Aproveitando a proximidade do Dia de Joyce, ou ‘Bloomsday’, celebrado agora em 16 de junho, Desvelar publica um trecho de ‘A canção dos Loureiros’, do francês Édouard Dujardin.
Essa breve (e incrivelmente desconhecida) novela é considerada por muitos como uma espécie de precursora do famoso ‘fluxo de consciência’, utilizado por Joyce na parte final do ‘Ulisses’ - o não menos famoso monólogo de Molly Bloom.
Com relação a essa surpreendente ‘filiação’, Valery Larbaud, no prefácio da edição de 1295, narra que, num encontro com Joyce, o próprio autor de ‘Ulisses’ confirma ter tomado conhecimento de ‘A canção dos Loureiros’ e , mais, reconhece o diálogo entre as duas obras. Narra Larbaud:
“Foi então que ele me disse que essa forma já havia sido empregada, e de maneira contínua, em um livro de Édouard Dujardin, publicado em plena fase simbolista, e anterior em cerca de trinta anos à composição do Ulisses: A canção dos Loureiros – livro do qual somente o título eu conhecia, obra negligenciada pela maioria dos letrado de minha geração.”
No trecho abaixo o leitor poderá perceber quão evidentes são essas afinidades entre as duas obras. Obviamente que não se trata de colocá-las no mesmo nível - mesmo porque 'A canção...' tem cerca de 110 páginas ao passo que "Ulisses', cerca de 700. O que se deve captar é a incrível semelhança de atmosfera, a surpreendente utilização, por Dujardin, daquela mesma técnica que coloca o leitor 'dentro' da consciência do personagem, e isso tendo sido criado no distante ano de 1888, portanto trinta anos antes de Joyce ter publicado 'Ulisses'.
Claro que com Joyce a técnica foi devida e genialmente lapidada, e claro que sequer podemos imaginar algo como um plágio da obra de Dujardin. Mas certamente ocorreu uma inspiração, Dujardin contribuiu para o despertar da genialidade que estava latente em Joyce, através de um desses abundantes diálogos interiores que existem não apenas na literatura e na poesia, mas nas artes e na cultura em geral, e na própria história da humanidade.
Enfim, há muito o que refletir sobre essas afinidades entre Joyce e Dujardin e entre as odisséias do protagonista de 'A canção...', Daniel Prince, e as de Sthepen Dedalus e Leopold Bloom, o que fica para ocasião mais oportuna.
Por ora, fiquemos com o trecho de 'A canção...', cabendo ainda observar que a afinidade não é entre Daniel Prince e Molly, mas entre ele e Stephen ou Leopold - a obra de Dujardin não é vazada num fluxo ininterrupto, sem pontução, sem lógica sintática convencional ou sem nterrupção para diálogos, tal como ocorre no monólogo de Molly em 'Ulisses'. A Dujardin:
“(...)onde está o garçom, que se apresse; nunca se acaba nesses restaurantes, se eu pudesse dar um jeito de comer em casa, talvez o zelador cozinhasse para mim por pouco dinheiro todo dia. Seria ruim. Sou ridículo; seria aborrecido; nos dias que não pudesse voltar para casa, o que aconteceria? Ao menos num restaurante não se fica aborrecido. E o garçom, o que está fazendo? ele chega, traz o linguado. Que peixes estranhos! Este linguado dá para quatro garfadas; há outros que servem para dez pessoas; o molho tem alguma finalidade, é verdade. Comecemos com ele. Um molho da mariscos e camarões seria notavelmente melhor. Ah, a nossa pesca de camarões; a lastimável pesca, e que fadiga, e as pernas molhadas! entretanto eu usava os sapatos amarelos grossos da praça da Bolsa. Nunca terminamos de limpar um peixe; não continuo. Devo cem francos, e mais, ao fabricante de botas. seria preciso tentar aprender os negócios da bolsa, seria prático. Nunca compreendi o que era jogar em baixa; que ganho possível haverá com os valores em baixa? (...) Esse gordo advogado que está comendo deveria me informar. Talvez ele não seja nem advogado nem tabelião. Ah! essas espinhas; não há nada para comer neste linguado; no entanto ele está bom, deixemos estes restos. No banco, viro-me contra o encosto; ainda as pessoas entrando; todos homens; um que parece embaraçado; o espantoso sobretudo claro; já há muitas estações que não se usa um desses. Acabei deixando um apetitoso pedacinho de linguado, bah! não vou passar por ridículo ao pegá-lo. Excelente seria esse pedacinho branco, com as riscas marcadas pelas espinhas. Menos mal, não comerei. limpo os dedos com o guardanapo, um pouco áspero o guardanapo; novo, talvez(...)."
