28/03/2010

a Deus

tua delicadeza não bastou
quero chamas a consumir
os cataventos se foram
e meu rosto desaba no espelho

quero uma aliança com o eterno
que se renove na imensidão
da morte
e quando o equinócio chegar
quero estar no seu zênite

como um deserto que reflete
como um deserto que não termina
e se dana
na própria infinitude

quero-te e não te quero
aos demônios ouço
e te persigo
e me arrebato em tua poesia
inefável


retenho a vida, forte e insubmisso
tramas a minha morte
sou anjo de pedra
pedra ou sonho?
vida ou torpor?


sou-te e não me abrigo
tens a mim e não me possuis
amo-te e não entendo
a razão deste amor

carlos ernesto
(cartas ao mar fechado, edição do autor, 1979)

*************

Mas, interrompendo a vívida celebração de Vicente e Rilke, com o poema de Carlos Ernesto brota já uma primeira dissidência, um primeiro desafio à onipotência da divindade. Há na verdade uma como que rebelião da razão contra o mistério, do finito contra o infinito.
É como um grito que misturasse raiva e impotência, fascínio e lamento, pelo fato de a razão do poeta-filósofo não conseguir captar em sua inteireza o mistério do ser, e principalmente não conseguir se apreender no meio da rica ambigüidade humana, que é ser ao mesmo tempo fruto e alimento do Espírito.

É um magnífico e rico desfile de imagens a ilustrar a ambígua condição de alguns poetas do ocidente, a condição de ateus arrependidos e nostálgicos. Como se o Ser, o Mistério, não desse ao poeta ocidental outra opção que não um ateísmo, a partir do momento em que não se nos revela de forma clara, racional, a partir do momento em Deus não se nos manifesta de forma inequívoca, com sinais claros no céu da nossa vida e da nossa História.

A condição de ateu arrependido provém então, dessa incapacidade de poetas e filósofos do Ocidente em apreenderem o Mistério e o Sagrado através da simples intuição - ou daquilo que os religiosos chamam de fé – exigindo que esse Sagrado, que essa Fonte se manifeste de forma racional, ou pelo menos de forma mais direta, que jogue de igual para igual com o homem, e não do alto de sua obscura, intangível e arrogante realidade.
E ao mesmo tempo há uma certa nostalgia nesse ateísmo, uma saudade de um obscuro tempo de inocência, provavelmente na infância, quando tudo é magia, comunhão, celebração do mundo e do Mistério.

No fim do poema, um interessante e denso jogo entre rendição e resistência, entre comunhão e distanciamento, esse jogo de presença e fuga com que o Ser se apresenta àqueles que procuram inutilmente capturá-lo, desvelá-lo em toda sua inteireza, ou por outra, esse jogo com que Deus se apresenta àqueles que buscam vê-lo de perto, Face a Face

2 comentários:

  1. Berto, eis o poema que você pede:

    http://rscoelho.blogspot.com/2010/04/o-ultimo-sortilegio.html

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