02/07/2009

silêncios e desvelos II


Nos ‘Cânticos’, publicados acima, vemos confirmar-se uma certa afinidade de Cecília Meireles com o poeta alemão Rainer Rilke, que tem alguns de seus poemas publicados abaixo. Ambos são poetas de coisas, poetas que reverenciam o mundo que nos cerca, na sua simples e ao mesmo tempo enigmática aparição: paisagens, casas, cidades, céus, árvores, nuvens, o próprio tempo. Sabe-se que Rilke desenvolvia, principalmente através de suas cartas, quase que uma estética e uma metafísica para explicar sua própria criação poética. Para ele, escrever era uma forma de buscar aquilo que chamava de ‘o espaço interior do mundo’. Escrever seria uma decorrência do cuidado que deveríamos dedicar às coisas, era uma forma de retratar com palavras o ‘indizível’ que há na simples presença dos entes.

Para Rilke, seríamos os “os mais perecíveis entre os perecíveis” de todos os entes, ou seja, os únicos a tomar consciência não só de nossa finitude e precariedade mas também da finitude e precariedade de todos os entes, de todas as coisas que nos cercam. Para Rilke, então, deveríamos existir no mundo como viventes perplexos e admirados, a testemunhar acerca da queda e da precariedade de todas as coisas. E escrever seria uma forma de trazer para o mundo um pouco desse cuidado para com o perecimento das coisas e de nós próprios. Na verdade, escrever seria dar um duplo testemunho, pois é através da escritura que se realizam a delicadeza e o silêncio que existem no perecimento e na finitude das coisas e de nós próprios.

Ao reverenciar e registrar a precariedade, aquele que escreve traz para o ser o que ainda não existe, acrescenta entes ao ser, dá vida ao indizível que há no ser e nos entes, e isso não para evitar o perecimento ou para deixar uma espécie de memória nobre daquilo que se vai, ou qualquer coisa do tipo – escrever seria algo mais profundo, algo mais ôntico e cósmico, e ao mesmo tempo mais inútil, ou menos ‘útil’, é simplesmente dar voz àquilo que não fala, pensa ou sente, mas que no seu silêncio está tão ou mais presente do que ao ser do que nós.

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Rilke é de fato um dos representantes da tradição da poesia filosófica ou metafísica alemã. Aliás, percebe-se como a poesia e o pensamento de Rilke ecoam a filosofia de Heidegger - mas tendo escrito sua obra antes do filósofo alemão. Em sua filosofia Heidegger irá apresentar conceitos como o cuidado e o desvelamento que devemos ter em relação ao ser, a preocupação em resgatar o sentido de ser que se manifesta na aparição das coisas; enfim, naquilo que interessa aqui, há a mesma preocupação, o mesmo desvelo que há em Rilke com a aparição e desaparição das coisas.

Em ambos há também o cuidado em não permitir que sejamos demasiadamente envolvidos pela tecnologia modernosa, com a consequente instrumentalização e padronização da existência. Heidegger fala da existência autêntica em oposição a uma existência inautêntica, a uma existência padronizada, fabricada por uma modernidade na qual o que alimenta a engrenagem é a necessidade de que o indivíduo fale o que todos falam, coma o que todos comam, pense o que todos pensam, sinta o que todos sintam - aliás, uma engrenagem que é extremamente competente em fazer com que sintamos medo e desconforto ao não pensarmos e sentirmos uns iguais aos outros.

Roberto Soares

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