26/03/2020

Lázaro e Monsieur Corona - III

Tratando hoje de temas menos transcendentes e mais mundanos.
O prédio ao lado do meu sempre foi surpreendente, no que tange às manifestações de seus moradores, ainda mais agora em tempos de Corona.
Ontem à noite um sujeito decidiu fazer uma espécie de treinamento na garagem do prédio. Suponho que seja um instrutor de um curso ou um jogo qualquer, que, para não perder sua necessária renda, deve ter proposto aos alunos treinarem ou jogarem no prédio dele.
Até aí, tudo certo. É preciso se virar, sobreviver, afinal o desastre econômico que aguarda o maldito capitalismo, será talvez maior que o da crise de 1929. Aleluia!
Pode ser que o Corona seja a tão aguardada oportunidade para derrubarmos na sarjeta o gigante de pés de barro, destruir o seu castelo de areia, derrotar o tigre de papel, e por aí afora. Tudo vai depender do grau do colapso provocado por Monsieur Corona nas estruturas do Capital, da capacidade de mobilização do povo  e da organização das verdadeiras organizações de esquerda e das suas lideranças lúcidas, a exemplo de Rui Costa Pimenta e do PCO.
Voltando ao tal instrutor. O problema é que o sujeito é simplesmente uma máquina de berrar. Ele é patético ao dar as suas instruções. Esquece que não está numa dessas assépticas e enjoativas academias, que não está numa rua deserta, mas sim num local cercado de prédios e moradores.
Para além do comportamento fascista e primitivo, parece que a coisa envolve também um pouco de narcisismo. Aquelas coisas que a Psicanálise fala, acerca da necessidade de determinados sujeitos tem de se manifestar ruidosa e ostensivamente, em qualquer situação que seja. Aquilo que parece pura explosão de alegria, vitalidade ou espontaneidade, não passando de patética necessidade se exibir, de exibir o seu ego para os outros, exigir a atenção dos outros para o seu egozinho, que se acha tão atraente, tão admirado. Narciso tentando mostrar aos outros (atualmente de forma vulgar e fascista) que ele é Narciso, o cara. Às vezes é preciso recorrer à Psicanálise para entender essas manifestações, não dá pra ficar chamando Heidegger toda hora, mesmo porque seria covardia.
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Ah, mas tem que chamar Marx, um pouquinho que seja.
Vejamos. Apesar de minha perplexidade irritada com o fato, quis entender que treinamento era aquele, afinal precisamos estar sempre a par das maravilhosas novidades trazidas pela nossa colonizada classe média, copiadas geralmente das nova-iorques e miamis da vida; quanto à referência a essas cidades, não posso fazer nada, a falta de originalidade não é minha, há décadas a nossa diligente-criativa classe média repete o seu itinerário, fazer o quê?   
Sabe-se que a lógica que governa o capitalismo precisa, desesperadamente e sempre, criar novos produtos, serviços, sensações, hábitos; enfim, o capitalismo precisa, a cada dia, criar falsas necessidades humanas, para que não seja paralisada a sua implacável, gigantesca e estúpida máquina de fazer mercadorias e dinheiro, de fazer dinheiro através de mercadorias.
A famosa expressão de Marx: D – M – D+, dinheiro que se converte em mercadoria, para gerar mais dinheiro, e sempre mais, e mais, e  mais, e mais.
Enfim, apesar de ter sido obrigado a ouvir os berros do instrutor, por  quase duas horas, não consegui entender qual era aquela maravilhosa novidade, importada pela nossa colonizada e sempre deslumbrada classe média,  aquela nova mercadoria inventada pelo capitalismo para sustentar sua cada vez mais estúpida, desumana e imbecilizante.
Mas tudo indica que era uma espécie de treinamento ou entretenimento juvenil, baseado em jogos de guerra; bem a propósito desses tempos. Viva a pré-barbárie!
