29/09/2009
poesia: ainda a europa
a rapariga de vermeer
a rapariga de Vermeer, agora famosa
olha-me. a pérola olha-me.
os lábios vermelhos, húmidos
e brilhantes da rapariga de Vermeer.
rapariga de Vermeer, pérola
turbante azul: és toda luz
e eu sou feito de sombra.
a luz olha a sombra com altivez
condescendência, talvez piedade.
(adam zagajewski - polônia )
Adam Zagajewski nasceu em Lvov ((hoje, Ucrânia), na Polónia, em 1945. Vive entre Cracóvia, Paris e Chicago. É considerado pela crítica internacional como um clássico contemporâneo, como o foram Milosz, Herbert, Holub, Popa ou Brodsky. É um poeta dessa estirpe.
Acaba de publicar, neste 2008, na Farrar, Straus and Giroux, de Nova York, “Eternal Enemies”, traduzido do polaco por Clare Cavanagh, professora de línguas e literaturas eslávicas na Northwestern University, que já havia traduzido para o inglês, Szymborska e Milosz.
Humor, inteligência, cepticismo e economia de linguagem podem ser encontrados nesta versão que trago do inglês, onde conspiram o peso do lugar e da história, a emergência da arte e da vida quotidiana. (Transcrito do blog português poesia ilimitada)
a alma
nós sabemos que tu és inexprimível
anémica, frágil e suspeita
por misteriosas ofensas quando eras criança.
nós sabemos que não te é permitido viver agora
na música ou nas árvores no crepúsculo.
nós sabemos—ou pelo menos disseram-nos—
que tu não existes seja em que lado for.
e no entanto continuamos escutando a tua voz fatigada
--num eco, numa queixa, nas cartas que recebemos
de Antígona no deserto Grego.
adam zagajewski - polônia
a poesia nem sempre...
adopta a forma
de um poema
depois de cinquenta anos
a escrever
a poesia
pode apresentar-se
ao poeta
na forma de uma árvore
de um pássaro
que voa
de luz
adopta a forma
de uma boca
refugia-se no silêncio
ou vive no poeta
livre de forma e de conteúdo
Tadeusz Rózewicz nasceu em Radomsko em 1921. Estudou História da Arte na Universidade de Jagueloniana, em Cracóvia. Viveu em Wroclaw durante trinta anos. Poeta, dramaturgo e novelista foi traduzido em numerosos idiomas, sendo considerado um precursor da vanguarda em poesia e drama, um inovador firmemente arraigado na recriação incessante da tradição romântica. Independente, diz-se convencido de uma missão artística que considera um estado de concentração interna, agilidade interior e sensibilidade ética. Różewicz pesquisa as instâncias contemporâneas da crueldade humana. É o fundador de uma tendência chocante da literatura polaca que se concentra na existência, concebida como o esforço para existir, como a luta contra o nada. Jorge Sousa Braga colabora uma vez mais no Poesia Ilimitada, com a tradução de "A Poesia nem sempre...". (do blog poesia ilimitada)
rapariga
o atrevimento de simplesmente expor
de vez em quando uma opinião
ou um seio: quando começa isso
e no fundo quando acaba? as mulheres
são feitas de raparigas, aos quarenta
ainda deitam a língua de fora como aos quinze
ficam cada vez mais jovens
não sabem não seduzir. como a poesia:
um gato que prudentemente caminha sobre as teclas
de um piano e olha para trás:
ouviste? viste-me?
ah, o ar jovem das raparigas de quarenta
como umas vezes querem, e outras não
mas afinal sempre, se repararmos bem.
onde estão os bons velhos tempos? estão aqui, esses tempos.
(herman de coninck - bélgica)
23/09/2009
lendo milosz
poemas escritos por um rico homem, sabedor
e por um mendigo, sem casa
um emigrante, só.
sempre quiseste ir
além da poesia, superá-la, planando
mas também abaixo, onde a nossa região
começa, modesta e tímida.
por vezes o teu tom
transforma-nos por um momento
e acreditamos - verdadeiramente
que cada dia é sagrado
que a poesia - como pôr isto?
torna a vida plena
mais cheia, orgulhosa, ousada
de formulação perfeita.
mas o fim de tarde chega
eu poiso o livro de lado
e o estrondo banal da cidade retoma –
alguém tosse, alguém chora e maldiz.
adam zagajewski - polônia
aí está o saldo final
confiei em mim desde o primeiro momento.
custa muito pouco ser dono do vento.
e à besta não lhe é mais custosa
a vida, até que a lançam à fossa.
