24/06/2010

futebol e resistência popular - copa da áfrica VI

Abaixo, vídeos e textos relacionados com a Copa da África.

Não pretendia entrar nessa melindrosa questão da Copa do Mundo. Mas vale o registro, já que tantos têm sido os acontecimentos extra-campo neste atual Campeonato Mundial, alguns divertidos, outros lamentáveis, outros gratificantes: briga do técnico francês com Parreira, crise na seleção francesa, com greves, cortes, abandonos, protestos de trabalhadores contra a poderosa FIFA, repressão policial, o carisma e a arrogância de Maradona e, por fim, o surpreendente enfrentamento de Dunga com a Globo e a CBF.

Melindrosa, porque como todo fenômeno, muitos podem ser os ângulos de leitura, ou de visão. A Copa não pode ser vista apenas e tão somente como momento de alienação, espetacularização e imbecilização das massas, como querem alguns.

A Copa é uma construção cultural que vem se consolidando no imaginário popular ao longo de décadas - aliás, tal como o futebol em geral. É momento de integração, de comunhão entre povos ou entre pessoas de uma nação. É certo, trata-se de uma comunhão precária, de uma integração apenas em potencial, ou virtual, mas não deixa de ser uma reafirmação dessa possibilidade e necessidade de integração entre pessoas, povos e culturas.

Não é muito previdente condenar drástica e unilateralmente todas essas grandes manifestações populares, nem é muito inteligente colocá-las todas ‘no mesmo saco’ da alienação, da manipulação e da imbecilização: procissões religiosas, carnavais, peregrinações, futebol e mesmo enterros de ícones como Airton Senna, Tancredo Neves, Michael Jackson. Principalmente no caso do futebol, que talvez seja a única - ou ao menos a mais intensa - manifestação de cultura popular que atravessa praticamente todos os países do mundo.

Todos essas formações de multidão não deixam de ser uma negação do individualismo, da fragmentação, da hostilidade, da indiferença, que são tão bem utilizados pelos mecanismos de dominação para minar o potencial de transformação de pessoas e povos, quando tomam consciência de si e para si.

Se as elites, o mercado, a mídia etc etc etc aproveitam esse momento de magia e de precária comunhão para aperfeiçoarem ou reforçarem o seu controle sobre a história e as forças populares, isso não invalida o caráter de resistência e de construção popular presente na prática do futebol e dos campeonatos em geral, principalmente do Campeonato Mundial.

Seria muito tolo destruir, negar a identidade de tantos povos somente em razão da lamentável apropriação do futebol que os mecanismos de dominação praticam, e cada vez com mais eficiência (ou cada vez de forma mais patética, presunçosa e boba - depende da forma como cada um vê as ‘inteligentes’ e ‘sensíveis’ criações de nossos publicitários). Copa do Mundo não é meramente fruto das ações de indivíduos e grupos que exercem a sua lamentável tarefa de manter o controle dos povos e pessoas, pelo menos até o momento em que essa dominação for percebida, enfrentada, destruída e superada por esses mesmos povos e pessoas.

E já que estamos falando de Copa da África, aqui cabe lembrar a famosa pergunta que uma vez um jornalista fez a Sartre, parece que a propósito de uma crítica, que o lúcido e combativo filósofo francês teria feito à cultura popular africana, a qual estaria ‘desviando’ os esforços da luta pela libertação da África. O jornalista teria então perguntado: “Sim, mas e depois da revolução, os africanos vão fazer o quê? Vão ler os livros de Sartre?”

P.S. - Uma nota de caráter pessoal, apenas para reforçar esse aspecto de resistência de construção popular das Copas. Ainda aos oito anos, no mesmo ano em que fui arrancado de minha terra para morar na cidade (digo arrancado porque não me foi permitido decidir se eu já estava pronto romper com o aparentemente monótono mas denso universo rural) pude acompanhar a Copa de 70. Os vizinhos e os numerosos parentes iam para a sede do município (São Miguel, Minas) no caminhão de meu pai, para experimentar a grande novidade, que era a televisão. Haviam apenas três ou quatro televisões na pequena cidade. Amontoávamo-nos nas salas, janelas e varandas, numa tensa, expectante, mas festiva integração. Na volta, na escuridão e no frio da estrada de chão, havia a costumeira festa – afinal o Brasil ganhou todas. E com certeza toda essa emoção não era em função das manipulações dos ideólogos da ditadura militar, com certeza a maioria de nós – crianças ou adultos - nem sabia quem eram esses infelizes. E as Copas de antes da televisão obviamente já galvanizavam a todos, mesmo sem a presença dos maléficos bobos da mídia. Copa do Mundo é memória, é história coletiva ou pessoal. Quem não tem essa memória que se sinta à vontade para criticar ou se manter indiferente. Quanto a mim, sou grato por essas memórias.

vídeo de protestos - copa da áfrica V

Feitas as ressalvas acima, temos então diversificado material acerca da Copa.

Os textos ‘copa da áfrica II’ e ‘copa da áfrica III’, juntamente com um vídeo, retratam o mais gratificante dos tais acontecimentos ‘extra-campo’ aos quais me referi acima. Foi o episódio da ‘peitada’ de Dunga para cima da poderosa Rede Bobo de Televisão. Mais detalhes no texto que segue junto o vídeo.

Supondo quer tudo não passe de mais uma dessas armações que os mecanismos de dominação aprontam, com esse gesto Dunga se redime de sua cara antipática, de seu futebol isento de arte e criatividade, e até mesmo daquelas vestes bregas que ele usava, ou ainda usa, para promover a sua filha estilista.

Vale reforçar a ênfase que o texto dá a um detalhe: é a primeira vez que um brasileiro de expressão enfrenta publicamente a Rede Bobo.

Mas vale principalmente registrar os desdobramentos do auspicioso do fato: é também a primeira vez que há uma manifestação de massa contra a Rede Bobo, via internet.

Mas essa deliciosamente benvinda movimentação da chamada sociedade civil não é uma fato isolado, ela vem já no rastro de um outra e surpreendente articulação: a campanha, via twitter, que está sendo movida contra o locutor oficial da Rede Bobo, o coitado do Galvão Bueno, o “Cala a boca, Galvão”. Mais detalhes nos googles e nas execráveis vejas da vida.

É, a continuar assim, parece que em breve teremos no ar algo menos sonolento e imbecilizante do que os indefectíveis plim-plim da Rede Bobo de Televisão. É verdade que com um considerável atraso em relação aos hermanos da Venezuela, mas afinal nunca é tarde para começar...
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Já deixando um pouco o aspecto da mídia e do futebol propriamente dito, e embarcando na canoa da questão explicitamente política, há o texto de Pe Alfredinho, ' O gol e o voto', publicado em 14 de junho - no qual Pe Alfredinho aproveita para expor um pouco das vulnerabilidades, limitações, armadilhas e hipocrisias da democracia burguesa ou representaiva.

Abaixo, um vídeo que mostra os protestos dos trabalhadores africanos contra o descumprimento de obrigações trabalhistas por parte da FIFA. Belo fundo musical, a canção sul-africana .

os bafana bafana não são uns bananas

A polícia sul-africana teve que assumir a segurança em quatro dos dez estádios da Copa do Mundo depois que os trabalhadores contratados para a função cruzaram os braços. Eles receberiam cerca de 100 reais por dia de trabalho, mas apenas 40 reais foram pagos após o primeiro dia. O impasse começou no dia 13 ainda no estádio Moses Mabhida Stadium, em Durban, após o jogo entre a Alemanha e a Austrália. Quando os trabalhadores receberam menos da metade do combinado, no estacionamento do estádio, centenas deles se reuniram para protestar e a polícia foi chamada pelos organizadores do evento para reprimir a massa inconformada. Bombas de gás e tiros de bala de borracha foram disparados a esmo pela repressão em direção aos trabalhadores, que responderam com pedras e garrafas.
Vídeo e texto extraidos do blog  rebelião popular
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E na postagem abaixo há uma divertida paródia feita pelo poeta capixaba Marcos Tavares, que aproveitou o clima de Copa do Mundo e elaborou um convite, para um conversa sobre sua obra, em forma de decreto ou portaria.

convite paródia - copa da áfrica IV

Embora o convite seja evidentemente tardio, vale a sua publicação pela criatividade e pela bem humorada crítica a Copa: 

CONSIDERANDO que, nesse momento, muitos nacionalistas de ocasião não ousam despregar da telinha ( ou telões) os olhos verde-amarelos;

CONSIDERANDO que “o escrete nacional é a pátria de chuteiras”, conforme máxima de Nelson Rodrigues;

CONSIDERANDO que, neste momento, até os nerds trocam as mãos pelos pés;

CONSIDERANDO que, neste momento, até jazófilos e bossanovistas de carteirinha trocam sutilezas musicais, filigranas sonoras, por altissonantes e truculentas vuvuzelas ;

CONSIDERANDO que mesmo os bons da “bola” [cerebral], os adeptos do papo-cabeça, preferem a instabilidade da esférica jabulani ;

CONSIDERANDO que, nesse momento, discute-se apaixonadamente as zangadezas do Dunga , ou o pretenso (ou falso) bom-mocismo do Kaká , quando não se tece loas às divinas fenomenalidades do Luiz Fabiano;

RESOLVE o nosso anti-herói MT arriscar um Debate-papo na Biblioteca Pública Estadual . Será nesta quinta-feira (dia 24 ) , a partir das 19 hs. Marque na sua agenda da Internet. Avise a amigos e , sobretudo, a inimigos ( porque amigos sempre aparecem, obrigados).

A Biblioteca? Nada borgiana, fica ali ao lado das peixarias da Praia do Suá. Ou defronte ao Hortimercado, num local favorável a estacionamento veicular.

Marcos Tavares falará de sua vida ( que daria um livro  ) e de sua obra (que daria até “cadeia” ). Enfim, nascido na Vila Rubim e crescido nas grimpas do Morro de Santa Tereza, poderia estar matando, roubando, estuprando, e até...se prostituindo. Mas, embora peralta , descobriu o caminho das pedras, ou seja, o lado bom da Humanidade : a linguagem.

 Exaltará MT, sobretudo, “a última flor do Lácio , inculta e bela ” ( O . B.), a mesma que, língua vivíssima, com José Saramago conquistou um Nobel de Literatura .

Viva Portugal !

'dia sem globo' - copa da áfrica III

O técnico da seleção brasileira abriu fogo contra a Rede Globo.Dunga deu na canela do comentarista Alex Escobar, da Globo. Poucas horas depois, um dos apresentadores do programa Fantástico, Tadeu Schmidt, da África leu um editorial da emissora detonando Dunga (leia o caso aqui).

O motivo da briga foi por que a Globo negociou diretamente com Ricardo Teixeira, presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), entrevistas exclusivas com três jogadores da seleção, entre os quais Luis Fabiano. As entrevistas iriam ser exibidas durante o programa “Fantástico”, no domingo, horas depois da partida contra Costa do Marfim, vencida pelo Brasil por 3 a 1. Dunga vetou o acerto.

O incidente entre Dunga e Alex Escobar ocorreu quando o jornalista conversava ao telefone com o apresentador Tadeu Schmidt exatamente sobre este assunto. O técnico percebeu o que ocorria e perguntou: “Algum problema?” Escobar respondeu: “Nem estou olhando para você, Dunga”. O técnico replicou em voz baixa, o suficiente para ser captado pelo microfone à sua frente: “Besta, burro, cagão!” (veja o vídeo abaixo).

Horas depois do incidente, durante o “Fantástico”, Schmidt falou: “O técnico Dunga não apresenta nas entrevistas comportamento compatível de alguém tão vitorioso no esporte. Com frequência, usa frases grosseiras e irônicas”. O jornalista da Globo não mencionou, no entanto, o motivo do atrito, ou seja, a recusa do técnico em aceitar um acordo feito entre o presidente da CBF e a emissora.A reação do povo foi imediata.O editorial lido no programa "Fantástico", da Rede Globo, deu repercussão no mundo virtual. .E pela primeira vez na história o Brasil inteiro apóia o técnico da Seleção. Só a Globo para conseguir isso...

Dentre os assuntos mais comentados no Twitter nesta segunda-feira (21), a frase "Cala boca, Tadeu Schmidt" era líder absoluta --superou até a antecessora "Cala Boca, Galvão", que liderou por dias seguidos os Trending Topics.

E não parou por ai. Em apoio ao técnico da seleção brasileira, os twiteiros lançaram o "DiaSemGlobo", que será nessa sexta-feira, quando o Brasil vai jogar com a seleção de Portugal, no encerramento da primeira fase da copa.

Nós, "Os amigos do Presidente Lula" estamos aderindo a campanha #DiaSemGlobo, e gostaríamos contar com o apoio de todos vocês queridíssimos leitores.
Para quem for ver o jogo na internet, uma dica é o site: http://www.diarioda tv.com/

dunga, o tsunami da globo - copa da áfrica II



Abaixo, outro texto que está circulando na internet e que também trata do caso DUNGA x REDE BOBO. Eu o recebi através da Lista de Discussão "AE Vitória", voltada para membros da Articulação de Esquerda, corrente interna do Partido dos Trabalhadores.  Também publico o vídeo do editorial do Fantástico de 20 de junho.
Entenda porque a Rede Globo quer comer o fígado de Dunga
O Jornal O Globo em sua primeira página da edição de hoje, quarta-feira 16 de junho de 2010, desce a lenha na seleção e principalmente no seu treinador.

Qual a razão dessa súbita mudança de comportamento ? Vamos aos fatos.
Segunda-feira, véspera do jogo de estréia da seleção brasileira contra a Coréia do Norte, por volta de 11 horas da manhã, hora local na África do Sul.

Eis que de repente, aportam na entrada da concentração do Brasil, dona Fátima Bernardes, toda-poderosa Primeira Dama do jornalismo televisivo, acompanhada do repórter Tino Marcos e mais uma equipe completa de filmagem, iluminação etc.

Indagada pelo chefe de segurança do que se tratava, a dominadora esposa do chefão William Bonner sentenciou :
“ Estamos aqui para fazer uma REPORTAGEM EXCLUSIVA para a TV Globo, com o treinador e alguns jogadores…”

Comunicado do fato, o técnico Dunga, PESSOALMENTE dirigiu-se ao portão e após ouvir da sra. Fátima o mesmo blá-blá-blá, foi incisivo, curto e grosso, como convém a uma pessoa da sua formação.

“ Me desculpe, minha senhora, mas aqui não tem essa de “REPORTAGEM EXCLUSIVA” para a rede Globo. Ou a gente fala pra todas as emissoras de TV ou não fala pra nenhuma…”

Brilhante !!! Pela vez primeira em mais de 40 anos, um brasileiro peitava publicamente a Vênus Platinada !!!

“ Mas… prosseguiu dona Fátima – esse acordo foi feito ontem entre o Renato ( Maurício Prado, chefe de redação de Esportes de O Globo ) e o Presidente Ricardo Teixeira. Tenho autorização para realizar a matéria”.

“ Não tem autorização nem meia autorização, aqui nesse espaço eu é que resolvo o que é melhor para a minha equipe. E com licença que eu tenho mais o que fazer. E pode mandar dizer pro Ricardo ( Teixeira ) que se ele quer insistir com isso, eu entrego o cargo agora mesmo!”

O treinador então virou as costas para a supra sumo do pedantismo e saiu sem ao menos se despedir.
Dunga pode até perder a Copa , seu time pode até tomar uma goleada, mas sua atitude passa à história como um exemplo de coragem e independência.

Dunga, simplesmente, mijou na Vênus Platinada ! Uma estátua para ele !!!
Dunga II - O tsunami na Rede Globo.
Quem presenciou na noite de domingo o editorial do programa “Fantástico” da rede Globo, lido pelo repórter Tadeu Schmidt, há de ter compreendido todo o desespero que se apossou da “Vênus Platinada”, em relação ao técnico da seleção brasileira.

Chamando-o de “grosseiro, mal educado” e outros mimos a mais, a poderosa estação do Jardim Botânico viu pela primeira vez em mais de 40 anos, um brasileiro desafiar seu domínio, e literalmente mijar na sua cabeça.

Recordando os fatos mais recentes, inconformado com a proibição das tais “entrevistas exclusivas” que só seriam concedidas à Globo, na sexta feira o Assessor de Imprensa da CBF levou ao técnico Dunga outro memorandum, dessa vez do próprio Presidente Ricardo Teixeira, solicitando que se ordenasse a abertura para que as tais “exclusivas” fossem concedidas.

Dunga então rasgou o memorandum na frente do Assessor de Imprensa e como a reclamação vinha diretamente por ordem da Todo-Poderosa Sra. Fátima Bernardes, Prima Dona do jornalismo televisivo, Dunga foi mais uma vez taxativo:

- Diz pro Ricardo que se é o que ele deseja, que coloque essa senhora como treinadora da seleção, eu entrego meu cargo” !!!!

Na entrevista coletiva, após o jogo contra a Costa do Marfim, Dunga então resolveu “premiar” os repórteres da rede Globo que lá se encontravam. Pela leitura labial ficou fácil identificar que ele chamou Marcos Uchoa de “chato” e Alex Escobar de “babaca” e “cagão”

E disse tudo. O sr. Marcos Uchoa com aquela cara de diarréia reprimida é realmente um chato de galochas, e o sr. Alex Escobar, metido a engraçadinho e a bobo da corte, é a própria imagem do babaca cagão.

Em razão disso tudo que foi descrito, o sr. William Bonner, absolutamente descontrolado, escreveu do próprio punho o editorial ridículo que foi lido no Fantástico.

Agora à tarde chega a notícia publicada no Portal do Lancenet que a FIFA punirá Dunga pelos fatos ocorridos. A rede Globo certamente está por detrás dessa punição covarde e canalha.

Dunga merece uma estátua em praça pública.
É o primeiro brasileiro vivo a desafiar publicamente a força e o poderio da rede Globo, numa competição de cunho internacional. Leonel Brizola já o fizera antes, mas em assuntos de política interna.

A seleção brasileira de 2010, muito mais que uma seleção, passa a ser o retrato fiel de seu treinador. Que o seu sucesso seja um insulto à podridão que reina nas hostes da emissora do Jardim Botânico.

Dunga mijou na rede Globo por todos nós.

21/06/2010

o mundo como prostíbulo

Volta e meia, surgem na grande mídia denúncias de escravidão sexual, para depois se perderem no mar de informações sérias e de factóides nem tanto, dos qual essa mesma grande mídia vive.

De qualquer forma, nessas matérias esporádicas percebe-se que as vítimas da escravidão sexual são mulheres, jovens e adolescentes oriundas - como não poderia deixar de ser - dos países pobres ou em desenvolvimento.

É mais um dos perversos efeitos da nunca suficientemente denunciada globalização capitalista. O que é incentivado, defendido, permitido e apregoado como sinônimo de modernidade e liberdade não é a livre circulação de pessoas, idéias e culturas, mas tão somente a livre circulação de mercadorias e capitais - e, claro, a livre circulação de corpos, desde que esses corpos se enquadrem no mecanismo de manter ou aumentar a taxa de lucro do mercado, desde que sirvam com mão de obra barata ou de segunda categoria.

Ou, mais indecente ainda, desde que esses corpos sirvam como mercadoria erótica, como mão-de-obra sexual, alimento para a rede mundial de prostituição. Claro, a prostituição não é invenção da globalização, nem se restringe a essa bárbaro fornecimento carnal dos países pobres para os países ricos.

