16/08/2011

a tecelã

Toca a sereia na fábrica
e o apito como um chicote
bate na manhã nascente
e bate na tua cama
no sono da madrugada

Ternuras de áspera lona
pelo corpo adolescente.
É o trabalho que te chama.
Às pressas tomas o banho
tomas teu café com pão
tomas teu lugar no bote
no cais de Capibaribe.

Deixas chorando na esteira
teu filho de mãe solteira.
Levas ao lado a marmita
contendo a mesma ração
do meio de todo o dia
a carne-seca e o feijão.

De tudo quanto ele pede
dás só bom dia ao patrão
e recomeças a luta
na engrenagem da fiação.

Ai, tecelã sem memória
de onde veio esse algodão?
Lembras o avô semeador
com as sementes na mão
e os cultivadores pais?
Perdidos na plantação
ficaram teus ancestrais.

Plantaram muito. O algodão
nasceu também na cabeça
cresceu no peito e na cara.

Dispersiva tecelã
esse algodão quem colheu?
Muito embora nada tenhas
estás tecendo o que é teu.
Teces tecendo a ti mesma
na imensa maquinaria
como se entrasses inteira
na boca do tear e desses
a cor do rosto e dos olhos
e o teu sangue à estamparia.

Os fios dos teus cabelos
entrelaças nesses fios
e noutros fios dolorosos
dos nervos de fibra longa.
Ó tecelã perdulária
enroscas-te em tanta gente
com os ademanes ofídicos
da serpente multifária.

A multidão dos tecidos
exige-te esse tributo.
Para ti, nem sobra ao menos
um pano preto de luto.

Vestes as moças da tua
idade e dos teus anseios
mas livres da maldição
do teu salário mensal
com o desconto compulsório
com os infalíveis cortes
de uma teórica assistência
que não chega na doença
nem chega na tua morte.

Com essa policromia
de fazendas, todo o dia
iluminas os passeios
brilhas nos corpos alheios.

E essas moças desconhecem
o teu sofrimento têxtil
teu desespero fabril.
Teces os vestidos, teces
agasalhos e camisas
os lenços especialmente
para adeus, choro e coriza.

Teces toalhas de mesa
e a tua mesa vazia

Toca a sereia da fábrica,
E o apito como um chicote
bate neste fim de tarde
bate no rosto da lua.

Vais de novo para o bote.
Navegam fome e cansaço
nas águas negras do rio.

Há muita gente na rua
Parada no meio-fio.
Nem liga importância à tua
blusa rota de operária.

Vestes o Recife e voltas
para casa, quase nua.

mauro mota - pernambuco, brasil, "elegias" (1952)

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