nasci, amei, fui longe, fiz o resto.
com medo, às vezes, mantive-me no posto.
paguei sempre as dívidas contraídas
e agradeci, com as mãos estendidas.
se fingida mulher aqui e além me quis,
amei-a, para que pudesse ser feliz.
fiz cordas, varri, dei-me ao vinho
e entre os espertos fingi-me cretino.
vendi brinquedos, pão e poesia,
jornais e livros: o que se vendia.
não morrerei enforcado em fácil trama
ou em grande batalha, mas na cama.
vivi (já está aí o saldo final):
muitos outros morreram deste mal
17/09/2009
aforismos no twitter
O avô do twitter é o parachoque do caminhão.
Sarcasmo do cemitério: o escritor morre mesmo numa gaveta.
O quintal é uma rua sem saída.
O quarto depende da dignidade de um corredor para curar o pesadelo.
Eu já me abandonei várias vezes. Deveria ter me mandado uma carta: “Desculpe por não ter escrito antes".
Cócega é quando o corpo faz a piada.
Se é ironia, não pode ser fina.
O soneto é um poema sonâmbulo.
16/09/2009
flecheira libertária (5)
O proibicionismo às drogas subordinou culturas, favoreceu indústria de armas, especializou polícias, organismos internacionais e rastreamentos eletrônicos. Ampliou relações diplomático-militares e controles científicos. E, principalmente, propiciou a expansão do tráfico. O proibicionismo está a serviço do lucro, da repressão, do legal e do ilegal. Consagra o proprietário, o traficante e o dissimulador.
Os defensores da liberação das drogas sabem que elas são inseparáveis da cultura; sabem que liberar as drogas é acabar com o tráfico, conter um ramo altamente lucrativo do capitalismo, paralisar temporariamente os negócios dos moralistas, arruinar parte da crença na repressão e da fé em segurança. Os defensores da liberação são um perigo à empresa, ao Estado e ao traficante. Arruínam seus negócios. Os defensores da liberação das drogas querem mais que descriminalizar maconha!
O proibicionismo precisa da vida breve da criança pobre-podre-calcinada cada vez mais nas mãos do traficante como braço armado, consumidor, sicário e serviçal; precisa de jovens dispostos a morrer bem cedo, tentando, pelo avesso, imitar o burguês bem sucedido, o herói, o mártir, o bandidão das antigas na periferia, nas favelas; precisa de gente insatisfeita com esta merda de mundo, para consumir, se endividar e cair nas mãos dos traficantes como os preferenciais bibelôs de sua estética em ruínas... O proibicionismo e o tráfico celebraram um casamento indissolúvel. Só os revoltados sabem que onde há vida não há proibição e que onde há tráfico não há mais vida.
Um novo programa da força aérea estadunidense recruta jovens para o projeto de combate à distância. De uma sala nos EUA, com monitores e joysticks, os pilotos decolam aviões não-tripulados, lançam mísseis e retornam à base no Afeganistão. Um dos requisitos para a seleção é que eles tenham sido, desde criança, aficionados por videogame. O treinamento é simples, garantem os militares, porque os jovens já vêm educados: matar alvos em telas não lhes é estranho. Sensibilidades torpes e educação para lidar com mortes programadas, eis um traço das guerras na sociedade de controle.
Alvos preferenciais da polícia na Itália, os imigrantes vindos da África, depois de atravessarem a ilha de Lampedusa e chegarem com vida à Europa, são enquadrados em uma nova legislação. Esta prevê seis meses de prisão para quem andar sem a documentação regularizada, despejo do morador e confisco do imóvel alugado e ainda estimula os médicos a denunciarem pacientes em situação irregular. A página da internet relacionada a um dos proponentes desta nova lei estampa que a tortura de clandestinos é um direito de defesa da nação.
Os canalhas de todo o tipo comemoram. Os imigrantes africanos, árabes, latinoamericanos, gente de todas as partes do planeta que não morreram na travessia em altomar tem como destino viverem sem descanso e sob suspeita, cercados pela polícia. Só assim é que seus corpos e suas existências consideradas insuportáveis são finalmente permutadas, esmagadas, submetidas à força do governo.
09/09/2009
o grito em movimento (1)
grito dos excluídos 2009

