01/07/2009

o senhor ventura

Neste mês Desvelar apresenta um pouco de literatura de Portugal, com trechos de ‘O Senhor Ventura", do escritor Miguel Torga (1907-1995), publicado em 1943. O próprio título dá o tom da obra. Pois é de fato um romance - ou uma novela - ágil, eivado de ação, aventuras e desventuras, principalmente desventuras. Pois é preciso lembrar que o vocábulo ventura não significa propriamente alegrias, gozos, sucessos. Significa apenas o que deve vir, seja bom ou ruim, o acaso, o destino. E o destino do Senhor Ventura é atribulado, aguerrido, indômito e por fim melancólico.
A narrativa á vazada numa certa atmosfera de melancolia e saudade, como não poderia deixar de ser em se tratando de típica literatura portuguesa. Mas no Senhor Ventura há mais de Portugal, além da nostalgia. Esse irrequieto e sofrido personagem de Torga é de certa forma uma tentativa de resgate poético do grandioso destino de Portugal, à época das Grandes Viagens. Como aliás já sugere o misterioso narrador oculto, logo na abertura do livro.
Desta feita, Desvelar publica apenas trechos da primeira parte do livro, a parte mais recheada de ação, empreendimentos e viagens. Fica para uma outra oportunidade amostras da vida amorosa e do desolado declínio do Senhor Ventura. Como também fica para outra ocasião um comentário menos apressado acerca dessa comovente história do português Miguel Torga.
No Brasil, a obra foi publicada pela Nova Fronteira, em 1999.
"Em tardes assim como as de hoje, cansado de esperar não sei por que milagre, desanimado diante do mapa do mundo que da parede me desafia desde a meninice, começo a pensar no Senhor Ventura. Na sua evocação mitigo durante algumas horas a dor que vai dando cabo de mim. Não me resigno à idéia de ter vindo à luz neste tempo e numa terra durante séculos inquieta de saber e descobrir, e depois tragicamente adormecida para tudo que não seja olhar-se e resignar-se". página 11
“O que essa temeridade foi, não cabe aqui. Só mesmo um homem de carcaça de ferro e coração com pelos é que era capaz de fazer chegar àqueles confins os duzentos carros do contrato. Primeiro, a travessia da China, por caminhos onde Deus Nosso Senhor nunca passou; depois, o deserto imenso, escaldante, a secar a água, a gasolina e o próprio sangue de quem incautamente se lhe abandonava.
- Vamos!
E uma rajada de vontade atravessava a caravana inteira.
Pontes improvisadas sobre abismos, combates à carabina com salteadores de estradas, impossíveis de toda a natureza, nas ordens do senhor Ventura eram brincadeiras de criança.
- E valerá a pena a gente arriscar-se tanto? perguntou, ao fim dum dia medonho, o Pereira.” página 37

“Estava porém escrito que aquele negro negócio não podia frutificar e que o pouco tempo que duraria tinha de doer muito ao verdadeiro dono. Desígnios complicados lá do alto, que o alentejano só entendeu quando se encontrou de coração a sangrar pela primeira vez.
Certo dia, um bando de soldados do exército rebelde, sem armas e sem dinheiro para as comprar ao português, resolveu tomá-las à força. O senhor Ventura foi avisado por um traidor, ao entardecer.
Era caso para pensar três vezes. Mas o do Alentejo nem se comoveu.” página 48

“O combate começou então, duro como a decisão do Senhor Ventura. E tanto ele, do Alentejo, como o Pereira, do Minho, como os mercenários, de nenhuma terra, parecia que estavam a defender a pátria.
Mas os outros eram mais e batiam-se como desesperados, que ou triunfavam, ou não tinham salvação. Traziam aquela audácia que o Senhor Ventura conhecera já, nos tempos em que ele tinha tudo a ganhar e nada a perder de uma refrega. Eram um jogo no futuro, enquanto o alentejano e os companheiros eram somente uma defesa do passado. E, por isso, acabaram por levar a melhor. Entraram, mataram, saquearam, incendiaram, e só por milagre o Senhor Ventura conseguiu salvar-se na escuridão, com o corpo do Pereira às costas, a gemer, ferido de morte por uma bala que lhe atravessara o peito” . página 49

“No silêncio da noite e em pleno deserto, sob um céu escuro onde só uma estrela bruxuleava, o Senhor Ventura recebeu então no mais profundo da alma o último suspiro do companheiro. E pela primeira vez a sua humanidade dura teve consciência do mistério da vida e da morte, e das forças cósmicas que aproximam os homens e os fazem amar-se uns aos outros. Por que razão chorava ele o corpo exangue que lhe arrefecia nos braços? Por que motivo um desespero amargo lhe apertava a garganta? Tanta gente que vira morrer a seu lado! Mas, por mais que quisesse, não conseguia render-se à insensibilidade deste argumento.Conhecera aquele sujeito por acaso – continuava, a tentar convencer-se -, sabia quês e chamava Pereira, era do Minho e cozinhava bem. Nada mais. Que o distinguia, afinal, dos outros? Contudo, as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara abaixo.” página 50

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