04/05/2010

...e uma gaiola

nem tão dourada

casa de detenção de vila velha, hoje uma gaiola humana...
 
Através de uma matéria da Rede Record (veja aqui o vídeo)   o Brasil inteiro teve a oportunidade de saber o que se passa no interior dessa e de outras prisões capixabas - ou masmorras capixabas, como preferiu o jornalista Elio Gaspari, em artigo publicado em 07 de março e divulgado à exaustão na grande mídia, e também aqui no Desvelar. 

Imagine que, dentro desse aprazível prédio, você irá ficar trancado numa cela, um pouco maior ou menor do que a sala de sua casa, em companhia de 30, 40 ou 50 pessoas. Além de terem que ficar juntos o dia inteiro, vocês ainda teriam que se revezar durante a noite para poderem dormir. No escasso espaço não há como todos se deitar e ao mesmo, tempo, mesmo que com o corpo encolhido. Então uns dormem, enquanto outros aguardam a sua vez, ou dormem em pé.

Mas você não irá passar apenas uma noite ou um dia, ou uma semana, nesse ambiente sufocante e sim meses, anos.

O almoço é trazido em baldes, que são colocados próximos às grades. Alguns presos se abaixam e com uma vasilha vão tirando a comida dos baldes, passando-a entre as grades e servindo-a para os outros presos em marmitas, latas, pratos. Os que estão mais ao fundo ficam sem comer, quando não dá para todo mundo.

Sobre tomar banho e fazer as necessidades não é preciso comentar, basta imaginar que existe um vaso e um chuveiro para atender a 50 pessoas.

Afora os horários dos banhos de sol e os dias de visitas, os presos passam o dia inteiro comprimidos nessas celas apertadas e opressivas.

Até aí nada de novo, nada que se diferencie muito da maioria das cadeias e presídios existentes Brasil afora. A lista de constrangimentos, humilhações e punições poderia se estender, mas não é objetivo deste texto retratar o que foi exaustivamente mostrado nas imagens da TV Record.

Talvez se devesse lembrar aqui o macabro dado que diferencia alguns presídios capixabas de seus congêneres país afora: o esquartejamento de presos. Mas afora esse elemento de crueldade, o essencial não é novidade, afinal ouvimos com freqüência relatos de assassinatos e execuções dentro de presídios.

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O que se quer registrar aqui, tomando como base o horror dos presídios capixabas, é a extrema naturalidade com que todos nos conformamos com a existência de lugares como cadeias, presídios, prisões, cárceres etc. Tudo se passa como se nada do que foi narrado acima acontecesse de verdade, como se não ocorresse próximo ou mesmo dentro de nossas cidades, como se dissesse respeito a um outro mundo.

Na realidade, o poder constituído trabalha com a tendência que temos em nos omitir, em não querer tomar conhecimento do que se pratica dentro desses lugares. Cá fora, a vida já é por demais dura e angustiante, para ainda termos que nos ocupar ou nos lamentar por aqueles que, de uma forma ou de outra, teriam cavado sua própria sorte, ou seu próprio buraco.

A sorte, ou o inferno, dos que por lá permanecem, costuma ser ignorada até mesmo por aqueles setores mais sensíveis aos dramas humanos, como militantes de esquerda, artistas em geral, religiosos, com exceção de pessoas e entidades de direitos diretamente ligadas ao cotidiano da chamada população carcerária.

Essa ignorância ou indiferença faz bem aos dois lados: do lado de cá evita que nos envolvamos e nos sobrecarreguemos com mais uma das abomináveis contradições do mundo que nos cerca e ao qual aderimos, e do lado do poder permite que o Estado e os seus agentes fiquem à vontade para administrarem a seu modo o inferno das prisões - um modo no mais das vezes brutal, despreparado e rancoroso.

