13/07/2010

modesto tributo a saramago

É público, notório e inquestionável o constrangimento provocado por essas bem-intencionadas iniciativas de homenagear, discutir, debater, aplaudir e, às vezes, pateticamente tentar divinizar obras de escritores ou artistas quando morrem.

Dá margem a jornalistas e críticos oportunistas, que geralmente não têm muito o que dizer, para se destacarem ainda mais em suas mídias espetaculosas e inócuas, manifestando-se cheios de boas intenções com seus textos inteligentes e acrobáticos, grandiloquentes e contritos.
Além, é claro, de cheirar a hipocrisisa de pessoas e mídias, que não dão o devido respeito ou atenção ao autor ou obra, quando em vida, já que isso naquele momento não daria a esperada audiência.

E, por fim, isso de destacar em demasia a morte de alguém, seja um artista ou qualquer outra 'personalidade', é coisa de cultura e manipulação burguesa, elitista. Tem o efeito de distanciar o 'homenageado' do nosso cotidiano. Coloca-o num plano superior a aos outros.
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Óbvio que aqui não se coloca em questão o valor do talento individual e das diferenças de personalidade, que fazem A ou B se destacar dos demais. A questão é a má-fé de mídias e pessoas, ao fetichizar esse talento, absolutizando, destacando apenas e tão somente a personalidade individual, como se toda uma história e um contexto coletivo não houvessem contribuído para o aparecimento e desenvolvimento do talento individual. Como se o autêntico talento não fosse exatamente uma resposta a um determinado tempo e a uma determinada situação, seja ela artística, política ou científica-acadêmica.

Na verdade, funciona como uma maneira de anular exatamente a força e a verdade desse talento, ao passar a idéia de que foi produto apenas de uma decisão individual, ao passar a idéia de que basta ter 'força de vontade' para ‘vencer’, basta querer ‘competir’ para ‘vencer’.

Enfim, é o velho artifício de exagerar nas homenagens, de divinizar, para separar, engolir e neutralizar, principalmente quando se trata de alguém que incomoda, que contesta, que desmascara a ordem vigente e os seus mecanismos ocultos. E certamente que o talento de José Saramago é um desses que incomodaram e e incomodam essa ordem.
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Por isso, esse longo preâmbulo antes de prestar a merecida homenagem ao escritor português. Tal como Sartre, outro grande exemplo de engajamento e recusa, Saramago não pode, não merece e não precisa ser fetichizado por essas homenagens de uma mídia que finge acreditar ( e faz de tudo para passar essa ‘verdade’) que Saramago era apenas mais um grande escritor, o ‘único escritor em língua portuguesa ganhador do Prêmio Nobel’, etc, etc;

Por essa mídia que não consegue ou não quer ver que a grandeza de Saramago também estava exatamente em sua recusa do erro e do velho que há nesta ordem vigente, essa mídia que não consegue ou não quer ver que o escritor português nutria simplesmente desprezo e indignação por essa ordem injusta e obsoleta, à qual essa mídia despersonalizada e presunçosa pressurosamente serve.

As palavras abaixo, do próprio escritor, atestam essas afirmações e mostram um pouco do verdadeiro Saramago.

É a minha modesta homenagem ao escritor, ativista e pessoa José Saramago, nesse mês em que Desvelar também lembra o dançarino-menino Michael Jackson, que está a ser transformado numa mercadoria-mito pela mesma e implacável engrenagem da indústria cultural que o sugou até à exaustão, quando em vida.

saramago: cadernos de lanzarote

Comecemos esse tributo com um verbo bastante contundente de Saramago. Como se fosse um raivoso e desesperado poema de escárnio que ele lança, tal qual um projétil, em direção a essa putrefata ordem burguesa, em direção à patética e desumana elite que a impõe e em direção às submissas e deslumbradas camadas intermediárias, as chamadas classes médias, que parecem ter tem como único alimento existencial macaquear essa mesma e lamentável elite.

«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... E, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos"

José Saramago em «Cadernos de Lanzarote – Diário III», pág. 148

saramago: esquerda

Temos razão, a razão que assiste a quem propõe que se construa um mundo melhor antes que seja demasiado tarde, porém, ou não sabemos transmitir às pessoas o que é substantivo nas nossas ideias, ou chocamos com um muro de desconfianças, de preconceitos ideológicos ou de classe que, se não conseguem paralisar-nos completamente, acabam, no pior dos casos, por suscitar em muitos de nós dúvidas, perplexidades, essas sim paralisadoras. Se o mundo alguma vez conseguir ser melhor, só o terá sido por nós e connosco. Sejamos mais conscientes e orgulhemo-nos do nosso papel na História. Há casos em que a humildade não é boa conselheira. Que se pronuncie bem alto a palavra Esquerda. Para que se ouça e para que conste.

Escrevi estas reflexões para um folheto eleitoral de Esquerda Unida de Euzkadi, mas escrevi-as pensando também na esquerda do meu país, na esquerda em geral. Que, apesar do que está passando no mundo, continua sem levantar a cabeça. Como se não tivesse razão.

por José Saramago 

extraído de os cadernos de saramago

saramago: outra leitura...

Outra leitura para a crise

A mentalidade antiga formou-se numa grande superfície que se chamava catedral; agora forma-se noutra grande superfície que se chama centro comercial. O centro comercial não é apenas a nova igreja, a nova catedral, é também a nova universidade. O centro comercial ocupa um espaço importante na formação da mentalidade humana. Acabou-se a praça, o jardim ou a rua como espaço público e de intercâmbio. O centro comercial é o único espaço seguro e o que cria a nova mentalidade. Uma nova mentalidade temerosa de ser excluída, temerosa da expulsão do paraíso do consumo e por extensão da catedral das compras.

E agora, que temos? A crise.
Será que vamos voltar à praça ou à universidade? À filosofia?

por José Saramago

extraído de os cadernos de saramago

06/07/2010

o menino michael

O primeiro aniversário da morte de Michael Jackson  não passou em brancas nuvens, como era de se esperar.
Na verdade, tudo leva a crer que a data do 25 de junho se tornará a cada ano mais marcante, tanto para os seus fãs em vida quanto para os que passarem a conhecê-lo após a sua morte. Podemos estar presenciando o nascimento de um ícone ainda mais forte do que Elvis Presley, John Lennon, Beattles, Airton Senna, Lady Di, e tantas outras tentativas ou necessidades de se criar mitos e mártires na cultura pop.

Mas se todas essas construções de ícones pops são iguais em essência - se, numa análise resumida,  são todos uam msitura de mídia e de sociedade do espetáculo com uma necessidade que as massas têm de suprir suas perdas de referência e de autonomia - em que então o fenômeno Michael Jackson iria diferir tanto dos outros ícones ou espetáculos post mortem?

Uma pista, talvez. Talvez pela sua imagem de fragilidade, de criança crescida, de adulto que se perdeu nos confusos caminhos do mundo. Mas não um adulto qualquer. E sim um artista que foi por demais engolido, sugado pelo pavoroso sistema no qual ele cresceu e venceu.

Ou seja, ao mesmo tempo em Jackson se tornou mais um mito, mais um boneco criado pela narcotizante indústria cultura pop, ele foi uma de suas vítimas, tanto quanto muitos outros artistas sérios ou consistentes, que não sucumbiram à contradição de criar e viver no mundo moderno e acabaram sendo destruídos ou se autodestruindo: Raul, Cazuza, Elvis, Hendrix, Celan e tantos outros artistas, menos conhecidos e mesmo anônimos - certamente que esses últimos existem aos montes por aí.

Que contradição? A contradição de ser um grito, um guerrilheiro  contra essa cultura pop e ao mesmo tempo ser filho do sistema, a contradição de aceitar ser uma mercadoria do engrenagem para poder bradar contra essa mesma engrenagem.

E, mais dramático ou desesperador, ao final ver que os seus brados, ódios e combates contra a engrenagem de nada servem, já que a engrenagem absorve, vive desses combates e supostos ódios, transforma-os em mercadoria altamente vendável, coloca como produtos de mercado a arte e o artista. E aí  a perplexidade,  a impotência, a perda de identidade e, por fim, autodestruição. Na verdade, esse parece ser  o eterno círculo vicioso da muito daquilo que que se chama de arte moderna.