... mas dá pena ver esses garotos da marinha e do exército tão iludidos com seus brinquedinhos de fogo, sem a menor noção de que, ao estar a serviço da força bruta, são a última forma de sustentação de um modelo de civilização que impede a vida plena, ao promover a competição, a indiferença e o medo entre as pessoas.

as mãos que clamam e combatem se preparam para a caminhada, enquanto padre Kelder saúda os peregrinos de um mundo renovado

e começa a marcha, o grito pela vida e pelo resgate da organização popular ganha as ruas, ocupando os elitizados e iludidos espaços da Praia do Canto...

... iludidos porque seus moradores ainda não puderam aprender que o sentido da vida plena não está apenas em nossos apegos e afetos individuais ou familiares.
o grito e a cura
A continuidade do Grito dos Excluídos (veja nesse blog as matérias O grito ecoa... e O Grito dos Excluídos 2009), já por 15 anos, na verdade reflete uma postura histórica de iniciativas e responsabilidades que alguns setores católicos sempre tiveram em relação às lutas sociais e populares. É a opção verdadeiramente missionária da Igreja.
Como bem colocou padre Kelder Brandão numa de suas homilias, é esta a cura que o Cristo pregava e praticava: não apenas a cura física ou corporal, mas a cura do espírito e dos corações dos desamparados, abandonados ou ignorados por um mundo por demais competitivo, apressado e hostil; enfim, sair de dentro do templo em direção ao mundo e ao povo sofredor, humilhado, manipulado.
Mas, na verdade, a Igreja sair em direção ao povo e ao mundo significa também uma outra 'cura', ou melhor, uma tripla 'cura'. Além da oferecida aos desamparados, há também a 'cura' do próprio movimento popular, como dito acima; afinal o movimento está enfermo, paralisado, esvaziado de seus melhores quadros, que foram convocados pelo governo federal e pelos inúmeros governos municipais e, nesse processo de se colocar a serviço de governos populares, são muitas vezes seduzidos por uma nova maneira de ver o mundo, a si próprios e ao movimento do qual faziam parte, uma visão por demais institucional, que passa a enxergar nas pessoas apenas agentes políticos, apenas peças do jogo político-partidário.
E outra 'cura' se processa, claro, no âmbito dos próprios fiéis e da própria Igreja Católica. Ao se colocar à disposição para aprender e praticar a 'cura', o católico está curando a si próprio, encontrando o verdadeiro sentido de ser cristão, ao conseguir ver de fato em si e no outro a ' luz do mundo', o 'sal da terra'.
Quanto à Igreja Católica, enquanto instituição milenar ('santa e pecadora', para usar uma expressão do documento conclusivo do 1º Sínodo da Arquidiocese de Vitória), ela se ‘cura’ ao cumprir o seu papel de fundir num plano maior a prática espiritual e a prática política.
Ao optar verdadeiramente por cuidar do céu e da cidade, do cosmo e da polis, a Igreja traz para uma outra dimensão a atividade política, lembra que os frutos de todo o trabalho e de toda vivência humana têm sempre algo de sagrado e sempre colocam a vida plena em primeiro lugar, porque é sempre sagrada não apenas a vida humana mas a de todas as coisas, de todo o cosmos.
E, ao se ‘curar’, a Igreja peregrina acaba por ‘curar’, depurar, sacralizar a própria atividade política. Já não se trata de ver nas pessoas apenas peças de um processo político, por mais transformador ou revolucionário que esse processo seja, ou pretenda ser. Trata-se agora de ver no outro uma realidade mais rica e complexa e ao mesmo tempo mais frágil e carente de afeto, de acolhimento. Trata-se de ver a ação política também como espaço para que as pessoas se irmanem de fato, se reconheçam uns aos outros - o espaço político não deve se pautar apenas pela eficiência, pragmatismo, mesmo que se trate de um espaço revolucionário.
