22/03/2020

Lázaro e Monsieur Corona - I


Meu nome é Lázaro, e atualmente estou morando em Belo Horizonte, num apartamento de dois quartos. Moro na Augusto de lima, próximo ao Maletta, e nas imediações do Mercado Central.
Vou construir um “diário” do meu confinamento, durante a reinado de Monsieur Corona (prometo que buscarei outra palavra, sei que essa se tornou por demais consumida-obsoleta e  adolescente).

Apenas quatro dias de isolamento.
E começa a parecer que já não existem mais diferenças entre os dias. Você tem que pensar uns segundos, para decidir - com o necessário grau de certeza - que hoje é realmente domingo, e não mais sábado, nem ainda segunda.
Ontem, já tinha passado por algo assim, mas de fugaz duração. Além disso, tal flutuante percepção do tempo já veio seguida, hoje,  de uma leve indiferença e liberdade em relação ao cotidiano: assim que levantei e fui à geladeira, decidi que não iria tomar a outra metade da garrafa de vinho que lá estava; afinal, terei dias e dias de confinamento pela frente, e assim posso tomar vinho ou cerveja  a qualquer dia, a qualquer hora. Supondo-se, é claro, que eu seja um sobrevivente ao Corona e que possa continuar existindo.
Então, creio que foi a conjugação dessas duas percepções que permitiram que a Voz novamente surgisse para mim, e  murmurasse ao meu ainda sonolento despertar, exigindo que eu escrevesse um diário de minha quarentena.
Afinal, está-se passando por uma singular vivência de si  e do mundo, e é preciso dar tal testemunho ao vivo, a loucura in loco: porque esperar que tudo passe para, então, daqui a  alguns meses, fazer dessa vivência algo a ser literária e filosoficamente processado, e somente assim colocado em palavras?
Ora, tudo urge, tudo se dissolve, já não há referências, marcos no horizonte etc etc: qual a certeza de que estarás sobrevivo ao Corona, daqui a meses ou semanas?
Contra tão implacável argumento da Voz,  desvio não havia.
Mas, suspeito que seja também por uma espécie de compensação, já que, desde quarta-feira, eu escrevi meros quatro ou cinco parágrafos para “Isaía, Irma e Baiano”, o romance aonde narro a última noite de vida e, por óbvio, a morte do mendigo Baiano, já em finalíssima  de fase conclusão – ó, terra do Verbo, grato pelo término de mais uma árdua-fascinante jornada, por teus labirínticos-exigentes caminhos.
Depois falo um pouco desse meu testemunho acerca do mendigo Baiano, vou colocar aqui pequeno trecho da obra.
Por ora, por aqui: atender a essa nova exigência da Voz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário