14/06/2010

o gol e o voto - copa da áfrica I

Embora sobejamente conhecida de todos, nunca é demais lembrar a ora sutil ora descarada manipulação que a mídia faz com a legítima paixão que os brasileiros têm pelo futebol.

Principalmente nestes tempos de Copa do Mundo, quando a espetacularização promovida pelos profissionais de mídia beira uma tentativa de imbecilização do torcedor - até que grau o torcedor se deixa imbecilizar por todo esse aparato da mídia é difícil saber, mas com certeza os profissionais de mídia (seja em nome da sobrevivência ou de uma festiva e acrítica adesão) absorvem em si próprios um pouco de toda essa 'macaquice'.  

De qualquer forma, nada desssa espetacularizção e manipulação é capaz de ofuscar a legítima festa popular que é uma Copa do Mundo, e não apenas para os brasileiros. É preciso respeitar e mesmo comungar com este momento de precária comunhão entre os povos, enquanto construímos uma comunhão maior, ou mais autêntica.

Mas nem por isso precisamos fechar os olhos para a manipulação, o exagero. O acurado texto do Pe Alfredo Gonçalves, 'O gol e o voto' é um ótimo lembrete neste sentido, fazendo um interessante paralelo entre  a arena do futebol e a arena da luta de classes que ocorre aqui no Brasil, já que desde 1994 as nossas elições presidenciais coincidem com uma Copa do Mundo.

o gol e o voto
O gol e o voto, em termos brasileiros, parecem irmãos gêmeos. A cada quatro anos, estreitam de tal modo os laços, que um acaba cruzando o caminho do outro. Não que o povo brasileiro seja exatamente o que se pode chamar de exemplo de participação cidadã, mas porque é obrigado a comparecer às urnas, sob penas de multa e outras complicações. O que, de quatro em quatro anos, nas eleições majoritárias, ocorre juntamente com a Copa do Mundo.

Depois de vibrar com os gols e com as vitórias da seleção, ou de amargar seus reveses e falar mal do técnico, o cidadão é submetido a um desfile políticos: nomes, rostos e discursos que lhe invadem a casa através da televisão e do rádio. Em alguns casos, mais parecem múmias recém-saídas do túmulo; em outros, despejam uma verborréia que não lhes dá tempo sequer de respirar direito; enfim, há também os que enchem o tempo com promessas e expectativas que se revelam verdadeiros balões furados; embora raros, há ainda os que estão vinculados ao cotidiano popular.

Passado o festival verde e amarelo de gols, vem a disputa acalorada pelo voto de cada brasileiro ou brasileira. Nas ruas, as cores da bandeira nacional são substituídas pelas cores dos partidos políticos. No primeiro caso, a população consome e desfruta do espetáculo; no segundo, é forçada a digerir o “compromisso com a democracia e com os destinos da nação”. Duas formas de cidadania?

Poder-se-ia alegar que enquanto no futebol há os jogadores e os torcedores com papéis diferentes e bem definidos, no processo eleitoral todos se envolvem no jogo. O povo é chamado a descer das arquibancadas e entrar em campo. Teoricamente , todos se convertem em protagonistas do exercício democrático, na construção do futuro. Ledo engano ou franca demagogia! Na democracia representativa do mundo ocidental acumularam-se vícios e entraves que impedem um protagonismo efetivo da população. A economia e a política se entrelaçam de tal modo, desenvolvem uma promiscuidade tão profunda, que a riqueza gera poder e o poder é caminho para maior enriquecimento. O círculo de ferro fecha-se sobre poucos privilegiados.

Da mesma forma que o futebol, o jogo das eleições também tem seu gramado, exclusivo de uns poucos, e as arquibancadas, de onde o povo assiste mais ou menos passivo ao desenrolar dos fatos. Em campo estão aqueles que dispõem de poder e de condições financeiras para colocar na órbita da mídia seu nome e imagem, rosto e palavras. Nas arquibancadas, em frente à telinha, o povo torce, aplaude, se irrita ou simplesmente desliga o aparelho. Parafraseando Gilberto Freire, são os senhores da Casa Grande que entram no gramado, enquanto os moradores da Senzala se limitam a ocupar a platéia. Perpetuam-se o domínio, de um lado, e a dependência, de outro.

Tanto o gol como o voto tem seus heróis e sua torcida. Uns participam ativamente do jogo, outros o assistem de longe. Em última instância, votar não é escolher, mas apontar alguns entre os já escolhidos. A escolha é feita previamente entre os donos do poder, da riqueza e da influência. Ao eleitor compete aplaudir ou vaiar aqueles que sobem ao palco do grande teatro do processo eleitoral, vale dizer, que reúnem as condições de subir ao palanque.

Entre os vícios e entraves da democracia dos países ocidentais, está o fato de que as regras democráticas pararam a meio caminho. Surfam nas águas superficiais da política, mas não descem às correntes subterrâneas da economia. De fato, como diz Bertrand Russell (História do pensamento ocidental), os países do ocidente eliminaram as dinastias políticas, muitas vezes sacramentadas pela Igreja, mas não conseguiu fazer o mesmo com as dinastias econômicas. Se por um lado é ilícito ao filho de um presidente receber do pai o legado de sua função, como era o caso da monarquia, por outro é absolutamente natural que ele herde todas as suas riquezas, não importa a maneira como tenham sido adquiridas. O governo “do povo, pelo povo e para o povo” não inclui o domínio sobre o fruto do trabalho de todos, o qual, embora coletivo, segue sendo privadamente apropriado.

Resulta que o poder econômico, de uma forma ou de outra, acaba determinando as funções do poder político juntamente com seus ocupantes. Especialmente nos dias de hoje, em que os gastos com uma campanha eleitoral se elevam a cifras exorbitantes medidos em milhões de reais. Na última hora, o povo é chamado às urnas para legitimar um jogo já definido nos bastidores. Como alguém que lança os dados, mas não domina as regras do jogo. Regras que se limitam, salvo raríssimas exceções, a manter os privilégios das classes dominantes. Garantidos tais privilégios, os diferentes setores da Casa Grande, do alto de seus alpendres, para não falar do Planalto Central, podem ou não distribuir algumas migalhas para a população faminta.
É assim que, após alguns séculos da Independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789), a democracia ocidental não passa de um arcabouço legal do sistema de produção capitalista, de corte liberal ou neoliberal. Pouco ou nada tem a ver com a vida e as necessidades concretas das populações mais pobres. Gols e votos, fantasiados de verde e amarelo, constituem duas formas de “brincar de patriotismo”, onde a euforia e a emoção tendem a deixar cega e surda a razão.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS



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