E o fenômeno Michael Jackson talvez tenha levado ao ápice essa contradição: foi o mais endeusado das crias da cultura pop e ao mesmo tempo uma de suas maiores vítimas, um dos maiores exemplos de perda de identidade, de autodestruição ou de autonegação. Uma negação tão forte, que Jackson se recusava até mesmo a crescer, a se postar como adulto perante uma tão engrenagem tão complexa, que ele sabia que estava a devorá-lo.
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E é preciso não esquecer o escabroso detalhe, no caso do menino Jackson: ele foi fabricado e engolido pela engrenagem já na infância, antes mesmo dos dez anos de idade. Ele não pode sequer vivenciar o que seria uma infância feita de inocência, espantos e transcendentes contatos com o mundo e com a vida - aliás, até onde as virtuais e presunçosas crianças de hoje vivenciam uma infância digna desse nome?

Enfim, a par do virtuoso e emblemático dançarino que foi, Jackson compunha e cantava letras que falavam desses gritos, impotências - veja-se os dois vídeos publicados abaixo.
Certamente que esse seu lado incontestável de grande e verdadeiro artista foi captado pelos seus milhões de fãs, juntamnte com a sua tragédia de menino que não queria crescer num mundo por demais delirante, amedrontando e plastificado, como o é a sociedade americana e suas colônias culturais mundo afora - aí se incluindo muito de nossa pátria amada, é claro.
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E tem-se então a criação de um dos maiores ícones desses nossos tenebrosos tempos. Acompanhemos, pois, a construção desse mito moderno em que está se tornando o menino Michael, já nesse seu primeiro ano de vida-virtual-após-a- morte.

Afinal, enquanto participamos da dura batalha para afastar em definitivo o risco da bárbarie e da plastificação da vida,  relaxemos um pouco. Embora crucial e urgente, a batalha também pode ser divertida.

Nem só absurdos  vazamentos no Golfo devemos vigiar, também podemos presenciar os dançantes passos de Jackson e dos artistas do futebol nos gramados da Copa da África - claro, aplaudir a dança dos verdadeiros artistas do futebol, os jogadores, e não a dança macabra dos espectros sujos e infelizes que estão a sugar e mercadejar o futebol: fifas, federações, salários milionários, construção suspeita de estádios novos e faraônicos (qual será o verdadeiro motivo de a FIFA não aceitar o Morumbi para a copa de 2014?), mercado de publicidade, direitos televisivos da Rede Bobo,  e tantos outros miasmas fedorentos...  

01/07/2010

o menino michael: cure o mundo

o menino michael: grito

copa da áfrica X: chávez profeta?

Copa da África do Sul, Copa do Mercosul?

Já na primeira semana da Copa, o lider popular da Venezuela, Hugo Chávez, fazia uma provocação política - inconsistente apenas na aparência. Chávez relacionava o fracasso de algumas seleções européias, e o sucesso das seleções sul-americanas, com a respectiva situação econômica de seus países (detalhes no site da Band).

Profético, folclórico ou apenas provocativo,  o fato é que Chávez foi o primeiro - e isso já no início da Copa - a chamar atenção para a singular predominância do futebol sulamericano neste Mundial.
Alguns números: das 13 seleções européias, apenas 06 se classificaram para  a segunda fase (menos de 50%), enquanto que todas as 06 seleções sulamericanas passaram (100%).
E mesmo se for levadas em conta todas as seleções americanas, das 08 seleções, 07 passaram à segunda fase ( +- 90% de aproveitamento).

Mais surpreendente ainda: há grandes possibilidades de termos uma semifinal exclusivamente sulamericana, melhor, uma semifinal de países do Mercosul.
Claro, são coisas do futebol, diríamos nós. E é o imprevisível que torna o futebol apaixonante. Claro que na próxima Copa pode ocorrer exatamente o inverso.
Mas, neste momento, não deixa de ter um caráter simbólico muito forte comparar a renovação do futebol sulamericano com as transformações sociais e políticas que vem acontecendo na região.

Como se as rupturas e os avanços políticos e populares inspirassem os nossos técnicos e jogadores a promoverem também uma ruptura nos campos de futebol. Ou melhor, uma síntese. Já não mais se preocupando em praticar apenas o futebol força, o futebol de resultados, tipicamente europeu. Mas promovendo um retorno às origens, procurando aliar o futebol de resultados com o futebol criativo, dançante, espontâneo, mais próximo da cultura latinoamericana  e africana. Tomara que Chávez seja tão bom profeta quanto o é como líder popular.
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Assim, eis-nos de volta ao Mundial da África. Afinal, Copa do Mundo somente de quatro em quartro anos. Mesmo porque a próxima será no Brasil, e de um jeito ou de outro (a favor ou contra, execrando ou aplaudindo, ou uma mistura de ambos) o tema estará presente em nossos noticiários, textos, debates e conversas. 

