25/06/2009

as odisséias de joyce

Movido pela realização do primeiro ‘Bloomsday’ de Vitória, Desvelar publica abaixo alguns trechos do ‘Ulisses’, obra de James Joyce que inspira em todo o mundo o ‘Dia de Bloom’.
De toda a história da literatura, essa obra é sem dúvida a mais complexa, ambiciosa e a mais bem sucedida em seus objetivos. É uma odisséia, uma narrativa grandiosa, não somente da vida de um homem (Leopold Bloom), mas de certa forma de toda a chamada civilização ocidental.

Quando se diz ‘seus objetivos’ entende-se que há um plano, um projeto. De fato, Joyce não se deixou levar apenas pelo fluxo criativo, ou por uma idéia geral, ao escrever o ‘Ulisses’. Prova disso é a estrutura quase matemática da obra.
O livro é dividido em 18 capítulos, e em cada um deles há a presença, discreta ou explícita, de um elemento ou tema diverso: uma hora do dia, um órgão do corpo, uma cor, um símbolo e, mais fascinante que tudo, uma arte e uma forma de narrativa para cada um dos capítulos.

Joyce passeia por paródias, poemas, sermões farsas, monólogos, ‘falas’ que desnudam consciências ora juvenis ora femininas ora bêbadas. Sem falar, claro, no capítulo final, escrita na narrativa chamada de fluxo de consciência, que Joyce elabora com maestria até hoje inigualada. Aliás, para muitos é certo que a obra de Joyce até hoje não foi superada, principalmente no que diz respeito ao ‘Ulisses’ e ao ‘Finnegan’s Wake’; obra no máximo igualada em muitos aspectos pelo mineiro Guimarães Rosa, principalmente o Rosa épico, poético, cósmico, religioso, metafísico e inventivo de ‘Grande Sertão: veredas’, e o Rosa explorador e radical de ‘Tutaméia’ e de ‘Terceiras estórias’.
Obviamente que tudo isso é apenas uma pálida pincelada acerca da obra do escritor irlandês. Para se ter uma idéia, ‘Ulisses’ são cerca de oitocentas páginas de pura invenção, inquietude, celebração e gozo da palavra. Mas não celebração e invenção em abstrato, feita para escritores e intelectuais; ao contrário, a riqueza e o fascínio de Joyce nessa obra está exatamente em ter logrado, como pouquíssimas vezes se viu na literatura, a perfeita junção entre palavra e vida, entre arte e gente. Da palavra escrita de Joyce, das páginas do livro parece que de fato ‘brotam’ pessoas, olhares, risos, pensamentos, mágoas, dúvidas, ciúmes, alegrias, sonhos, ansiedades.

E tudo acontece em praças, praias, bares, quartos e ruas, principalmente ruas, dá realmente a impressão de acontecer no mundo de ‘verdade’, no mundo no qual o leitor vive. Sim, é uma espécie de realismo, mas de realismo superior, que somente pode ser construído a partir da palavra mágica, singular e potente do escritor Joyce. Essa proximidade com a vida, com as coisas e com as pessoas somente tem paralelo na já citada obra de Guimarães Rosa.

Enfim, é a história de um Ulisses não tão heróico quanto o da ‘Odisséia’, um Ulisses moderno, que poderia ser qualquer um de nós, na figura do esquivo e inseguro, malicioso e calculista, sensual e nostálgico Leopold Bloom.
E, como dito acima, alguns estudiosos na sua estrutura, nos seus recursos a linguagens, artes, ciências, ‘Ulisses’ também pode ser lido como uma narrativa, uma pequena e discreta epopéia de toda a complexa trajetória da civilização com todo o que ela tem de fascinante e de contraditório, de celebração e de lamento. Na verdade, essa gigantesca tentativa de epopéia da história da humana parece que James Joyce busca construí-la na sua outra obra radical, o ‘Finnegans Wake’ (a qual infelizmente ainda não me dispus a ler), que embora seja de complexa dificuldade em termos de tradução, vem sendo editada em outras línguas - para se ter uma idéia, aqui no Brasil somente foi publicada em 2000, na certamente corajosa tradução de Donaldo Schules.
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Os trechos do ‘Ulisses’, abaixo publicados, referem-se ao passeio que Bloom faz por uma das praias de Dublin, ao entardecer; em meio às suas cismas, dúvidas e projetos para a noite, ele observa um grupo composto por duas jovens e crianças.

A arte relacionada ao capítulo é a pintura, o símbolo é uma virgem, os órgãos são o olho e o nariz e a técnica narrativa é a tumescência/detumescência.

Embora apenas dêem uma vaga idéia do capítulo (no total são umas sessenta páginas) registre-se a mudança na técnica de narração: até mais ou menos a metade do capítulo é uma fala delicada, poética, satírica apenas na aparência (uma narrativa que, ao menos na aparência, procura descrever ou comungar com o mundo de garotas, ou mais especificamente, de uma garota virgem). Depois a fala subitamente transforma-se: é agora mais pausada, menos afetada emasi masculinizada, incisiva. É Bloom entrando em cena. Até então, a delicada e brincalhona narrativa sequer fazia suspeitar de sua presença, na espreita, a manter com a jovem Getty MacDowell um ambíguo flerte.

Percebe-se, então, porque Joyce denominou de tumescência/detumescência a técnica narrativa por ele utilizada nesse capítulo. Há num primeiro momento todo um entusiasmo, toda uma expectativa de um acontecimento agradável ou revelador, exatamente como a expectativa de uma garota virgem que se sabe observada por um homem que ela entende como experiente e ousado, e a cujos olhares e gestos ela corresponde de maneira ambígua, discreta. Depois há a fala prosaica do homem que a observava e que se excitava com as mãos, ao conseguir que a garota se exibisse discretamente para ele.
A mudança, quase brutal, da fala, ocorre quando a garota se levanta para ir embora e Bloom percebe que ela mancava. Da tumescência, da impetuosidade incial, temos então a detumescência, a frouxidão, não apenas da froma narrativa mas também da masculinidade de Bloom. São centenas de preciosidades assim que fazem Joyce nos fascinar.
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E, claro, não poderia faltar uma pequena amostra do famoso fluxo de consciência de Molly Bloom, que conduz o capítulo final (ver também o final do texto um filme, um presente). Fica para uma próxima oportunidade outros comentários, tanto acerca desse capítulo final, quanto acerca de muitos outros capítulos e situações.
Afinal, ler Joyce é compartilhar de suas odisséias, de suas originalíssimas explorações nos ainda vastos e desafiadores oceanos da palavra. Parodiando Guimarães Rosa ao falar de Minas: ‘Joyce são muitos”.
Roberto Soares Coelho

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