04/10/2011

quando as barbáries se apropriam da beleza

Há tempos atrás, logo no início do governo Casagrande, Fraga Ferri divulgou um texto onde fazia contundentes críticas ao projeto do Cais das Artes - com relação à sua concepção, seus objetivos e principalmente com relação à gestão antidemocrática do projeto, decisões tomadas sem a participação de artistas e comunidades - o que, convenhamos, não é de se admirar na democracia burguesa, formal, institucionalizada. 

À época, quis publicar e comentar o texto, mas na correria do dia a dia acabei perdendo o momento próprio. Agora, eis que Fraga retorna à questão, num texto novamente contundente, e dessa vez voltado para o aspecto arquitetônico do projeto, abrindo uma discussão interessante acerca da legitimidade, ou oportunidade,  de certa visão arquitêtonica, a saber, aquela ligada ao moviemnto concretista e que atingiu seu ápice na obra de Oscar Niemeyer.

Embora não tenha domínio técnico no campo da arquitetura, eu particularmente admiro e me identifico com a obra de Niemeyar - com a sua leveza, arrojo e inventividade e, claro, com as  posições políticas do arquiteto comunista. O que não quer dizer que eu não tenha ressalvas, não ao talento de Niemaeyer, mas àquilo que o poder instituído faz desse talento. Compartilho da posição de Fraga  no que diz respeito à violência, não apenas desssa arquitetura, mas de toda e qualquer expressão que se pretende moderna, iluminada, e não passa de manifestação modernosa, presunçosa e repetitiva - o que aliás está muito mais presente na arte e nos artistas da pós-modernidade d que a crítica tem a coragem de assinalar.
E, no caso da aquitetura,  a violência e a arrogância no sentido de desrespeitar e ignorar  a beleza e a espontaneidade já existentes, ancestrais, seja elas construídas pela história, pelo mundo, ou pela interação de ambos.

Aliás, no texto sobre a Cidade Admnistrativa de Minas (também projetada por Niemeyer), aqui publicada em maio aqui e aqui,  manifesto mais detalhadamente essa preocupação com o uso que os poderes e instituições fazem, não apenas da arquitetutra mas da arte em geral: embasbacar, extasiar, apropriar-se da grandeeza da arte para aparecer, aos olhos da massa conformada, como donos,  ou íntimos, dessa mesa grandeza e beleza.
Segue abaixo o texto de Fraga Ferri:

Um arquiteto da barbárie
A percepção demasiada humana dos devotos da procissão marítima de São Pedro deste ano captou - com maior sensibilidade e profundidade - aquilo que o desenho no papel já anunciava: o Cais das Artes é um monstrengo alienígena invadindo a Baía de Vitória. A dispepsia estética gerada na comunidade de pescadores - desabrigados agora de sua paisagem afetiva – é algo que merece pelo menos ser refletido.

Os arquitetos ditos modernos - linha de filiação de Paulo Mendes da Rocha - carregam no bolso com devoção inabalável uma lente Niemeyertiana: enxergam um Planalto Central vazio em todo espaço a ser ocupado. Eles trazem em suas concepções colonizadoras aquela postura avassaladora e violenta de conceber estruturas que tem a obrigação de instaurar “um mundo novo”, no espaço pobre, inválido e inóspito onde são edificadas. A relação afetiva, a visão simbólica e adesão existencial do conjunto humano que interage com esse espaço não existem. Quando muito essas dimensões são avaliadas - pelo intelectualismo solipsista moderno desses arquitetos - como sendo fruto de uma casta inferior, de uma gente sem capacidade para compreender as arrojadas linhas modernas e seus promissores efeitos.
Esse tipo de arquitetura fria e anacrônica, que desconsidera a interação com o espaço, é denominada por seus críticos de barbarismo. Existe uma anomalia na gênese dessa arquitetura dita referenciada como “moderna”: ela sofre de agorafobia; sua sistematização esmaga a possibilidade do relacionamento do humano com suas estruturas, apequenando essa dimensão diante da imponente monstruosidade retilínea edificada. Essa visão arrogante é constitutiva do Cais das Arte, determinando uma geometria rígida e deserotizada, sem relação com o ambiente, em consonância com a vaidade concreta e o hermetismo arrogante da aristocracia de plantão que engendrou o projeto.
O arquiteto Paulo Mendes da Rocha cedeu sua reputação e olhar estrangeiro para degradar o espaço vivente da Capital dos Capixabas com uma estrutura anacrônica e desintregadora de poética. A consciência bárbara – presente no arquiteto moderno – determina a percepção da coisa concebida como possuindo absoluta primazia em relação à percepção do espaço afetivo. O objeto novo, a edificação moderna, trás a cultura nova, que se traduz como cultura verdadeira e inovadora; aquela que deve ser inseminada e disseminada para o povo, com o objetivo de purificar e elevar o nível cultural das pessoas - no caso capixabas. Em sua perversa analítica, essa consciência estrutural e estruturante, apreende a cultura existente como inferior ou indigna de ser levada em consideração. Não vigora aqui, em nenhum momento, o reconhecimento que cultura é construção de uma coletividade em relação criativa e significativa com seu espaço. Se há sentidos simbólicos e afetivos eles devem ser, preferencialmente, destruídos.

O complexo de barbarismo arquitetônico se concretiza com suas paquidérmicas proporções: o investimento monstruoso nesse projeto se contrapõe aos ínfimos valores destinados ao longo dos anos ao fomento cultural local. A construção humana dos capixabas, expressada radicalmente por seus artistas, continua sendo vista pela elite dirigente como sub-cultura de uma sub-raça; teremos então que modelar nossa percepção e nosso modo de expressão a partir do que vem de fora. Eles construirão um Cais das Artes e nós continuaremos a ver navios: estamos todos à margem do complexo.

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