Como uma prévia desses nossos questionamentos futuros, interessante, então, começar com uma análise da questão política e econômica da Copa e do país onde ela acontece atualmente. O texto abaixo, trecho de uma matéria do Correio da Cidadania aborda com seriedade a questão.

Como se lerá, a excelente  matéria faz contundentes e benvindos questionamentos e denúncias ao papel da FIFA e de seus dirigentes, notadadmente Joseph Blatter e apaniguados. 
Não apenas por uma feliz coincidência, mas aproveitando muito bem o clima de Copa do Mundo,  a revista Carta Capital  desta semana (edição 602) também traz uma contundente reportagem, exatamente sobre essa ambígua e onipresente entidade máxima do futebol mundial.

Infelizmente não dá para ter acesso online, é preciso comprar a revista impressa. Mas para se ter uma idéia: na capa aparecem Havelange, Blatter e Ricardo Teixeira, com a seguinte chamada: 'Eles não resistiriam a uma Lei da Ficha Limpa'. Uma ótima oprtunidade para você conhecer melhor  'a FIFA que poucos conhecem'.
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Retornando ao enfrentamento de Dunga com a Rede Bobo, abordado aqui no mês passado, temos um texto de Laurindo Lalo Leal Filho, bastante elucidativo ao relacionar a atitude de Dunga com outras posturas de enfrentamento à Rede Bobo, que aconteciam já na década de 70.

Já o texto do site R7 faz um histórico das tensões, de longa data, existentes entre o técnico da seleção e a dupla CBF-Rede Bobo. Por conta desse enfrentamento, o autor do texto afirma que mesmo que o Brasil vença  a Copa, Dunga será alijado do comando da seleção - para não incomodar o esquema.

Os três textos ora publicados, mais a matéria de Carta Capital, dão bem uma idéia de como os mecanismos de mercado e de dominação social - com seus inseparáveis mecanismos de corrupção e de fraude - se apropriaram dessa que deveria ser a mais festiva e a mais universal das manifestações populares; de como se aproriaram do maior de nossos eventos em nível planetário, a Copa do Mundo, que deveria e poderia legitimamente integrar, mesmo que precária e fugazmente, todos os povos do planeta - e não apenas servir de mais uma oportunidade para enriquecimento, exploração de trabalhadores, dominação política e corrupção. 

copa da áfrica IX: a fifa que poucos conhecem

Trecho da reportagem do Correio da Cidadania, citada acima.

E se os africanos esperavam ao menos desfrutar a parte lúdica do evento, também se decepcionaram fortemente. A poucos meses da abertura, a FIFA anunciou que havia um encalhe de cerca de 800 mil ingressos, reclamando abertamente da falta de adesão do povo local ao Mundial. No entanto, ao analisarmos os fatos, veremos que foi a própria senhora do futebol quem propiciou este revés.

Primeiramente, ignorou-se a realidade econômica do país sede, com os ingressos sendo postos à venda somente por internet, com cartão de crédito e a preços similares aos da Alemanha-2006, fatores de exclusão imediata de uma infinidade de fãs. De quebra, para os estrangeiros, já atemorizados com as inúmeras notícias da violência das cidades sul-africanas, a intermediação das vendas era obrigatoriamente feita pela Match, agência oficial da FIFA, que tem como sócio Philip Blatter, sobrinho do ilustríssimo Joseph, presidente da entidade e sucessor de João Havelange, unanimemente considerado o homem que injetou o futebol-negócio em nossas veias.

E a incompetência (e avareza) da empresa apadrinhada por tio Blatter contribuiu de forma magnífica para que as previsões de 500 mil turistas no país caíssem pela metade. Por conta das imposições que a FIFA faz a toda sede, 80% dos quartos dos hotéis mais estrelados ficam reservados, e não tem conversa, para a Match. Sabendo-se dona do pedaço, a agência cobrou ágios de até 30% na hospedagem dentro dos pacotes de viagem. Assim, muitos torcedores resolveram assistir aos jogos de casa. E a rede hoteleira sul-africana ficou na mão.

