10/11/2008

"Poesia Viva"

Editorial: vida urbana

As cenas da vida urbana representam o teatro do mundo, aí onde o tempo excede e dele as pessoas, de imediato, não se dão conta seguindo seu próprio ritmo, caminhos indecifráveis para nós outros transeuntes. As cenas da vida urbana mostram nos intervalos a fugacidade da vida sombras asas soltas flores despetaladas coisas no seu desgaste. Hoje tocadas desejadas, amanhã, jogadas fora. Mas nesse tempo e espaço a trajetória da vida humana se instala em redes de trabalho, lazer alegrias e violências que se batem. Espantos e lamentos, o acaso acontece.

Ninguém pode escapar dos apelos para o que se passa em volta. Uma teia invisível entrelaça vitrines e barracas. Buzinas e cigarras. Andanças e paradas. Agressões e romances. Às vezes um poeta lança um olhar para a revoada de pássaros ou um ipê estalando sóis, um olhar para a natureza abafada no cinzento dos arranha-céus, rolos de fumaças e árvores perdidas umas das outras. Vai descobrindo o tempo limando as horas e o enigma misterioso da existência que transcende o corre-corre do dia-a-dia, de modo tão febril, que poucos param a fim de descobrir o modo de decifrá-lo. De olhos vedados muitos nem percebem que o destino pode quebrar os nós e fechar as portas a qualquer esquina.

Mas o poeta no jogo das cenas percebe que o homem não existe sozinho na estratosfera dos sonhos, acha-se ligado à trama no fio da tessitura, embora desconhecido. E se assume autor de peça de teatro onde não há diretor nem equipe de apoio, somente cenário. O poeta inventa palavras cantos sentidos ritos para os enredos, sabendo, todavia, os ventos fugazes irão desfazer até os poemas. (ir para 'sobre o poesia viva')



Favela ou porque a polícia não apareceu

caminho da vida
o caminho da morte
o mesmo
salto no abismo
o mesmo
olhar sem ternura

nas vielas escuras
os passos desviam-se
somente

cinco inocentes mortos
oito pessoas feridas
e um churrasco regado a cerveja
e samba
Marília Amaral

Alienação

O viaduto era a sua casa.
Do viaduto, ele tudo via.

Via tudo: o luxo dos ricos
e o lixo dos pobres.

Fama\casa\carro.
Fome fodida\coisa\curra.

Pobre, corra da fome.
Fuja da coisa fundida!
Fundida em lixo, restos e ratos.
Fodida em doença e desespero.

Pobre, curre a fama e a riqueza!
Cobre caro a fome!
Não foge, não curra e não corre,
pois só os ricos correm em seus carros.
Por cima do viaduto, eles correm
e não sabem de suas entranhas.
Viaduto: casa estranha,
entranha pobre e podre.

Do viaduto, ele tudo via.
Todavia, só via.
Sem luta.

Laura Esteves

O solitário gesto de viver

não demanda a coragem que há na faca,
na ponta do punhal e até no grito
de quem fala mais alto e está coberto
de razões, de certezas, de verdades.
O gesto de viver se oculta em dobras
tão íntimas do ser, que o desfazê-las
é mais que indelicado, é violência
que nem sequer se pode conceber.
O gesto de viver é só coragem,
mas, de tal forma próprio e incomparável,
que não se exprime em verbo, imagem,
mímica
ou qualquer outra forma conhecida
de contar, definir ou explicar.
A coragem no gesto de viver
está em coisas simples, por exemplo,
na diária decisão de levantar.
E mais, em se vestir e trabalhar
por entre espadas, punhos e navalhas,
peito aberto, sem armas, passo firme,
e à noite, ainda intato, regressar

Reynaldo Valinho Alvarez


Mem de Sá com Gomes Freire

Paulo, codinome Kelly Lee.
De Ubá, o teimoso sotaque – “uai!”.
Pensa na mãe morta, lembra do pai,
E, no trottoir noturno, sorri.

Lembra do pai, que a pôs para fora,
dos irmãos, que lhe viraram a cara.
Mas sorri, por hábito, e, coisa rara!,
uma lágrima escapa-lhe, agora.

Ubá é tão longe, a infância perdida...
E tudo, ali, parece inverossímil!
A lágrima sai negra, do rímel:
“Pior que a morte, só mesmo a vida!”

Kelly - e seu troféu é o codinome!,
exibe, quase nu, seu belo corpo.
Paulo morreu pra sempre, está morto,
afogado em litros de silicone!

Mas algo dele resiste nela,
bem ali, em plena Mem de Sá!
Talvez um velho sonho ou, quiçá,
sua morta mãe, que, por ela, vela.

Ricardo Thomé

A moça na praça

O vento atravessa
a praça
um raio rompe
a carcaça
da negra nuvem
que se esgarça
e a paisagem
se embaça
Mãos se abandonam
sem graça
coração se
despedaça
a moça chora
e disfarça
lágrimas de chuva
inundam a praça

Silvio Ribeiro de Castro



Sol indo embora nuvens de chumbo
no ônibus Náuseas cheiro ácido suor
amônia álcool sangue pisado pingos
do dia tiritante lida Náuseas me
acomodo pé suspenso no ar ombro a
ombro troncos encostos toques maus
pensamentos Náuseas solavancos
trancos balanços paradas entrecortes
gente saindo entrando empurrões
cotoveladas suspiros estalidos crianças
zumbindo guinchos batidas hip-hop
Náuseas cabeças fixas olhos giratórios
ar sufocativo motorista invisível
toco a estridente campainha ele nem
se liga

Leda Miranda Hühne

sobre o jornal 'poesia viva'

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