Mas certamente essa irracional globalização capitalista tem tornado a prostituição uma realidade ainda mais desumana e degradante; é de fato uma nova escravidão, que conspurca, destrói e faz sofrer mulheres e adolescentes, agora iludidas ou arrancadas de sua família, de seu povo, de sua cultura e levadas para longe, para a terra estrangeira, o que torna essa nova escravidão tão ou mais cruel e implacável do que o foi a escravidão dos negros africanos, com o agravante de que agora vivemos na chamada modernidade democrática e tecnológica, pretensamente evoluída e racional.

O contundente texto de Lola Galan, abaixo publicado, retrata um pouco dessa prostituição do mundo.

O mundo como um prostíbulo

Fruto de uma investigação, um ex-empregado de um banco denuncia o negócio planetário do tráfico sexual e a vida atroz das cerca de um milhão de mulheres escravizadas para exercer a prostituição. A reportagem é de Lola Galán, publicada no jornal El País, 30-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

As meninas e jovens que se oferecem por umas poucas rúpias nos prostíbulos gigantescos de Kamathipura e Falkland Road, em Mumbai, não são muito diferentes das adolescentes do Leste Europeu encerradas em clubes noturnos em Mestre, perto de Veneza. Ou das jovens nigerianas detidas, sob ameaça de morte, em cortiços perdidos entre as estufas de Almería, na Espanha, como as que a polícia libertou há alguns dias.

Umas e outras são escravas sexuais. Um termo aparentemente defasado em pleno século XXI, que descreve, infelizmente, uma realidade nada infrequente. Mais de um milhão de adolescentes e de mulheres jovens alimentam hoje esse sórdido negócio que proporciona aos que o exploram milhares de milhões de euros de lucro por ano. Mulheres vendidas, enganadas ou raptadas pelos próprios grupos mafiosos que controlam o tráfico sexual.

Como se desenvolve o tráfico de mulheres no mundo global? Quem são suas vítimas e quem são os carrascos? "As vítimas são mulheres jovens, pobres, muitas pertencem a minorias étnicas, ou vêm de países instáveis e estão desesperadas para emigrar. Os campos de refugiados também são um campo propício para recrutá-las", explica Siddharth Kara, na conversa telefônica de sua casa em Los Angeles. Ele é autor de um livro sobre o assunto, "Tráfico sexual. El negocio de la esclavitud moderna", publicado pela Alianza Editorial. Kara, de 35 anos, ex-empregado do banco de negócios Merrill Lynch, deixou seu lucrativo trabalho para iniciar, no ano 2000, uma série de viagens pelo mundo que o levariam ao coração do tráfico sexual através de três continentes.

Nos países do sul e do leste da Ásia, nos Estados Unidos, no leste da Europa, nos Bálcãs e na Itália, Kara teve contato com escravas, assistentes sociais, intermediários e alguns traficantes. O resultado desse amplo trabalho de campo é o livro sobre esse negócio desumano, que analisa os aspectos econômicos sem esquecer o drama profundo das jovens exploradas.

Dramas como o de Mallaika, uma ex-escrava sexual que Kara encontrou em Mumbai. Casada aos 13 anos, após dar a luz à dois filhos mortos, o marido a vendeu a um intermediário quando ela tinha recém completado 16 anos. Mallaika trabalhou toda a sua juventude como escrava sexual, obrigada a satisfazer a dezenas de clientes por dia. No gigantesco bordel, imperava a lei mais brutal. Todos os dias, escravas como ela morriam violentamente. Depois, ela passou a trabalhar como prostituta pelo sistema indiano de adhiya. A metade do que ela ganhava era para o dono do prostíbulo. Infectada pelo vírus da Aids quando Kara a encontrou, Mallaika estava consciente de que seus dias estavam contados.
Free the Slaves
Siddharth Kara, membro da direção da ONG Free the Slaves, criada em 2000 por um grupo de intelectuais para lutar contra a escravidão, conta que seu interesse pelo assunto surgiu quando era estudante na Universidade de Duke (Carolina do Norte). Em 1995, Kara passou algumas semanas no campo de refugiados de Novo Mesto (Eslovênia). Ali, uma jovem bósnia lhe contou que soldados sérvios raptaram algumas de suas companheiras e as levaram a prostíbulos de Belgrado.

Essa lembrança nunca lhe abandonou. E, no ano 2000, com alguma coisa de dinheiro economizado, uma simples mochila, uma câmera de fotos e um gravador, lançou-se à aventura de ver com seus próprios olhos a natureza do tráfico de mulheres. "Calculo que agora mesmo haja em torno de 1,3 milhões de escravos sexuais, a maioria mulheres e meninas", diz Kara. "Mas não devemos esquecer que são muitas mais as pessoas escravizadas no negócio da prostituição".

Kara acredita que uma das razões do auge desse comércio é a sua rentabilidade, só superada pelo tráfico de drogas. Mas com um risco muito menor. Por que os mafiosos que controlam o tráfico sexual correm menos risco de ser detidos? "Há várias razões. A corrupção policial, a dos guardas da fronteira, a do sistema judicial. Também não há fundos para atender as escravas que conseguem se libertar, e é difícil que elas denunciem os traficantes. Além disso, as forças encarregadas de lutar contra essa chaga não têm meios, nem estão coordenadas globalmente".

Quando Siddharth Kara iniciou sua investigação, ele se deparou com o fato de não haver dados nem evidências testemunhais do tráfico. "Dedicavam-lhe muito pouca atenção. Nem sequer na imprensa. Hoje, há mais interesse, mas nem sempre é um interesse sadio. Há jornalistas e membros de ONGs que só querem contar histórias sensacionalistas para construir suas próprias carreiras. Além disso, os recursos econômicos são limitados. Por não sei qual razão, a luta contra o tráfico de mulheres está subordinada a outros problemas, como o terrorismo, o tráfico de drogas, ou a imigração. Além de haver uma apatia institucional histórica na hora de reconhecer as dimensões desse problema e de lhe dar uma solução. Seguramente, como as mulheres ainda são discriminadas no mundo, elas recebem uma atenção menor".
Dramas pessoais
A vida das escravas sexuais está dominada por um mesmo horror, seja no Oriente ou no Ocidente, no Norte ou no Sul. Kara entrevistou jovens que sobrevivem meio drogadas nos prostíbulos mais sujos de Mumbai e meninas do Leste Europeu obrigadas a ficar nas ruas de Roma e encontrou trágicas semelhanças.