Mas como toda boa famiglia, os laços sangüíneos tornam as relações inabaláveis. Philipinho Blatter também é dono da empresa que detém a prerrogativa de negociar os direitos de transmissão da Copa em nome da FIFA. Fora que sua consultoria para ajudar na organização de perfumarias da entidade lhe rendeu US$ 7 milhões em honorários.

Cabe perguntar por que as emissoras de TV interessadas em transmitir a Copa não podem ir à sede da federação em Zurique e sentar pra negociar diretamente com sua diretoria e departamentos comercial e jurídico. Cabe também questionar por que a intermediadora tem sede no mesmo local (Zug, na Suíça) da ISL, a antiga representante comercial da FIFA, cuja falência a justiça suíça comprovou ser uma fraude após seis sócios confessarem desvios de 96 milhões de dólares. Tais indagações podem ser feitas por qualquer um que leia ‘As contas erradas da FIFA’, no Le Monde brasileiro deste mês de junho.
texto do jornalista Gabriel Brito

Leia aqui, a matéria completa

copa da áfrica VIII: o povo não é bobo...

o povo não é bobo...
Laurindo Lalo Leal Filho
(publicado originalmente em carta maior)


A arrogância com que a Rede Globo sempre tratou a sociedade brasileira tem volta. Basta uma oportunidade e toda a humilhação suportada pelo público durante mais de 40 anos vem à tona. É o que explica a reação imediata, realizada através da internet, ao editorial veiculado pela emissora na noite de domingo contra o técnico Dunga.

Trata-se do episódio mais recente de uma série iniciada lá no final dos anos 1970 e, ao que tudo indica, não acabará tão cedo. “Cala boca Galvão” ou “Cala a boca Tadeu (o jornalista que se prestou a servir de voz do dono)” são as versões modernas e futebolísticas do famoso “O povo não é bobo, fora a Rede Globo”, ouvido pela primeira vez nas ruas de São Bernardo e no estádio da Vila Euclides, durante a greve dos metalúrgicos do ABC, em 1979.

Foi lá que a mascara global começou a cair em público e o Jornal Nacional se desencantou para uma parte dos seus telespectadores, até então crentes de que o que ali se dizia era verdade. Mas como podia ser verdade se, eles operários em greve e seus familiares participavam de atos e passeatas gigantescas ao longo dia e, à noite, ao ligarem na Globo assistiam tudo enviesado e distorcido. Deu-se ai o desencantamento, ou o fim das ilusões mediáticas, pelo menos para essa parcela da população, a uma só vez personagem e espectadora da notícia.

A resposta à manipulação foi imediata. Ao voltarem no dia seguinte para cobrir a greve, as equipes da Globo passaram a ser hostilizadas e recebidas com bordão que se tornou famoso, usado depois em outras ocasiões: o povo não é bobo...

Presenciei aqueles cenas antigas e outra um pouco mais recente: a saia-justa vivida pelo pessoal da Globo, em 2001, numa passeata na Av. Paulista. Estudantes voltavam às ruas para protestar contra a criação da Alca, iniciativa dos Estados Unidos para institucionalizar a dependência absoluta da América Latina aos seus interesses. Várias emissoras mandaram equipes de reportagem para cobrir o evento, talvez não tanto pelo conteúdo da manifestação, mas pelo fato de ser inusitado. Já haviam se passado quase dez anos das últimas manifestações estudantis de rua, ocorridas ao final do governo Collor e essa, de 2001, era uma novidade.

Constatei na avenida Paulista o constrangimento dos repórteres, operadores de câmara e auxiliares da Globo. De todas as emissoras, eram os únicos que escondiam os seus crachás, colocando-os por baixo das camisas e dos casacos. Temiam hostilidades, conscientes da existência de uma imagem fortemente negativa da empresa junto à população.

O incômodo provocado pela Globo na sociedade brasileira, sentido por alguns de forma mais concreta, por outros mais difusa, não encontra muitos caminhos para se manifestar. Através da mídia é impossível diante do controle quase monopolista da própria Globo sobre a comunicação no Brasil.

