A continuidade do Grito dos Excluídos (veja nesse blog as matérias O grito ecoa... e O Grito dos Excluídos 2009), já por 15 anos, na verdade reflete uma postura histórica de iniciativas e responsabilidades que alguns setores católicos sempre tiveram em relação às lutas sociais e populares. É a opção verdadeiramente missionária da Igreja.
Como bem colocou padre Kelder Brandão numa de suas homilias, é esta a cura que o Cristo pregava e praticava: não apenas a cura física ou corporal, mas a cura do espírito e dos corações dos desamparados, abandonados ou ignorados por um mundo por demais competitivo, apressado e hostil; enfim, sair de dentro do templo em direção ao mundo e ao povo sofredor, humilhado, manipulado.
Mas, na verdade, a Igreja sair em direção ao povo e ao mundo significa também uma outra 'cura', ou melhor, uma tripla 'cura'. Além da oferecida aos desamparados, há também a 'cura' do próprio movimento popular, como dito acima; afinal o movimento está enfermo, paralisado, esvaziado de seus melhores quadros, que foram convocados pelo governo federal e pelos inúmeros governos municipais e, nesse processo de se colocar a serviço de governos populares, são muitas vezes seduzidos por uma nova maneira de ver o mundo, a si próprios e ao movimento do qual faziam parte, uma visão por demais institucional, que passa a enxergar nas pessoas apenas agentes políticos, apenas peças do jogo político-partidário.
E outra 'cura' se processa, claro, no âmbito dos próprios fiéis e da própria Igreja Católica. Ao se colocar à disposição para aprender e praticar a 'cura', o católico está curando a si próprio, encontrando o verdadeiro sentido de ser cristão, ao conseguir ver de fato em si e no outro a ' luz do mundo', o 'sal da terra'.
Quanto à Igreja Católica, enquanto instituição milenar ('santa e pecadora', para usar uma expressão do documento conclusivo do 1º Sínodo da Arquidiocese de Vitória), ela se ‘cura’ ao cumprir o seu papel de fundir num plano maior a prática espiritual e a prática política.
Ao optar verdadeiramente por cuidar do céu e da cidade, do cosmo e da polis, a Igreja traz para uma outra dimensão a atividade política, lembra que os frutos de todo o trabalho e de toda vivência humana têm sempre algo de sagrado e sempre colocam a vida plena em primeiro lugar, porque é sempre sagrada não apenas a vida humana mas a de todas as coisas, de todo o cosmos.
E, ao se ‘curar’, a Igreja peregrina acaba por ‘curar’, depurar, sacralizar a própria atividade política. Já não se trata de ver nas pessoas apenas peças de um processo político, por mais transformador ou revolucionário que esse processo seja, ou pretenda ser. Trata-se agora de ver no outro uma realidade mais rica e complexa e ao mesmo tempo mais frágil e carente de afeto, de acolhimento. Trata-se de ver a ação política também como espaço para que as pessoas se irmanem de fato, se reconheçam uns aos outros - o espaço político não deve se pautar apenas pela eficiência, pragmatismo, mesmo que se trate de um espaço revolucionário.
Mesmo porque, talvez somente esse ato de se irmanar e de acolher é que seja realmente revolucionário. A história tem demonstrado à exaustão que a simples eficiência revolucionária - ou transformadora das estruturas sociais e econômicas - não se sustenta, não transforma de fato os indivíduos e, por extensão, as novas instituições que eles criam a partir do processo revolucionário.
Pois, por mais que a ação política revolucionária tenha aprendido a colocar em pauta temas como o respeito às diferenças, a fraternidade, a solidariedade, nos momentos decisivos a chamada dimensão subjetiva, interior, das pessoas é esquecida em nome da defesa ou manutenção do processo revolucionário e, então, as pessoas voltam a ser friamente tratadas apenas como soldados de uma causa ou de um exército.
Assim, é preciso uma abordagem mística, ou transcendente, da ação política transformadora, construir coletivos que sejam de fato sinônimos de acolhimento e amizade, um acolhimento e uma transcendência que não se percam nos primeiros percalços ou urgências do processo de transformação. A ação política tradicional nunca acolhe com a mística e o calor humano necessários para transcender a si própria, ou para se situar numa outra dimensão.
A igreja peregrina pode e deve ser a doadora dessa ação política transcendente. Principalmente nestes tempos de indiferença, hostilidade e desconhecimento do outro, é possível trabalhar com o projeto de uma Igreja que atraia e seduza as pessoas, ao reverenciar em primeiro lugar o acolhimento, e nesse acolhimento propor às pessoas um novo sentido, não somente para a ação política mas para as suas próprias existências: enfim, a Igreja peregrina pode e deve atrair novos sujeitos, se souber construir coletivos onde a própria ação politica esteja sumetida a um sentido maior, o sentido do sagrado, do mistério que há em todos e tudo.
E, sem cair aqui no idealusmo ou na ingenuidade, é lúcido dizer que, talvez aí sim, tenhamos um movimento, um ação política verdadeiramente revolucionária e, quiçá, de caráter global, pois terá conseguido fundir o sagrado e a polútica, o terreno e o transcendente, o indivíduo e o coletivo, o cotidiano e o mistério.
Muito bom!
ResponderExcluirGostei da lucidez das palavras, das novas ideias, da Igreja vista de fora, contextualizada e possível!
De coração agradeço. Certamente o texto nos servirá de reflexão.
Ana Maria Lemos