não pode ser poetizável” (Flávio Kothe, a respeito de Paul Celan).
E nesse singelo registro do desamparo e da súbita alegria da orfã, reencontra a si próprio, assume de fato a sua tarefa, concilia o poeta, o louco, o andarilho e o vivente no meio de outros viventes. Começa a exercitar o difícil equilíbrio entre a intimidade com o infinito e o testemunho do finito, entre aves de ovos azuis e bonecas de plástico ordinário.
Enfim começa a fazer a sua poesia transitar entre a busca interior e a ação exterior, a viver tanto na companhia dos caçadores do intangível e do sem nome, quanto dos catadaores da vida cotidiana, vê que um mundo não exclui o outro, uma compannhia não exclui a outra, somos todos construtores da difícil e mágica história, da cósmica tarefa dada a nós pelo misterio do ser e do tempo.
Conclui que viver transcende a nossa própria existência, é compromisso com uma presença maior que nós próprios: a vida é por demais delicada, preciosa e ainda incompreensível em sua inteireza– e construída ao longo de bilhões de anos e trilhões de quilômetros - para que, ao final, fique apenas no âmbito de nossos próprios desejos e medos, sonhos e mágoas. E entende que, além dessa tarefa de viver com plenitude e generosidade que cabe a cada um, ao poeta e artista é dado também o trabalho e o privilégio de contribuir para que outros possam de fato despertar exatamente para essa possibilidasde - viver com plenitude e generosidade.
Depois de se despedir de nossa orfã, caminhando novamente pelas ruas, o nosso poeta reflete que - ao lado daqueles que contribuem com o seu trabalho cotidiano e ao lado daqueles que contribuem com a sua ação política, libertária ou guerrilheira, ou mesmo espiritual – cabe ao artista contribuir com a sua sensibilidade, para que de fato se construa um mundo e uma história onde arte e vida sejam um só e mesmo exercício, onde todos possam de fato fazer de sua breve e precária existência um longo, ininterupto e mágico momento de comunhão, generosidade e confiança com todos os que o rodeiam.
Continuando sua andança pelas ruas, lembra-se de poema escrito há tempos por aqueles mesmos lugares. Admirado da leitura que faz daqueles versos que outrora escrevera sem se dar conta, agora confia em que os mendigos do mundo (sejam eles, poetas, trabalhadores, guerrilheiros ou mesmo mendigos de verdade) estarão todos de olhos abertos, mesmo com todas as suas ‘indigências’, e não permitirão que os lobos e maníacos (sejam do primeio, segundo ou terceiro mundo) imponham para sempre ao planeta os seus destrutivos consensos e exércitos.
Confia em que chegará o tempo em que não haverá mais lugar para os lobos, pois até esses terão sua energia potencial canalizada para a construção de um mundo em que todos se enxergarão de fato como ‘sal da terra’ , como ‘luz do mundo’, como olhos e centelha do divino, como pequena chama da grande energia que alimenta e move o cosmos, o ser, o tempo, os homens, mulheres e crianças... e os loucos e as flores sem nome.
Vai além: percebe que, principalmente em tempos difíceis como esse, mais o poeta deve crer e trabalhar nessa direção. Afinal, toda a hostilidade e indiferença, angústia e insegurança, pressa e massificação, que ele vê nas pessoas ao seu redor, pode não significar necessariamente que a barbárie e o disforme tenham se instalado definitivamente no meio do mundo, isso não significa que seja definitivamente vitorioso o padrão capitalista de comercializar e empobrecer a vida e as pessoas, de ferir e depredar o mundo; ao contrário, pode ser que toda essa massificação, brutalidade e passividade signifique apenas que esse modo de estar-no-mundo esteja com os seus dias contados, afinal, é bem provável que tudo chegue a um ponto insuportável, um ponto em que as pessoas finalmente não mais tolerem submeeter-se a uma tão sufocante alienação e seqüestro de sua tarefa de viver com plenitude e generosidade.
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Ao crepúsculo, dando por finda a sua peregrinação de um dia tão intenso, recolhe-se a um bar qualquer, afinal há horas que uma poética mas insistente chuva escorre pelas ruas e prédios, a anunciar novembro. E também é hora de buscar alguém a quem contar as suas andanças, reflexões e sensações.
Após ouvi-lo, um desconhecido boêmio, um não-poeta, resume em versos para as peripécias de nosso personagem, fundindo Guimarães Rosa e Fernando Pessoa:
‘Viver é muito perigoso
quando a alma não é pequena
mas vale a pena a travessia’
Ao que o nosso personagem, grato por síntese tão brilhante - embora simples e despretensiosa – responde ao companheiro de mesa que, se não podemos sempre nos deleitar com nossa melhor hora nas madrugadas e flutuar nas tardes, também não precisamos fazer a travessia de nossos dias e meio-dias como se fossem eternos tormentos.
Afinal, se estamos cada vez mais órfãos e mendigos da vida plena, precisamos, ao longo da travessia, nos manter cada vez mais famintos da Utopia, famintos do grande encontro com o divino, ou seja, o grande e enriquecido encontro de todos nós conoscos mesmos e com o mundo, o ser.
E, já inebriado de bebida e poesia, conclui que para o advento de tão grandioso encontro, não podemos nunca deixar que os exércitos e maníacos nos tornem pequena a alma, que jamais matem a ave de ovos azuis, que em tempo algum pisoteiem a flor rara e sem nome e que não permitamos nunca que apaguem a luz do mundo.
Por fim, brinda e homenageia o anônimo boêmio com um novo poema, basatnte apopriado para o momento, ali mesmo forjado - irônico como de costume, mas sincero e pleno de confiança e gratidão ao mundo e às gentes, e que declamam juntos e já embriagados. Afinal, como logo depois proclama o anônimo boêmio, citando Baudelaire:
“- É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos. Embriagai-vos sem tréguas. De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor".
- Ou de utopia, para não serdes os martirizados escravos da barbárie e de uma vida de plástico... – gargalha o nosso poeta.
Roberto Soares
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