"Poderia parecer mais sórdida a situação das escravas sexuais na Índia, mas o trato que essas jovens recebem tem aspectos comuns em ambos os países. Todas sofrem contínua violência, são torturadas e ameaçadas constantemente e obrigadas a ter relações sexuais com dezenas de indivíduos por dia. Na Índia, a prostituição está proibida, e tudo é feito às escondidas, enquanto que na Itália a prostituição de rua é autorizada, salvo para as menores de idade".

Na cidade santa de Benarés, Kara se encontrou com Devika, uma adolescente com uma história estremecedora. "Quando eu tinha 13 anos, um dia um homem, ao qual eu conhecia pelo nome de Raj, me abordou a caminho da escola. Me pegou pela mãe e me disse que me mataria se eu gritasse pedindo ajuda. Ele me levou para a sua casa e me violentou. Abusava de mim todos os dias e trazia outros homens para que tivessem relações sexuais comigo". Até ser resgatada, Davika passou meses trabalhando na casa-prostíbulo de Raj, que a obrigava a ter relações sexuais com mais de 20 homens por dia. ua história, com exceção das enormes distâncias culturais e geográficas, parece-se à de Tatyana, uma menina moldava de 18 anos que passou 26 meses como escrava sexual na Itália.

O erro de Tatyana (os nomes que Kara cita em seu livro não são autênticos) foi se apresentar ao anúncio publicado por um jornal de sua cidade natal, Chisinau (Moldávia), no qual se solicitavam jovens para trabalhar no serviço doméstico na Itália. "Assim que saí de casa, meus companheiros me violentaram e depois me mantiveram vários dias sem comer", relata no livro. Sua primeira parada foi na Sérvia, onde foi comprada por traficantes albaneses. Mais tarde, foi vendida novamente para a Albânia. Dali passou para a Grécia, onde os mafiosos que a acompanhavam colocaram-na em um barco rumo à Itália. "Ali, os albaneses a colocaram no porta-malas de seu carro", relata Kara em seu livro, "e a levaram diretamente para Milão, onde foi vendida ao proprietário de um clube noturno". Todas as noites, ela tinha que deitar com os clientes e satisfazê-los sexualmente. "Quando eu não queria beber, o proprietário injetava tranquilizantes para animais em mim".

A oferta de escravas sexuais na Itália é tão abundante que os preços do ato sexual reduziram-se pela metade. A clientela se multiplicou. Hoje em dia, constata Kara em seu livro, "frequentar prostíbulos está cada vez mais integrado na cultura italiana". Depois de serem exploradas nos bares de Roma, Turim, Mestre ou Milão, muitas dessas mulheres são enviadas para outros países da Europa onde seu calvário continua.

Clientes não lhes faltam. Segundo Kara, no mundo inteiro, entre 6% e 9% dos homens maiores de 18 anos compram sexo de escravas pelo menos uma vez por ano. Seja por entretenimento, por impulsos violentos ou por qualquer outro propósito, ele reconhece que não há canto do mundo onde os homens não recorrem aos prostíbulos. Os Estados Unidos, com leis proibicionistas muito restritas e implacavelmente aplicadas, é um dos lugares onde o comércio sexual parece ter menos êxito. Mas não deixa de ser uma exceção.

O que caracteriza os consumidores desse sexo barato? "Não sou a pessoa indicada para responder essa pergunta. É verdade que alguns homens o consomem sem maiores problemas de consciência. Há razões biológicas, sociais, não sei. Obviamente, sem homens dispostos a pagar por sexo, não existiria essa escravidão. Mas nem todos os homens são responsáveis por ela. Só uma pequena parte".

Entre os clientes de imundos salões de massagem, ou das prostitutas de rua, estão os imigrantes, que chegam, muitas vezes sozinhos, a um país desconhecidos e hostil. "A globalização foi um agravante enorme. O tráfico de seres humanos é uma das consequências mais horríveis do capitalismo global, que gerou enormes desigualdades econômicas. Porque se produz uma transferência clara de riqueza e de recursos das economias pobres para as ricas junto com outro fenômeno, o da falta de direitos humanos nos países em desenvolvimento".
Papel negativo da religião
E a religião? Tem algum papel nesse fenômeno? Kara, que viajou várias vezes para a Tailândia, outro país com maior oferta de escravas sexuais e prostitutas menores de idade, cita o budismo theravada, religião oficial, como uma das últimas razões do desprezo para com a mulher, considerada como uma reencarnação inferior ao homem.

Mas o hinduísmo também não é mais compassivo com as mulheres, nem os ritos africanos. As mulheres nigerianas pegas pelo tráfico muitas vezes aceitam condições de vida terríveis sem se queixar, por temor aos ritos Ju ju, aos quais estão submetidas. "Existe ainda uma opressão bastante generalizada das mulheres por parte dos homens. E a religião é um meio a mais para submetê-las. Não é culpa da religião em si, mas sim do uso que se faz dela", diz Kara.

O autor de "Tráfico sexual" acompanhou com interesse as leis liberalizadoras da prostituição em alguns países europeus, caso da Holanda. E não parece convencido de que sirvam para erradicar o tráfico de mulheres. "A legalização da prostituição é ruim porque é utilizada como uma tela, uma vitrine atrás da qual se desenvolve o mesmo comércio sexual com escravas nas condições mais terríveis".

Siddharth Kara relata em seu livro seus percursos pelos bairros mais degradados de Bangkok, onde abundam os prostíbulos imundos. Ali, encontram-se autênticas escravas, adolescentes que cobram apenas quatro euros pela hora de sexo, e onde a atmosfera é deprimente e sórdida a extremos inauditos. Também existem prostíbulos suntuosos para os turistas ricos e homens de negócios que chegam ao país em busca precisamente disso. Lugares de luxo para os ricos e barracos para os pobres. Sexo pago para todos. Até os escravos trazidos da Birmânia, de Laos e de Cambodja, para construir rodovias e edifícios de moradias, recebiam um salário minúsculo, "com o qual podiam se permitir o sexo com escravas", indica Kara.

Frente a esse panorama desolador, o autor propõe, mais do que soluções, novos enfoques para o problema. O primordial, em sua opinião, é tornar a vida de traficantes e exploradores muito mais difícil. Que as máfias não operem com a impunidade atual, que sofram perseguição e prisão. Que a colheita anual de escravas seja cada vez mais incerta e escassa. E uma maior conscientização dos clientes? Siddharth Kara considera isso menos factível. Enquanto a oferta exista, a demanda nunca irá decair.

17/06/2010

um basta à besta!


foto do vazamento de petróleo no Golfo do México (também mostrada na barra lateral deste blog) apesar de tudo  tem um certo apelo estético, lembrando um criação impressionista.