Mesmo porque, talvez somente esse ato de se irmanar e de acolher é que seja realmente revolucionário. A história tem demonstrado à exaustão que a simples eficiência revolucionária - ou transformadora das estruturas sociais e econômicas - não se sustenta, não transforma de fato os indivíduos e, por extensão, as novas instituições que eles criam a partir do processo revolucionário.
Pois, por mais que a ação política revolucionária tenha aprendido a colocar em pauta temas como o respeito às diferenças, a fraternidade, a solidariedade, nos momentos decisivos a chamada dimensão subjetiva, interior, das pessoas é esquecida em nome da defesa ou manutenção do processo revolucionário e, então, as pessoas voltam a ser friamente tratadas apenas como soldados de uma causa ou de um exército.
Assim, é preciso uma abordagem mística, ou transcendente, da ação política transformadora, construir coletivos que sejam de fato sinônimos de acolhimento e amizade, um acolhimento e uma transcendência que não se percam nos primeiros percalços ou urgências do processo de transformação. A ação política tradicional nunca acolhe com a mística e o calor humano necessários para transcender a si própria, ou para se situar numa outra dimensão.
A igreja peregrina pode e deve ser a doadora dessa ação política transcendente. Principalmente nestes tempos de indiferença, hostilidade e desconhecimento do outro, é possível trabalhar com o projeto de uma Igreja que atraia e seduza as pessoas, ao reverenciar em primeiro lugar o acolhimento, e nesse acolhimento propor às pessoas um novo sentido, não somente para a ação política mas para as suas próprias existências: enfim, a Igreja peregrina pode e deve atrair novos sujeitos, se souber construir coletivos onde a própria ação politica esteja sumetida a um sentido maior, o sentido do sagrado, do mistério que há em todos e tudo.
E, sem cair aqui no idealusmo ou na ingenuidade, é lúcido dizer que, talvez aí sim, tenhamos um movimento, um ação política verdadeiramente revolucionária e, quiçá, de caráter global, pois terá conseguido fundir o sagrado e a polútica, o terreno e o transcendente, o indivíduo e o coletivo, o cotidiano e o mistério.
07/09/2009
o grito em movimento (2)
grito dos excluídos 2009 - vitória, es
imagem bem a propósito: a necessidade de uma verdadeira reaproximação entre o movimento popular e a igreja peregrina (ou progressista, para quem preferir), simbolizada por padre Kelder dando uma 'forcinha' para a faixa do CPV, observado por Waldemar Cunha (de verde), presidente do entidade.

antes da lavagem no judiciário capixaba, um descanso nos gramados do presunçoso 'palácio': afinal o trabalho ali iria ser árduo e demorado... - para quem já se esqueceu, em dezembro passado a polícia federal ocupou o tribunal de justiça do espírito santo e prendeu o seu presidente e três desembargadores

as acusações: favorecimento a parentes e amigos nos concursos irregulares e nos cargos comissionados e, claro, as famosas vendas de sentenças, como bem resgata a faixa acima

dei uma forcinha para a lavagem e para os sempre presentes agentes do Comando de Caça aos Corruptos - mesmo porque, fui um dos poucos funcionários do judiciário capixaba (se é que não fui o único) presente nessa 'afronta' ao egrégio tribunal.

e, no ato de lavar a sujeirada, os peregrinos do mundo novo expulsam o dragão da maldade, da burrice, da visão de mundo que não deixa os poderosos e seus agregados ir além de uma ganância estúpida e vazia, que se ilude com uma sede de poder cada vez mais exigente, mas que nunca é completamente saciada...

... uma sede de poder que alimenta uma estrutura social, econômica e política cada vez mais perversa, desumana e que está nos levando cada dia mais para perto uma barbárie disfarçada de modernidade, consumismo e progresso.