As respostas da sociedade, até o episódio Dunga, se davam de forma artesanal, em protestos de rua – como na greve do ABC – ou em faixas, cartazes, vaias e bordões vistos e ouvidos de forma cada vez mais constante nos estádios de futebol.

A internet deu uma nova dimensão aos protestos. É impressionante o número de manifestações contrárias ao poder global que circula na rede. Além do protesto em si, essas mensagens vão aos poucos constituindo comunidades, cujos integrantes descobrem, nesses contatos, que os seus sentimentos não são isolados e pessoais. Ao contrário, são coletivos e sociais, fortalecendo suas convicções.

Curiosas são as reações da empresa, talvez surpresa com o abalo de sua soberba. De forma errática ataca o técnico da seleção em editorial procurando manter a empáfia, de outro assimila o refrão “cala a boca Galvão” tentando minimizá-lo e ainda coloca funcionários para dizer que as pessoas falam dela mas assistem aos seus programas, como se audiência fosse adesão.

O público sintoniza a Globo por absoluta falta de alternativa, dentro e fora da TV. Dentro, porque o que há de concorrência ou é semelhante à Globo ou ainda pior. Fora, pela falta de opções de cultura e lazer acessíveis a maioria da população brasileira. Não há amor pela Globo. Ninguém a chama de “tia”, como os britânicos fazem com a BBC, numa demonstração de afeto resultante de uma relação aberta e honesta.

Mas é preciso ressaltar que a combinação Dunga-internet está prestando um serviço inestimável à nossa sociedade. Permitiu que o grito reprimido na garganta durante tanto tempo ganhasse novos caminhos e, acima de tudo, encontrasse eco tornando-o cada vez mais forte. São caminhos sem volta.

copa da áfrica VII: dunga fora?

Briga com a Globo pode tirar Dunga da seleção após a Copa
(publicado originalmente no site R7)

Em três frentes a CBF procurou a TV Globo para tentar acabar com a crise provocada pelos palavrões de Dunga ao apresentador Alex Escobar após a vitória da seleção brasileira contra a Costa do Marfim, no último domingo (20).
O presidente da entidade, Ricardo Teixeira, procurou Marcelo Campos Pinto, diretor da Globo Esportes. O chefe da delegação, Andrés Sanchez, tratou de falar com João Ramalho, funcionário da emissora que cuida só da seleção brasileira. E o diretor de comunicação da CBF, Rodrigo Paiva, esteve no espaço reservado à Globo no IBC (centro de mídia internacional), em Johannesburgo.

Todos trataram do mesmo assunto: mostrar que a atitude partiu do treinador. E pediam para evitar a retaliação. A TV Globo aceitou a reaproximação. E o cargo de Dunga está mais do que ameaçado, mesmo se o Brasil vencer a Copa do Mundo.

Teixeira não quer o rompimento com a TV Globo. Há vários acordos milionários entre a entidade e a emissora. Mas tratou de avisar a Campos Pinto que Dunga está tomando as suas atitudes por livre e espontânea vontade. Os palavrões do treinador a Escobar foram a gota d'água para a emissora. O treinador já criou problemas demais.

Desde que assumiu, em 2006, ele resolveu acabar com os privilégios que a Globo sempre teve, como livre acesso aos jogadores e treinadores. Antes de ganhar o cargo de treinador da seleção, Dunga foi comentarista do canal a cabo BandSports. Foi trabalhando como comentarista que ele viu toda a confusa situação na Copa da Alemanha. Estava lá. E jurou que com ele seria tudo diferente.

Já começou em Teresópolis, na Granja Comary, o centro de treinamento da CBF, mandando desmanchar tendas especiais da emissora. Passou a proibir jornalistas da emissora mostrando momentos íntimos da seleção, como o trajeto para os jogos nos ônibus. Barrou as entrevistas exclusivas. Mesmo aconselhado por Rodrigo Paiva a ceder, ser mais maleável, não houve acordo. Não teve como impedir jornalistas da emissora em voos da seleção, mas não os deixa sair antes dos jogadores para filmá-los chegando ao local onde o time vai jogar.
Campanha
Dunga não tolera alguns jornalistas específicos da emissora. Acredita que uns defendem o retorno de Vanderlei Luxemburgo ao seu cargo. Diz que recusou diversos convites para jantar com profissionais da Globo, estratégia utilizada pela emissora com antigos treinadores da seleção. Até pessoas das quais a Globo sabia que Dunga não gostava perderam seus cargos.