A fotografia acima tem também uma certa atmosfera harmoniosa de cores, com os tons de dourado se destacando em meio ao negro.
Mas com relação ao conteúdo das imagens, no caso de um leitor que não soubesse do que se tratava, na foto anterior ele seria meramente remetido a uma figura abstrata, neutra, embora interessante.

Já na foto dos pelicanos não há a inocência de uma suposta abstração, o horror é bem concreto, salta aos olhos: é como se nós humanos estivéssemos impondo, às outras espécies da Terra, o purgatório ou o inferno aqui no planeta mesmo.

Sim, temos que dizer nós,  afinal temos todos parte nesse projeto de agressão e uso desenfreado do mundo que nos rodeia e nos sustenta,  todos nós alimentamos e somos alimentados por esse projeto de civilização do Ocidente, que já teve a sua validade histórica, que já foi revolucionário, necessário e benvindo até um determinado momento de nossa história, mas que agora precisa urgente ser paralisado, redirecionado e superado por um projeto mais pausado, menos acelerado e verdadeiramente fruto da razão - ou  fruto de uma razão menos limitada, ansiosa e presunçosa.

Enquanto isso, a BP,a Shell, Obama, a OTAN, a ONU, o FMI, a UE, o Clube de Bildeberg - e tantos outros guardiães doentios da besta agonizante do capitalismo - enlameam e aprisionam as nossas asas, tal como permitimos que façam com os pelicanos encharcados de petróleo

(mas apesar da gravidade e do horror do tema, não dá pra perder o trocadilho: no fim das contas os pelicanos é que entram pelo cano...) 

16/06/2010

vídeo - o pastor



Se existem algumas coisas (pouquíssimas, infelizmente) que a Rede Globo fez que mereça o nosso aplauso e respeito, certamente duas miniséries entram nessa lista: "Grande Sertão: Veredas" e "Os Maias".
Para lembrar essa última, o vídeo acima traz "O pastor', do grupo português Madredeus, uma das canções que compunham a trilha sonora da adaptação feita plea Globo em cima da obra de Eça de Queiroz.
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E abaixo uma outra versão da canção, executada pelo também português Rafael Bittencourt. Uma performance evidentemente mais ágil e nervosa, aproveitando com sensibilidade e perícia os recursos oferecidos pela guitarra.

A versão 'roqueira' em nehum momento distorce, ou vulgariza, a delicada canção do Madredeus. Bittencourt não faz uma apropriação inconsequente, gratuita, mas reverente - e nem por isso deixa de ser ousada. Pois a sua visceral e gritante interpretação complementa, amplifica o que há de desamparado lamento e de trancendente saudade na pungente performance de Teresa Vergueiro.


Para quem quiser, as letras de
"O pastor' e 'Cuidado' foram postadas abaixo. 

madredeus: cuidado

Acima, no vídeo do Madredeus, há uma outra canção, além de "O pastor". Reproduzo aqui a letra, que fala de partidas, de perda provocada pelo mar, de medo do desconhecido, algo bem próprio do imaginário português, na sua intensa e sempre rememorada vivência com a vastidão do oceano e com as grandes viagens que tanto marcaram a alma do povo português, como tão bem mostrou Miguel Torga n' "O senhor Ventura".
cuidado
Não sei do meu amor
Não sei do meu amado
Não sei aonde foi...
Foi a chamar alguém
Ali ao outro lado
Ai se calhar não vem...
- só tenho medo
Do grande mar

Cuidado!
Não sei do meu amor
Que misterioso fado
Ai que segredos tem...
- só tenho medo
Do grande mar
Cuidado!

Madredeus
Composição: Pedro Ayres Magalhães , Rodrigo Leão,
Gabriel Gomes e Francisco Ribeiro

o pastor

Ai que ninguém volta
ao que já deixou
ninguém larga a grande roda
ninguém sabe onde é que andou

Ai que ninguém lembra
nem o que sonhou
(e) aquele menino canta
a cantiga do pastor

Ao largo
ainda arde
a barca
da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
deixa a alma de vigia

Ao largo
ainda arde
a barca
da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
acordar é que eu não queria.
Grupo Madredeus

mar português, ulisses

E já que estamos a falar do mar, de Portugal, de saudades e lamentos, de partidas, e também do Ulisses, com seu périplo de perigos e saudades pelo mar afora, aqui não poderia faltar o poeta maior de Portugal, uma de mais marcantes vozes.

Temos então dois poemas de Fernando Pesssoa. Ambos fazem parte do poema épico 'Mensagem', no qual Pessoa recria, tal como em 'Os lusíadas' ou na 'Odisséia, toda uma atmosfera épica.

'Mar português' é um retrato fiel dessa paixão, ou desse destino, português pelo mar e pelo longínquo.
O outro poema, que tem por título exatamente 'Ulisses', sugere uma espécie de identificação que o poeta faz do povo português com os gregos, com a inquieta vocação de ambos os povos para o oceano e o desconhecido. O poema lembra, inclusive,a lenda da criação de Lisboa, a Olissipo, por Ulisses, num de seus périplos pelo mar. 

Só para lembrar: neste primeiro poema é que estão os mais populares versos de Pessoa: 'Tudo vale a pena...' 

mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

ulisses
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar nas realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Fernando Pessoa, 'Mensagem', Ed. Círculo do Livro, São Paulo

14/06/2010

o gol e o voto - copa da áfrica I

Embora sobejamente conhecida de todos, nunca é demais lembrar a ora sutil ora descarada manipulação que a mídia faz com a legítima paixão que os brasileiros têm pelo futebol.

Principalmente nestes tempos de Copa do Mundo, quando a espetacularização promovida pelos profissionais de mídia beira uma tentativa de imbecilização do torcedor - até que grau o torcedor se deixa imbecilizar por todo esse aparato da mídia é difícil saber, mas com certeza os profissionais de mídia (seja em nome da sobrevivência ou de uma festiva e acrítica adesão) absorvem em si próprios um pouco de toda essa 'macaquice'.  

De qualquer forma, nada desssa espetacularizção e manipulação é capaz de ofuscar a legítima festa popular que é uma Copa do Mundo, e não apenas para os brasileiros. É preciso respeitar e mesmo comungar com este momento de precária comunhão entre os povos, enquanto construímos uma comunhão maior, ou mais autêntica.

