25/06/2009

ulisses - trechos

A tarde de verão começara a envolver o mundo em seu misterioso amplexo. Bem longe no oeste o sol se punha e o último fulgor de um mui fugaz dia apegava-se amorosamente ao mar e areal, no garboso promontório velho e querido de Howth(...)
As três mocinhas amigas estavam sentadas nas rochas, comprazendo-se com a cena vesperal e a atmosfera que era fresca mas não demais friorenta. Muitas e freqüentes vezes soíam elas vir àquele recanto favorito para entreterem conversa aconchegada cerca das ondas faiscantes e discutirem assuntos femininos(...).
Gerty MacDowell, que estava sentada perto das suas companheiras, perdida em pensamentos, contemplando longe nas distâncias, era a bem da verdade um tão bom espécime da atraente mocidade irlandesa quanto se podia desejar ver. (...) Até ali eles tinham apenas trocado olhares dos mais fortuitos mas, agora sob a aba do seu chapéu novo ela aventurava mirá-lo e o rosto que a fitou ali no crepúsculo, lívido e estranhamente contraído, pareceu-lhe o mais triste que jamais ela houvera visto. (...)
Gerty tirou por apenas um instante o chapéu para arranjar a cabeleira e mais bonitinha, mais gostosinha cabeça de tranças castanhas jamais se viu(...) Ela quase podia ver o rápido surto de encantamento correspondente nos olhos dele que a fez formigar em cada nervo. Ela repôs o chapéu de modo que pudesse ver sob as abas e balançava os sapatos(...) Ele a fitava como a serpente fitava a sua presa. Seu instinto de mulher dizia-lhe que ela despertara o diabo nele e a esse pensamento um escarlate candente espalhou-se da garganta à fronte a ponto de a adorável cor de suas faces tornar-se uma rosa esplendente. (...)
Os olhos que estavam cravados nela faziam sua pulsação retinir. Ela fitou-o por um instante, acolhendo-lhe o olhar, e uma luz irrompeu nela. Paixão ardente havia naquele rosto, paixão silente como um túmulo, e esta a fazia dele. Por fim, eles haviam sido deixados a sós sem os outros a se intrometerem e a fazerem observações e ela compreendeu que podia confiar até a morte nele(...) As mãos e o rosto dele contraíram-se e um tremor se apoderava dela. Ela inclinou-se bem para trás ao olhar para cima e não havia ninguém para ver a não ser ele e ela quando ela revelou as graciosas pernas todas belamente feiçoadas assim, suavemente flexíveis e delicadamente torneadas, e ela lhe parecia ouvir o arquejo do coração dele, pois ela sabia da paixão de homem como aquele, sanguiardente(...)
E então um foguete disparou e estrondeou em estampido cego e oh! Então a vela romana encandeou e era como se um suspiro de oh! e todos gritaram oh! oh! em êxtases e ele golfou de si uma torrente em chuva de caracóis de cabelos dourados e eram todos verdes estrelas rociadas caindo douradas, oh, tão vívidas, oh, tão boas, doces, boas!(...) .
Ele estava inclinado contra a rocha de trás. Leopold Bloom (pois que era ele) mantém-se silencioso, a cabeça baixada ante aqueles olhos impérfidos. Mas que cruel havia sido! Às voltas de novo? Uma bela alma pura o chamara e miserável que era, como lhe respondera? Um grosseirão consumado é que fora. Ele dentre todos os homens! Mas havia uma infinita reserva de piedade naqueles olhos, para ele também uma palavra de perdão embora ele tivesse pecado e errado e desgarrado. Deveria uma moça confessar? Não, mil vezes não. Esse lhes era o seu segredo, só deles, sós no crepúsculo esconso e ninguém havia para saber ou dizer salvo o morceguinho que voava tão manso pela tarde aqui e ali e os morceguinhos não falam. (...) Páginas 398-422.
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A partir daqui, há a mudança da fala, a reversão da tumescência para a detumescência, sinalizada pelo gozo de Bloom e pela partida de Getty.
Sapatos apertados? Não. Ela é coxa! Oh!
O senhor Bloom olhava para ela no que ia manquejando. Pobre moça! Lá estava por que havia sido deixada de molho e os outros davam aquela disparada. Entendi que alguma coisa estava errada pelo jeito da pinta dela. Beleza escorraçada. Um defeito é dez vezes pior numa mulher. Mas as faz polidas. Contente de não ter notado enquanto ela estava à mostra. Diabinho esquentado apesar de tudo. Perto das regras, creio, faz sentirem comichõezinhas. Que dor de cabeça que tenho hoje. Onde é que pus a carta? (...)
As virgens ficam malucas ao cabo, eu suponho. Minha irmã? Quantas mulheres em Dublin estão com aquilo hoje? Martha, ela. Alguma coisa no ar. È a lua. Mas então porque todas as mulheres não ficam menstruadas ao mesmo tempo, com a mesma lua quero dizer? Depende do tempo em que nasceram, suponho. Ou todas dão a arrancada juntas e depois ficam para trás. Às vezes Molly e Milly juntas. De todos os modos tirei a melhor disso. (...) Não olhou para trás quando se foi praia abaixo. Não queria dar uma satisfação. Essas garotas brejeiras, essas garotas, essas garotas da praia. Belos olhos que tinha, claros. É o branco dos olhos que dá realce, não tanto a pupila. Entendeu ela que eu? Claro. Como um gato a salvo de salto de cachorro. (...)
Elas são todas olhos. Procuram sob a cama pelo que as chama. Ansiando levar o susto de suas vidas. Agudas como agulhas é que são. Quando eu disse a Molly que o homem da esquina da Cuffe era bonitão, pensando que ela ia gostar, ela já tinha pescado que ele tinha um braço postiço. Tinha mesmo. De onde lhes vem isso? (...) Páginas 423-427.
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Aqui, os trechos do monólogo de Molly Bloom.

