08/06/2009

a densidade e o silêncio...

...sobem ao palco
cena 03 - decifra- me ou te devoro, intérprete Vinicius Cavatti
cena 04 - desenvolto, intérprete Wederson Fernandes
cena 05 - jirah, intérprete André Messias
fotografias de Carlos Antolini
As fotografias acima são do "Cosmogonos" e escrevi o texto abaixo em 2007, por ocasião da apresentação do trabalho , no Teatro Carlos Gomes, em Vitória; portanto bem antes de começar a editar este blogue. 
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Cosmogonos”, o trabalho mais recente de Paulo Fernandes, confirma a atração que o tema da origem das coisas e da vida exerce sobre o diretor e dançarino (cosmogonia: geração do cosmos, gênese das coisas e do tempo). Paulo Fernandes há muito tempo desafia o público com propostas não muito freqüentes nos palcos de dança e teatro - e não somente aqui no Espírito Santo - ao enveredar por linguagens e temas de atmosferas marcadamente míticas e cósmicas.

Não é tarefa fácil fazer no palco esse resgate do primitivo e do ancestral, que todos carregamos no corpo e na memória. A responsabilidade do artista, quando envereda por essas trilhas - infelizmente cada vez mais esquecidas, em nossa civilização abundante de almas de plástico, enfeitadas de bugigangas eletrônicas, a habitar dentro de assépticos condomínios, shoppings e carros último modelo - é a de conseguir, efetivamente, despertar em nós as ligações obscuras e intuitivas que temos com o mundo, com as coisas e com o tempo.
Há que se ter um extremo cuidado para não inchar o trabalho com inúmeras referências e, aí, se perder num trânsito deslumbrado entre as muitas visões cosmogônicas (as diversas religiões, filosofias e sabedorias); e, também, para não cair na tentação do subjetivismo, das divagações pessoais - evitando impor ao espectador a sua visão pretensamente iluminada do que seja uma percepção profunda, uma relação adequada com a vida e com o ser. Enfim, é preciso se postar com maturidade e equilíbrio, pois quanto mais distantes estamos da origem mais temos o que falar e como falar sobre o assunto - que, aliás, deveria ser um dos assuntos mais importantes de todo e qualquer civilização, esse tema de buscar uma relação profunda e reverente com aquilo que nos cerca.
Pois a tarefa de colocar esse assunto no palco vem consumindo as energias do diretor em seus últimos trabalhos, com o cuidado, a serenidade e a seriedade exigidas. Através de ágeis saltos no espaço, de movimentos rastejantes no chão, de uma quase completa imobilidade do corpo, de gestos geométricos com as mãos ou através de passos robotizados, Paulo Fernandes obstina-em em fazer com que os movimentos dos bailarinos nos ofereçam, por instantes que sejam, aquela atmosfera de densidade e estranheza, de admiração e espanto, que nos envolve quando às vezes temos testemunhamos um pouco desse mistério cósmico que nos acolhe.

Como que puxado por um poderoso imã, Fernandes vai atrás da tarefa de reconstruir para nós, agora através da arte, o precário e escorregadio desenho desses místicos instantes de testemunho da cosmogonia. E, na sua persistência e no seu rigor, o diretor aponta com precisão as trilhas, como que empurra o seu grupo de dançarinos para lá atrás no tempo, impondo a economia e a seriedade de gestos, enfim, exige dos movimentos dos atores (ou da ‘forma’ do espetáculo) aquela mesma concisão e reverência que o diretor consegue impor ao enredo (ou ao ‘conteúdo’) e de que falávamos acima. A ausência de concessões, a recusa ao caminho fácil, está presente até mesmo na trilha sonora: são sonoridades quentes, expressivas, mas com algo de cavernosas, de distância no tempo e no espaço, nada de músicas conhecidas ou apenas agradáveis aos ouvidos.

Já quanto ao ‘conteúdo’, não há propriamente um enredo. O que existem são blocos, episódios em aparência soltos, fragmentados, mas que se juntam numa articulação que, em última instância, dependerá exclusivamente da leitura, da percepção do espectador - o que é comum no teatro de ensaio, de propostas mais conceituais ou filosóficas. O que não quer dizer que não haja, na concepção do diretor, uma seqüência, uma estruturação. No caso de “Cosmogonos”, através de oito episódios, o espetáculo começa literalmente pelo começo (um personagem mascarado, quase imóvel, representando o princípio criador) e vai até nossa era globalizada, na figura da dançarina de gestos mecanizados simbolizando nossa robotização consumista, ideológica e existencial.

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É sempre benvinda e necessária uma arte que não se ocupe apenas de dramas individuais, sociais, afetivos ou de questões estéticas, mas que, complementando essas outras abordagens, seja uma arte que se atreva a assumir o seu parentesco com a religiosidade, a filosofia e o mito, uma arte que ouse nos lembrar que, ao lado dos muitos outros sentidos, o nosso sentido, aqui nesse espantoso mistério do ser, é também o de reverenciar, fundir-se, orar, relembrar, uma arte menos ocidental e mais universal, uma arte do sagrado.
Uma arte que ajude, a nós ocidentais, a evitar nosso quase definitivo esquecimento dos princípios e das origens, nosso medo dos silêncios, nossa fuga de tudo que proponha uma densidade interior, própria. E que também não celebre apenas uma fusão bêbada, carnavalesca ou dionisíaca, como se fôssemos todos bacantes à procura de uma anulação, de um esquecimento de nós mesmos. Uma arte que, embora resgate e celebre a origem comum, o faça de forma a não disfarçar a inescapável e insubstituível ponte que cada um de nós tem com o mistério das coisas, do tempo, das vidas e de si próprio. Uma arte que nos ofereça não apenas carnavalização mas também a reverência ao mistério - nada contra o carnaval e as bacantes, claro, mas tudo a seu tempo e lugar.
Com esse trabalho Paulo Fernandes assume a opção de tentar caminhar em direção a essa arte. Que o diretor e dançarino saiba perseverar na sua tarefa de fazer da dança o instrumento do simbólico e do mítico, do coletivo e do transcendente, que continue a trazer para o palco o silêncio e a densidade.
Roberto Soares

Um comentário:

  1. "Entre a linha do tempo e a história há haver um fio que conduz o homem a repensar suas atitudes"

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