Afinal, esses agentes estão frente a frente com aqueles que, por um motivo ou outro, romperam as normas mais elementares de convívio entre seres humanos, através de violências várias: roubos, agressões, estupros, assassinatos etc. E é uma convivência dura, feita de ameaças, tensões, atritos constantes. A consequência lógica é que esses agentes incorporem em si o papel de juízes e carrascos no seu cotidiano, já que estão fora do alcance da chamada sociedade, que prefere não se envolver.

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O círculo de horrores forjado pelo poder é então perfeito: nas contradições do modelo econômico brotam condições para o aparecimento de excluídos e criminosos, isolam-se esses criminosos da sociedade, contrata-se agentes para cuidar desses presos, esses agentes podem tornar-se tão brutais quanto os presos, quando não são executados ou mortos por doenças, criminosos são soltos depois de um certo tempo e, finalmente, os punidos retornam ao caminho do crime, ou porque o modelo econômico não incentiva, ou não permite, que a chamada sociedade lhes dê acolhida a esses punidos, ou porque a prisão já lhes tirou toda e qualquer possibilidade se redimirem, de lutarem por uma nova acolhida. E aí o círculo recomeça, mais desesperador e mais raivoso ainda.

E nesses tempos de barbárie, quando é cada vez maior o número de cidadãos assustados e idiotizados pela mídia - com seu bombardeio consumista e individualista - o problema se agrava mais ainda. É extremamente fácil para o poder de estado manipular a massa assustada, fazendo com que além de ficar indiferente aos horrores das prisões, essa mesma massa concorde com o extermínio silencioso dos chamados ‘criminosos’. Alimentada pela sua ração diária de medo, individualismo, consumismo e preguiça, a massa acredita sinceramente que a solução da violência passe pelo puro e simples extermínio.

Ainda ousamos nos declarar civilizados mais civilizados do que os inúmeros povos que se forjaram longe dos valores do Ocidente?

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Claro que esse eficientíssimo círculo não será quebrado de um dia para o outro, sequer de uma década para outra. Uma solução, senão definitiva, mas ao menos mais humanizadora, evidentemente terá que esperar pela transformação radical das estruturas sociais e econômicas.

De qualquer forma, talvez fosse interessante levar um pouco mais a sério as propostas do movimento anarquista que pregam o chamado Aboliconimso Penal, que seria, num conceito resumido,  a eliminação do poder de estado para punir e prender.

Claro que há muito de utopia e de ingenuidade nessa proposta. Afinal, para se construir uma sociedadede sem punição e sem prisões, teremos que primeiro extirpar ao máximo as condições que levam ao aparecimento dos chamados criminosos.  E para isso, obviamente temos que primeiro destruir as atuais estruturas sociais e econômicas e forjar um novo modelo de convivência entre as pessoas, que não seja alimentado pela (e nem aliemente) competição, individualismo, isolamento, medo, indiferença, cansaço, descrença, omissão.

De qualquer forma, e sem pretender esgotar em tão poucas palavras o complexo tema do Abolicionismo Penal, o horizonte de uma sociedade sem punidos e punidores deve  ao menos guiar o nosso olhar - mesmo que seja somente para compreendermos o quanto o modelo capitalista ainda nos mantém longe de nosso tão pretendido grau de civilização superior, efetivamente humanizada e humanizadora.

Guiar o nosso olhar, mesmo que seja somente para que um dia não precisemos olhar com tanta cautela para uma imagem como a da casa de Detenção de Vila Velha.

Para que um dia possamos de fato olhar e saber que o que vemos é apenas a beleza e a harmonia de uma bela e imponente peça arquitêtonica, deixada como herança por nossos antepassados, num determinado momento da atribulada e contraditória jornada humana.

Para que um dia possamos olhar essa poesia e harmonia junto com pessoas que não estarão mais lá dentro a apodrecer o corpo e  alma em gaiolas e sim livres e crentes em meio a quentes manhãs azuis e douradas.


...no futuro apenas um lugar bonito de se olhar

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