24/03/2020

Lázaro e Monsieur Corona - II


Gosto de me levantar bem cedo em finais de semanas e feriados.  Aproveitar mais e melhor as brechas na estúpida escravidão moderna - ler, escrever, andar. Nesses longos meses em companhia de Monsieur Corona, então, será uma festa. 
Um pouco antes seis, caía uma chuvinha miúda, dessas que parecem silencioso lacrimejar, e imediatamente convidam à leitura de algum poeta metafísico: Rilke ou Hölderlin ou Drummond, Cecília ou Celan; algum poeta assim, que me fizesse companhia no acesso ao desvelar do Ser,  através do ente da chuva.
Assim, decidira fazer minha habitual visual ao Ser, indo até o Parque Municipal.
Na tensa tessitura das ruas, sob a dura concretude dos prédios e ensurdecido pelo estúpido ruído dos carros - e das mais ainda estúpidas e fascistas motos envenenadas - nesse cenário certamente é bem mais difícil conseguir se postar em frente, e em meio, à pura presença das coisas, com seu silêncio e singeleza.
Na solidão e quietude de alamedas, trilhas, gramados, de um recanto como o Parque, obviamente é muito mais tranquilo ter uma percepção pura da aparição dos entes, essa aparição que sempre traz consigo a fugidia presença do Ser: cada árvore, cada galho ou folhagem, um que outro pedação de pedra, uma porção de solo verde-vegetal, as miríades de amarelas florezinhas caídas, cada aparição dessas revela e esconde o singelo mistério do Ser. Não li o Heidegger de “O caminho do campo”, mas pelas suas  palavras em “Explicações da poesia de Holderlin”, imagino que seja para algo assim que ele se volta.
Mas entregue a esse começo de “diário” (ainda não me veio  uma palavra menos tola) o tempo passou, a convidativa chuvinha esfumou-se, como é praxe nesta época, começou a fazer calor, e adiei para de tardezinha minha aparição em meio às aparições dos entes que moram lá no espaço da Parque.
Já que assim, um pouco mais daqui, então: sou servidor público, trabalho na Secretaria de Educação, e estamos parcialmente dispensados do expediente. Está tudo ainda muito confuso, mas creio que em breve o Governo decretará suspensão total das atividades, com exceção do costumeiro Plantão.
Estou extremante preocupado com a situação de minha mãe  e de minha irmã, que moram no interior. Minha mãe está perto dos oitenta anos (grupo de risco) e ajuda a cuidar de minha irmã, que é portadora de uma doença rara (outro grupo de risco).
Além de minha mãe, que tudo supervisiona, passam pela casa delas, todos os dias e noites, mais três mulheres, cuidadoras. Situação de difícil enfrentamento, em épocas normais, imagine-se agora, com o advento do implacável Corona. A questão é que, todos os dias e noites,  as cuidadoras vão e voltam de suas casas, e aí o risco, tanto para elas, quanto para minha mãe e  irmã, são obviamente maiores; assustam, confesso.

*
Como também confesso a minha angústia em relação à possibilidade de meu próprio morrer. Aliás, se não fosse para testemunhar a minha percepção, dessa possibilidade do meu próprio morrer, não haveria sentido nesse “diário”.
Não posso fugir a esse encontro, essa situação de morte anunciada, que envolve a todos nós -  não nos iludamos – é uma oportunidade singular, é até mesmo a obrigação de uma espécie de, senão de celebração, ao menos de testemunho. Testemunhar ou celebrar o que há de fascinante  e, claro, de apavorante, na possibilidade de se despedir em definitivo do próprio Ser. Compreender e capturar a grandeza e o absurdo desses momentos, em que está tudo por um fio, em que você já não sabe se de fato estará presente ao Ser no próximo dia, semana, mês.
Claro que não é preciso o implacável advento de Monsieur  Corona, para podemos vivenciar a magia e a fragilidade de nosso existir, o para vivermos e admirável espanto que é  aparição e a desaparição no mundo.
Para perceber que somos entes cuja principal atributo é o de existir como criaturas especiais,  que podem e devem se ocupar, em primeiro lugar, exatamente com essa singularidade: a de se perceberem como presentes ao Ser e aos demais entes, e de perceberem o Ser e os demais entes como estando presentes a ela, criatura, ente humano. Ao que se saiba, a nenhum outro ente, aqui na Terra, foi dada tal singularidade (quanto aos prováveis habitantes inteligentes nos confins deste Cosmos, bem, issso é outra história).
Sim, não deveria ser preciso o advento do Corona para tal entendimento de nossa condição e especial e metafísica no mundo.
Ocorre que as tarefas e imposições do dia a dia - ainda mais nesse estúpido e odioso estágio do Capitalismo – nos afastam desse convívio com a nossa condição de entes especiais. Nem mesmo aqueles voltados ao convívio com a arte e com a Filosofia conseguem exercitar esse convívio com a sua singularidade, durante vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Então, eventos espetaculares e singulares e ameaçadores, como o Corona, são o gatilho para retornarmos à condição de nossa própria singularidade, para resgatarmos o espanto perante o existir, para nos resgatarmos em meio ao fascínio da simples presença das coisas, dos outros entes, e para dedicarmos mais cuidado e atenção à fugidia e misteriosa presença do Ser.
Parece que é apenas uma outra forma, mais sofisticada ou mais presunçosa, de fazermos as já famosas perguntas: de onde viemos, o que somos e para onde vamos. Sim, há um pouco disso, mas não se trata apenas disso. Voltarei, noutra ocasião, à questão de termos que dar nosso testemunho do Ser num momento tão singular.

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