01/07/2009

anarquismo e cecília

Ao lado do registro da vertente filosófico-melancólica da poesia de Cecília Meireles, abordada em silêncios e desvelos II, os ‘Cânticos’ remetem-nos também a uma certa postura libertária e anarquista. Há neles um caráter de despojamento e de afirmação da liberdade em relação a qualquer ordem estabelecida, uma certa certa negação dos valores dos quais essa mesma ordem se utiliza para capturar as liberdades e espontaneidades que somos todos nós, ou que deveríamos ser, e no lugar da negação os poemas afirmam a atenção, o cuidado que devemos conosco mesmos, para que exercitemos mais o nosso desvelo para com as para com as coisas que estão aí, na sua gratuidade, leveza e densidade.

E, nesse ponto, podemos também tranquilamente retornar ao vínculo entre a poesia de Cecília e as cosmovisões das civilizações do Oriente, mas com aquilo que essas cosmovisões têm de consistente e de milenar, e não com os seus simulacros e fragmentos - tal como apontado em silêncios e desvelos I . Pois se há algo que a maioria dessas chamadas sabedorias propõem, é exatamente a necessidade de o indivíduo se despojar de seus enlaces excessivos com o transitório, o ruidoso, o repetitivo, o fácil e o fenomenal, que nos distraem do essencial e do sentido das coisas e de nós próprios no meio das coisas.
Aliás, parece que também haveria algo a dizer acerca da afinidade entre movimento libertário e as cosmovisões do Oriente, mas numa outra ocasião, num texto mais específico.

De qualquer forma, não se pretende aqui vincular Cecília Meireles e movimento anarquista, apenas registrar que são em poemas como esses que se pode perceber com mais nitidez a incontestável ponte que existe entre a arte e as propostas libertárias. Tanto quanto a autêntica arte, a visão libertária e anarquista é feita de riscos, de disposição criadora, de confiança no potencial fraterno dos indivíduos, de ênfase na celebração da vida e do mundo, ao invés da ênfase na conquista, na autoridade e no poder; e tanto a arte quanto a posição libertária carregam consigo a necessária lucidez e sensibilidade para perceber que, enquanto existentes, somos apenas precários mas fascinantes instantes no fabuloso mistério do tempo e do cosmos.
Essa afinidade entre arte e anarquismo com certeza que os cânticos de Cecília nos mostram - dentre tantos milhares de poemas de milhares de poetas. E como dito acima, os 'Cânticos' refletem maturidade existencial, apresentam-se de fato como o dizer verdadeiro de alguém. Aliás, vale uma consulta tanto ao conceito de dizer verdadeiro quanto ao conceito de parresiasta, presentes por exemplo no pensamento do filósofo Foucault, e difundidos entre alguns expoentes e militantes do anarquismo. Fica para uma outra oportunidade uma abordagem mais demorada acerca das relações do dizer verdadeiro da arte e dos anarquistas.
Leia, entre outros, o cântico I

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