Mas nem por isso precisamos fechar os olhos para a manipulação, o exagero. O acurado texto do Pe Alfredo Gonçalves, 'O gol e o voto' é um ótimo lembrete neste sentido, fazendo um interessante paralelo entre  a arena do futebol e a arena da luta de classes que ocorre aqui no Brasil, já que desde 1994 as nossas elições presidenciais coincidem com uma Copa do Mundo.

o gol e o voto
O gol e o voto, em termos brasileiros, parecem irmãos gêmeos. A cada quatro anos, estreitam de tal modo os laços, que um acaba cruzando o caminho do outro. Não que o povo brasileiro seja exatamente o que se pode chamar de exemplo de participação cidadã, mas porque é obrigado a comparecer às urnas, sob penas de multa e outras complicações. O que, de quatro em quatro anos, nas eleições majoritárias, ocorre juntamente com a Copa do Mundo.

Depois de vibrar com os gols e com as vitórias da seleção, ou de amargar seus reveses e falar mal do técnico, o cidadão é submetido a um desfile políticos: nomes, rostos e discursos que lhe invadem a casa através da televisão e do rádio. Em alguns casos, mais parecem múmias recém-saídas do túmulo; em outros, despejam uma verborréia que não lhes dá tempo sequer de respirar direito; enfim, há também os que enchem o tempo com promessas e expectativas que se revelam verdadeiros balões furados; embora raros, há ainda os que estão vinculados ao cotidiano popular.

Passado o festival verde e amarelo de gols, vem a disputa acalorada pelo voto de cada brasileiro ou brasileira. Nas ruas, as cores da bandeira nacional são substituídas pelas cores dos partidos políticos. No primeiro caso, a população consome e desfruta do espetáculo; no segundo, é forçada a digerir o “compromisso com a democracia e com os destinos da nação”. Duas formas de cidadania?

Poder-se-ia alegar que enquanto no futebol há os jogadores e os torcedores com papéis diferentes e bem definidos, no processo eleitoral todos se envolvem no jogo. O povo é chamado a descer das arquibancadas e entrar em campo. Teoricamente , todos se convertem em protagonistas do exercício democrático, na construção do futuro. Ledo engano ou franca demagogia! Na democracia representativa do mundo ocidental acumularam-se vícios e entraves que impedem um protagonismo efetivo da população. A economia e a política se entrelaçam de tal modo, desenvolvem uma promiscuidade tão profunda, que a riqueza gera poder e o poder é caminho para maior enriquecimento. O círculo de ferro fecha-se sobre poucos privilegiados.

Da mesma forma que o futebol, o jogo das eleições também tem seu gramado, exclusivo de uns poucos, e as arquibancadas, de onde o povo assiste mais ou menos passivo ao desenrolar dos fatos. Em campo estão aqueles que dispõem de poder e de condições financeiras para colocar na órbita da mídia seu nome e imagem, rosto e palavras. Nas arquibancadas, em frente à telinha, o povo torce, aplaude, se irrita ou simplesmente desliga o aparelho. Parafraseando Gilberto Freire, são os senhores da Casa Grande que entram no gramado, enquanto os moradores da Senzala se limitam a ocupar a platéia. Perpetuam-se o domínio, de um lado, e a dependência, de outro.

Tanto o gol como o voto tem seus heróis e sua torcida. Uns participam ativamente do jogo, outros o assistem de longe. Em última instância, votar não é escolher, mas apontar alguns entre os já escolhidos. A escolha é feita previamente entre os donos do poder, da riqueza e da influência. Ao eleitor compete aplaudir ou vaiar aqueles que sobem ao palco do grande teatro do processo eleitoral, vale dizer, que reúnem as condições de subir ao palanque.

Entre os vícios e entraves da democracia dos países ocidentais, está o fato de que as regras democráticas pararam a meio caminho. Surfam nas águas superficiais da política, mas não descem às correntes subterrâneas da economia. De fato, como diz Bertrand Russell (História do pensamento ocidental), os países do ocidente eliminaram as dinastias políticas, muitas vezes sacramentadas pela Igreja, mas não conseguiu fazer o mesmo com as dinastias econômicas. Se por um lado é ilícito ao filho de um presidente receber do pai o legado de sua função, como era o caso da monarquia, por outro é absolutamente natural que ele herde todas as suas riquezas, não importa a maneira como tenham sido adquiridas. O governo “do povo, pelo povo e para o povo” não inclui o domínio sobre o fruto do trabalho de todos, o qual, embora coletivo, segue sendo privadamente apropriado.

Resulta que o poder econômico, de uma forma ou de outra, acaba determinando as funções do poder político juntamente com seus ocupantes. Especialmente nos dias de hoje, em que os gastos com uma campanha eleitoral se elevam a cifras exorbitantes medidos em milhões de reais. Na última hora, o povo é chamado às urnas para legitimar um jogo já definido nos bastidores. Como alguém que lança os dados, mas não domina as regras do jogo. Regras que se limitam, salvo raríssimas exceções, a manter os privilégios das classes dominantes. Garantidos tais privilégios, os diferentes setores da Casa Grande, do alto de seus alpendres, para não falar do Planalto Central, podem ou não distribuir algumas migalhas para a população faminta.
É assim que, após alguns séculos da Independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789), a democracia ocidental não passa de um arcabouço legal do sistema de produção capitalista, de corte liberal ou neoliberal. Pouco ou nada tem a ver com a vida e as necessidades concretas das populações mais pobres. Gols e votos, fantasiados de verde e amarelo, constituem duas formas de “brincar de patriotismo”, onde a euforia e a emoção tendem a deixar cega e surda a razão.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS



13/06/2010

'bloomsday', vitória, ano II




Em junho do ano passado Vitória teve o seu 1º ‘Bloomsday’, na FAFI, numa iniciativa de seu coordenador de Teatro, Wilson Coelho.
Para este ano ainda está sendo pensada a programação. Provavelmnte haverá uma fala de Gilbert Chaudanne, a reexibição do filme 'Bloom, toda uma vida num único dia', de Sean Walsh, apresentado em 2009, e uma roda de conversa informal entre os participantes, durante a qual serão colhidas inclusive idéias e propostas para o ‘Bloomsday’ de 2011, numa muito benvinda socialização do evento.

Para esse ano, também está sendo aventada a exibição de vídeos sobre o ‘Bloomsday’ no Brasil e no mundo. A esse respeito, inclusive, tenho selecionado alguns vídeos na internet e enviado a Wilson, alguns dos quais foram postados acima e abaixo. A seguir, a divugaçaõ do evento enviada por Wilson.