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Na outra ponto do prédio. Mais uma esforçada demonstração de como certa parcela da classe média coloca em prática o suposto conceito que ela faz de si própria: educada, discreta, respeitosa. Tá, sei. Vejamos.
Um casal, para ter companhia durante o confinamento, tomou a brilhante iniciativa de comprar um casal de calopsitas. Quem conhece esse pássaro, sabe como ele canta de maneira estridente, insistente e, pior, durante o dia inteiro. É um canto  repetitivo, monótono. E talvez desesperado.
Claro, já é moda, há uns tempos, criar esse pássaro, nos apartamentos de classe média e nas moradias populares.
Na sua pobreza existencial, os carcereiros desses pássaros, como aliás de todo tipo de pássaro, devem achar que essas infelizes criaturas cantam para alegrar seus pobres ouvidos.
Esses infelizes não têm a sensibilidade necessária para entender algo tão básico: eles cantam é de tristeza e desespero, por não poderem viver no ambiente para o qual vieram ao mundo. Ou seja, na vastidão e no frescor das alturas e do vento, no azul do céu e no cinza das tempestades. 
Até aqui nenhuma novidade, não valeria a pena gastar neurônios com essa estupidez e pobreza existencial, incrustada há séculos entre nós.
Mas de qualquer forma, fica o registro. Pois é simplesmente irritante ter que ficar o dia inteiro ouvindo o lamento repetitivo e estridente. E é patético, risível e constrangedor imaginar e  ouvir a alegria estúpida do casal carcereiro de classe média, que todas manhãs vai lá próximo da gaiola, como um reizinho e rainhazinha idiotas, a cantarolar junto com o seu pobre prisioneiro.
Fica difícil saber o que é mais lamentável: se os carcereiros reizinhos, com sua presunçosa alegria, ou se o irritante canto do pobre prisioneiro. Um canto poético, sim, um lamento desesperado, sim, mas também monótono, chato e estridente.
Uma absurda situação em que a beleza e a grandeza proporcionadas pelo Ser aos entes, se torna nada mais que tristeza, irritação e constrangimento.
Tudo bem que esse exemplo de pobreza existencial não veio com o capitalismo, já existia antes dele. Mas certamente que, com o advento do capitalismo, e com a sua irracionalidade e crueldade cada vez mais aceleradas, os absurdos humanos se multiplicam, encontram terreno fértil. 
Afinal, o alucinado fluxo de mercadorias não pode parar, é preciso produzir, circular, vender, consumir, e tudo se repetir indefinidamente, e desse ciclo infernal não escapam nem mesmo os pobres pássaros. E, claro, também não escapam os cãezinhos, que são reproduzidos, criados e conduzidos como se fossem pobres criaturas de plástico, como se não fossem cães de verdade. Mas essa é  questão para outro momento
*
E só pra reforçar: belo texto, que encontrei no site da soama, entidade de proteção aos animais, de Caxias do Sul: pássaros em gaiolas.
Quem sabe alguma coisa disso chegue aos pobres carcereiros de pássaros, pelo menos ao casal debilóide, que fica a ouvir o estridente e desesperado grito do casal de calopsitas e,  em seu patético narcisismo,  ainda deve achar que todos os vizinhos se deleitam com a lamentável e cruel invasão sonora.
Fico a imaginar o que está por vir, depois de dez, vinte, trinta dias de confinamento. 
*
O poema abaixo, de um amigo lá de Poté (vale do Mucuri),  seria um tapa na cara desses carcereiros estúpidos, se eles pudessem entendê-lo, claro . Aí, talvez compreendessem que existem no mundo coisas diferentes e tão preciosas como nós próprios.
presente, periquitante 
hoje
não mais que hoje
sinto - a vida existe
mesmo periclitante


porque sou quem sou
e se triste estou, brindarei
pássaros no céu
a voarem periquitantes

são coisas boas
são maiores que a gente
                                      vicente gonçalves (poté, mg)

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