Depois do que aconteceu com Escobar, há uma ordem expressa para os jornalistas da Globo não darem entrevistas aqui em Johannesburgo. Em off, porém, há a confirmação do imenso mal-estar com Dunga e há muito tempo.

O técnico já reclamou que a emissora chegou a pedir entrevistas a uma hora da manhã a seus atletas, nos Estados Unidos. E que os repórteres estão acostumados ao abuso pelo fato de a Globo ter os direitos de transmissão dos jogos da seleção.

Na Olimpíada de Pequim, o clima já foi bem ruim. Ele achou que a medalha de bronze não foi valorizada. De lá para cá, o clima conseguiu ficar pior. Dunga respeita poucos jornalistas. Entre eles, William Bonner e Fátima Bernardes. Eles o convenceram a ir para o Jornal Nacional depois da convocação definitiva para a Copa de 2010. Os executivos da Globo acreditaram que tudo estava resolvido.

Tanto que estava sendo preparado um profundo perfil de Dunga e não teria apenas lados positivos. A reportagem foi suspensa como uma demonstração de boa vontade. E os executivos da emissora mandaram cerca de 280 profissionais para a África do Sul. O 'Exército Verde', porque todos usam a camisa verde do uniforme.

Todas as estrelas do jornalismo da emissora estão aqui na África. Vieram cheias de pautas para serem feitas com os jogadores. Só que Dunga trancou a seleção. E para todos os veículos, inclusive a Globo. São apenas dois jogadores por dia dando coletiva e depois treino apenas para ser filmado. Na semana passada, ele resolveu ainda fechar os treinos. A emissora teve de espalhar jornalistas pela África do Sul para buscar matérias. Isso teve um custo inesperado, caro e improdutivo.

A audiência está mesmo com os jogadores. O repórter Mauro Naves conseguiu uma exclusiva com Robinho na segunda folga em Johannesburgo. Dunga deu uma enorme bronca no jogador. O atacante foi obrigado a pedir desculpas a todo o grupo. E jurou que não cairia no mesmo erro.
Dinheiro
Com os treinos fechados, os patrocinadores também reclamaram. Os treinos são as grandes vitrines para os 11 patrocinadores que pagam, juntos, R$ 220 milhões anuais à CBF. Eles investem tanto para aparecer nas TVs. Dunga sozinho está travando esse forte interesse econômico.

A emissora chegou mesmo a negociar com Ricardo Teixeira entrevistas de jogadores para entrar no Fantástico de domingo. Dunga vetou. E foi além. Há um espaço reservado para as emissoras que são donas dos direitos de transmissão das partidas da Copa. Fica à beira do gramado. Os destaques dos jogos sempre param ali para falar. Só que, no último domingo, Dunga não deixou seus atletas falarem à Globo, os retirou, gritando “vestiário”, e sabotou também essas entrevistas.

Os palavrões do treinador a Alex Escobar foram a gota d'água. A emissora carioca fez um editorial forte, respondendo a Dunga no Fantástico. Na saída do estádio Soccer City, jornalistas flagraram o chefe de Esportes da emissora, Luiz Fernando Lima, desabafando: reclamando que de nada adiantaram encontros com a cúpula da CBF para garantir paz entre o treinador e a Globo durante a Copa.
Ex-repórter, Luiz Fernando desabafou em voz alta. Para evitar que tudo ficasse pior, a CBF teve de entrar em várias frentes para se desculpar com a Globo. Isso desagradou, e muito, a Ricardo Teixeira.

Antes da Copa, Dunga disse ao R7 que seu futuro na seleção, depois da Copa, dependia “do doutor Ricardo”. É bom ele ficar atento a convites de equipes italianas. Ricardo Teixeira está disposto a não mantê-lo no cargo para a Copa de 2014. Mesmo se o Brasil for campeão.

O presidente da CBF não quer mais quatro anos desse clima. Só não pode afastá-lo agora para não atrapalhar a seleção. Mas os dias de Dunga parecem estar chegando ao fim, graças à sua postura radical e agressiva. O sonho é um técnico mais maleável para 2014.