BLOOMSDAY
A Psicanálise & Cultura e a Secretaria Municipal de Cultura de Vitória, através da Escola de Teatro e Dança FAFI convidam para a comemoração do Bloomsday, em homenagem ao livro Ulisses, de James Joyce. O Bloomsday é um feriado comemorado no dia 16 de junho na Irlanda. É o único feriado em todo o mundo dedicado a um livro, excetuando-se a Bíblia. Também é comemorado todos os anos em vários lugares e em várias línguas. Em comum entre os muitos entusiastas e simpatizantes envolvidos nestas comemorações há o esforço por relembrar os acontecimentos vividos pelo personagem Leopold Bloom, durante 16 horas do dia 16 de junho de 1904 pelas dezenove ruas da cidade de Dublin.
ENTRADA FRANCA

Data:  Dia 16 de junho de 2010
Local: Escola de Teatro e Dança FAFI

18:00 h:  Exibição do filme Bloom: toda uma vida em um único dia, de Sean Walsh, 2003
Duração: 113 minutos.
Sinopse:
Inspirado na obra literária clássica do irlandês James Joyce, o filme dirigido por Sean Walsh trata-se de uma história que se passa no dia 16 de junho de 1904 a partir da perspectiva de três personagens, a saber: Stephen Dedalus, Molly Bloom e Leopold Bloom, interpretados, respectivamente, por Hugh O'Conor, Angeline Ball e Stephen Rea.

 
20:00 h:  Apresentação de Gilbert Chaudanne

 
20:30 h: Roda de conversa com o público. Participação de Wilson Coêlho, Cláudia Coser, Roberto Soares Coelho e Rosane Morais

Com relação à minha participação nessa Roda de Conversa, infelizmente não sei se poderei comparecer ao Bloonsday deste ano, em razão de compromisso com a Consulta Popular, da qual falarei mais acima.


  embora o assunto seja o 'ulisses', optei nestes dois vídeos por
 mostrar alguma coisa  de uma outra obra de joyce,ainda
 mais visceral e ousada: o 'finnegan's wake',
 ou 'o redespertar de finnicius'

além disso, vale pelas excelentes performances do 
 grupo officina multimedia, de belo horizonte

um precursor de joyce

Aproveitando a proximidade do Dia de Joyce, ou ‘Bloomsday’, celebrado agora em 16 de junho, Desvelar publica um trecho de ‘A canção dos Loureiros’, do francês Édouard Dujardin.

Essa breve (e incrivelmente desconhecida) novela é considerada por muitos como uma espécie de precursora do famoso ‘fluxo de consciência’, utilizado por Joyce na parte final do ‘Ulisses’ - o não menos famoso monólogo de Molly Bloom.

Com relação a essa surpreendente ‘filiação’, Valery Larbaud, no prefácio da edição de 1295, narra que, num encontro com Joyce, o próprio autor de ‘Ulisses’ confirma ter tomado conhecimento de ‘A canção dos Loureiros’ e , mais, reconhece o diálogo entre as duas obras. Narra Larbaud:

“Foi então que ele me disse que essa forma já havia sido empregada, e de maneira contínua, em um livro de Édouard Dujardin, publicado em plena fase simbolista, e anterior em cerca de trinta anos à composição do Ulisses: A canção dos Loureiros – livro do qual somente o título eu conhecia, obra negligenciada pela maioria dos letrado de minha geração.”

No trecho abaixo o leitor poderá perceber quão evidentes são essas afinidades entre as duas obras. Obviamente que não se trata de colocá-las no mesmo nível - mesmo porque 'A canção...' tem cerca de 110 páginas ao passo que "Ulisses', cerca de 700. O que se deve captar é a incrível semelhança de atmosfera, a surpreendente utilização, por Dujardin, daquela mesma técnica que coloca o leitor 'dentro' da consciência do personagem, e isso tendo sido criado no distante ano de 1888, portanto trinta anos antes de Joyce  ter publicado 'Ulisses'.

Claro que com Joyce  a técnica foi devida e genialmente lapidada, e claro que sequer podemos imaginar algo como um plágio da obra de Dujardin. Mas certamente ocorreu uma inspiração, Dujardin contribuiu para o despertar da genialidade que estava latente em Joyce, através de um desses abundantes diálogos interiores que existem não apenas na literatura  e na poesia, mas nas artes e na cultura em geral, e na própria história da humanidade.

Enfim, há muito o que refletir sobre essas afinidades entre Joyce e Dujardin e entre as odisséias do protagonista de 'A canção...', Daniel Prince, e as de Sthepen Dedalus e Leopold Bloom, o que fica para ocasião mais oportuna.

Por ora, fiquemos com o trecho de 'A canção...', cabendo ainda observar que a afinidade não é entre Daniel Prince  e Molly, mas entre ele e Stephen ou Leopold -  a obra de Dujardin não é vazada num fluxo ininterrupto, sem pontução, sem lógica sintática convencional ou sem nterrupção para diálogos, tal como ocorre no monólogo de Molly em 'Ulisses'. A Dujardin:

“(...)onde está o garçom, que se apresse; nunca se acaba nesses restaurantes, se eu pudesse dar um jeito de comer em casa, talvez o zelador cozinhasse para mim por pouco dinheiro todo dia. Seria ruim. Sou ridículo; seria aborrecido; nos dias que não pudesse voltar para casa, o que aconteceria? Ao menos num restaurante não se fica aborrecido. E o garçom, o que está fazendo? ele chega, traz o linguado. Que peixes estranhos! Este linguado dá para quatro garfadas; há outros que servem para dez pessoas; o molho tem alguma finalidade, é verdade. Comecemos com ele. Um molho da mariscos e camarões seria notavelmente melhor. Ah, a nossa pesca de camarões; a lastimável pesca, e que fadiga, e as pernas molhadas! entretanto eu usava os sapatos amarelos grossos da praça da Bolsa. Nunca terminamos de limpar um peixe; não continuo. Devo cem francos, e mais, ao fabricante de botas. seria preciso tentar aprender os negócios da bolsa, seria prático. Nunca compreendi o que era jogar em baixa; que ganho possível haverá com os valores em baixa? (...) Esse gordo advogado que está comendo deveria me informar. Talvez ele não seja nem advogado nem tabelião. Ah! essas espinhas; não há nada para comer neste linguado; no entanto ele está bom, deixemos estes restos. No banco, viro-me contra o encosto; ainda as pessoas entrando; todos homens; um que parece embaraçado; o espantoso sobretudo claro; já há muitas estações que não se usa um desses. Acabei deixando um apetitoso pedacinho de linguado, bah! não vou passar por ridículo ao pegá-lo. Excelente seria esse pedacinho branco, com as riscas marcadas pelas espinhas. Menos mal, não comerei. limpo os dedos com o guardanapo, um pouco áspero o guardanapo; novo, talvez(...)."
‘A canção dos Loureiros’ (pp 26-28), de Édouard Dujardin, Editora Globo, 1989, tradução de Élide Valarini.


veja tembém
trechos de 'ulisses'
vídeos do bloomsday