‘A canção dos Loureiros’ (pp 26-28), de Édouard Dujardin, Editora Globo, 1989, tradução de Élide Valarini.
veja tembém
trechos de 'ulisses'
vídeos do bloomsday
No trecho abaixo o leitor poderá perceber quão evidentes são essas afinidades entre as duas obras. Obviamente que não se trata de colocá-las no mesmo nível - mesmo porque 'A canção...' tem cerca de 110 páginas ao passo que "Ulisses', cerca de 700. O que se deve captar é a incrível semelhança de atmosfera, a surpreendente utilização, por Dujardin, daquela mesma técnica que coloca o leitor 'dentro' da consciência do personagem, e isso tendo sido criado no distante ano de 1888, portanto trinta anos antes de Joyce ter publicado 'Ulisses'.
Claro que com Joyce a técnica foi devida e genialmente lapidada, e claro que sequer podemos imaginar algo como um plágio da obra de Dujardin. Mas certamente ocorreu uma inspiração, Dujardin contribuiu para o despertar da genialidade que estava latente em Joyce, através de um desses abundantes diálogos interiores que existem não apenas na literatura e na poesia, mas nas artes e na cultura em geral, e na própria história da humanidade.
Enfim, há muito o que refletir sobre essas afinidades entre Joyce e Dujardin e entre as odisséias do protagonista de 'A canção...', Daniel Prince, e as de Sthepen Dedalus e Leopold Bloom, o que fica para ocasião mais oportuna.
Por ora, fiquemos com o trecho de 'A canção...', cabendo ainda observar que a afinidade não é entre Daniel Prince e Molly, mas entre ele e Stephen ou Leopold - a obra de Dujardin não é vazada num fluxo ininterrupto, sem pontução, sem lógica sintática convencional ou sem nterrupção para diálogos, tal como ocorre no monólogo de Molly em 'Ulisses'. A Dujardin:
“(...)onde está o garçom, que se apresse; nunca se acaba nesses restaurantes, se eu pudesse dar um jeito de comer em casa, talvez o zelador cozinhasse para mim por pouco dinheiro todo dia. Seria ruim. Sou ridículo; seria aborrecido; nos dias que não pudesse voltar para casa, o que aconteceria? Ao menos num restaurante não se fica aborrecido. E o garçom, o que está fazendo? ele chega, traz o linguado. Que peixes estranhos! Este linguado dá para quatro garfadas; há outros que servem para dez pessoas; o molho tem alguma finalidade, é verdade. Comecemos com ele. Um molho da mariscos e camarões seria notavelmente melhor. Ah, a nossa pesca de camarões; a lastimável pesca, e que fadiga, e as pernas molhadas! entretanto eu usava os sapatos amarelos grossos da praça da Bolsa. Nunca terminamos de limpar um peixe; não continuo. Devo cem francos, e mais, ao fabricante de botas. seria preciso tentar aprender os negócios da bolsa, seria prático. Nunca compreendi o que era jogar em baixa; que ganho possível haverá com os valores em baixa? (...) Esse gordo advogado que está comendo deveria me informar. Talvez ele não seja nem advogado nem tabelião. Ah! essas espinhas; não há nada para comer neste linguado; no entanto ele está bom, deixemos estes restos. No banco, viro-me contra o encosto; ainda as pessoas entrando; todos homens; um que parece embaraçado; o espantoso sobretudo claro; já há muitas estações que não se usa um desses. Acabei deixando um apetitoso pedacinho de linguado, bah! não vou passar por ridículo ao pegá-lo. Excelente seria esse pedacinho branco, com as riscas marcadas pelas espinhas. Menos mal, não comerei. limpo os dedos com o guardanapo, um pouco áspero o guardanapo; novo, talvez(...)."
‘A canção dos Loureiros’ (pp 26-28), de Édouard Dujardin, Editora Globo, 1989, tradução de Élide Valarini.
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