Sim eu penso que ele tornou eles um pouquinho mais duros chupando eles tanto tempo que ele me fez ficar com sede tetéias é como ele chama eles eu tive de rir sim pelo menos este aqui fica durinho de bico por qualquer coisa eu vou dar um jeito para ele fazer de novo e vou tomar ovos batidos com marsala para fazer eles ficarem cheios para ele como é que é curiosa a maneira que todas essas veias e coisas é feita dois iguais em caso de gêmeos eles são considerados como representantes da beleza colocados em cima como aquelas estátuas no museu fingindo esconder ele com mão dela(...)
Adeus pro meu sono esta noite de todos os modos eu espero que ele não vá se meter com esses medicandos a levarem ele a se desencaminhar imaginando que é moço de novo voltando às quatro da manhã que eram se não era mais ainda assim ele teve bons modos pra não me acordar que é que eles acham pra palrar toda a noite esbanjando dinheiro e ficando cada vez mais bêbados eles bem que podiam beber água e depois lá começa ele a dar ordens à gente para por ovos e chá Findom e torrada quente com manteiga eu suponho que vamos ter ele sentado como o rei da terra bombeando com o cabo da colher pra cima e pra baixo no ovo dele onde é que ele aprendeu foi aprender isso e eu adoro ouvir ele tropeças nos degraus de manhã com as taças chacoalhando na bandeja(...)
Esta droga de cama velha sempre tinindo como o diacho eu creio que se podia escutar a gente até do outro lado do parque até que eu sugeri pra botar o acolchoado com o travesseiro debaixo do meu traseiro eu me pergunto se não é mais bonito de dia eu penso que é mais cômodo eu penso que vou cortar todos esses pelos aí que me escaldam eu podia ficar parecendo uma garota novinha será que ele não ficar de boca aberta na primeira vez quando levantasse minha roupa eu dava tudo pra ver a cara dele(...)

Um comentário:

  1. Também chamou minha atenção a cena da moça na praia. Como em Machado de assis, em 'Memórias Póstumas de Bras Cubas':
    "O PIOR É que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e aí fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo".
    Parece que os dois geniais autores se voltam para o enigma da feminilidade, seja idealizando ou rebaixando a mulher...

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