Depois de mais de dois meses sem praticamente a presença da poesia neste blogue, uma seleção de poemas focados na vida urbana, uma visita íntima a este caótico, precário e cada vez mais explosivo espaço onde desenrolamos nossas resistências e sobrevivências - exatamente as resistências que tornam este nosso espaço também cada vez mais fascinante, sedutor e promissor.
De início, dois poemas bem parecidos na temática, e não só na atmosfera ou cenário, os excelentes ‘Constelação’, de Carlos Ernesto, e ‘As filhas da noite’. Este último é de José Antônio Cavalcanti, editor do blog “Poemargens”. Do poeta Zantonc, como o próprio se autodenomina, publicamos também a última parte da trilogia ‘Ar, margens, dons’.
Quanto a Ernesto, quatro poemas este mês. DESVELAR já publicou, em dezembro, o seu ‘Poema inexato a artur rimbaud’. Vale registrar que os seus poemas são produto de uma sensibilidade e um talento precoces, foram escritos por Ernesto dos 14 aos 18 anos e fazem parte do ‘Flutuais’, editado artesanalmente em 1985.
De Waldo Motta, alguns poemas talvez não falem expressamente do cenário urbano, talvez uma fala mais existencial, mas não deixa de ser uma fala que brota no meio e em função da vivência urbana - e de suas violências. Permitindo-me aqui um vôo da imaginação, vejo uma íntima complementação entre Waldo e Ernesto: como se os irados e desdenhosos clamores de Ernesto em ‘Nosso tempo’ fossem respondidos pelo pacificado solilóquio de ‘O labor discreto’ - aliás, Waldo parece também dialogar com um próprio poema seu, o 'Receituário..' . Ou como se, numa divertida sobreposição de vozes, Ernesto, em ‘Noturno’, estivesse a confirmar com ironia um poema de Waldo, o ‘Limiar’ (publicado em janeiro), como se estivesse a descrever, com impiedosa frieza e sarcasmo, o ‘personagem’ do poema.
Vicente Filho não esquece sua marca registrada (aquela ironia mesclada de melancolia já apontada aqui, num comentário publicado em novembro) e no poema 'no shopping' sai destilando-a pelos sedutores corredores dos shoppings - esses assépticos templos do consumo, ninhos da apatia e do deslumbrado conformismo, a esconder a solidão, o medo e a indiferença, em meio a multidões, vitrines e luzes multicoloridas... e, claro, em meio a mercadorias, milhares delas, sempre renovadas e sempre se insinuando aos consumidores, como se fossem uma real e inadiável necessidade em suas vidas; e depois VIcente num belo e convincente contraponto aponta o dedo para as feridas do mundo de verdade: ‘fora do shopping’.
Trago também mais um fotopoema de minha autoria, ‘Café da manhã de domingo’. A foto, eu a fiz creio que em 2000, quando ainda aprendia a fotografar. É fácil reparar nas falhas: os pés do garoto cortados, a imagem meia embaçada, com o objeto mal focado. O poema propriamente dito, creio que o escrevi um ano depois, e o interessante é que muito do poema repousa nas falhas técnicas da foto, quando jogo com o corte do garoto e da foto, com o ‘desfocado’ da imagem e do olhar do personagem, mas a interação saiu de forma extremamente espontânea, sem a preocupação de tentar justificar as falhas da foto - um desses ‘misteriosos’ desvelamentos da criação artística. Registro ainda que a foto foi tirada próximo a uma padaria do centro de Vitória, a ‘Pão Gostoso’, mas de resto poderia ser obtida em qualquer lugar da cidade, são personagens que abundam por aí - desde que ‘fora do shopping’, é claro.
Assim como também estão em toda parte da cidade sinais de uma explosão/implosão cada vez mais iminente. Como, aliás, também já alerta o poema ‘Receituário para racistas...’, de Waldo Motta, com suas incendiárias invocações de 'um angu' a respingar para todos os lados e em cima de todo mundo.
De início, dois poemas bem parecidos na temática, e não só na atmosfera ou cenário, os excelentes ‘Constelação’, de Carlos Ernesto, e ‘As filhas da noite’. Este último é de José Antônio Cavalcanti, editor do blog “Poemargens”. Do poeta Zantonc, como o próprio se autodenomina, publicamos também a última parte da trilogia ‘Ar, margens, dons’.
Quanto a Ernesto, quatro poemas este mês. DESVELAR já publicou, em dezembro, o seu ‘Poema inexato a artur rimbaud’. Vale registrar que os seus poemas são produto de uma sensibilidade e um talento precoces, foram escritos por Ernesto dos 14 aos 18 anos e fazem parte do ‘Flutuais’, editado artesanalmente em 1985.
De Waldo Motta, alguns poemas talvez não falem expressamente do cenário urbano, talvez uma fala mais existencial, mas não deixa de ser uma fala que brota no meio e em função da vivência urbana - e de suas violências. Permitindo-me aqui um vôo da imaginação, vejo uma íntima complementação entre Waldo e Ernesto: como se os irados e desdenhosos clamores de Ernesto em ‘Nosso tempo’ fossem respondidos pelo pacificado solilóquio de ‘O labor discreto’ - aliás, Waldo parece também dialogar com um próprio poema seu, o 'Receituário..' . Ou como se, numa divertida sobreposição de vozes, Ernesto, em ‘Noturno’, estivesse a confirmar com ironia um poema de Waldo, o ‘Limiar’ (publicado em janeiro), como se estivesse a descrever, com impiedosa frieza e sarcasmo, o ‘personagem’ do poema.
Vicente Filho não esquece sua marca registrada (aquela ironia mesclada de melancolia já apontada aqui, num comentário publicado em novembro) e no poema 'no shopping' sai destilando-a pelos sedutores corredores dos shoppings - esses assépticos templos do consumo, ninhos da apatia e do deslumbrado conformismo, a esconder a solidão, o medo e a indiferença, em meio a multidões, vitrines e luzes multicoloridas... e, claro, em meio a mercadorias, milhares delas, sempre renovadas e sempre se insinuando aos consumidores, como se fossem uma real e inadiável necessidade em suas vidas; e depois VIcente num belo e convincente contraponto aponta o dedo para as feridas do mundo de verdade: ‘fora do shopping’.
Trago também mais um fotopoema de minha autoria, ‘Café da manhã de domingo’. A foto, eu a fiz creio que em 2000, quando ainda aprendia a fotografar. É fácil reparar nas falhas: os pés do garoto cortados, a imagem meia embaçada, com o objeto mal focado. O poema propriamente dito, creio que o escrevi um ano depois, e o interessante é que muito do poema repousa nas falhas técnicas da foto, quando jogo com o corte do garoto e da foto, com o ‘desfocado’ da imagem e do olhar do personagem, mas a interação saiu de forma extremamente espontânea, sem a preocupação de tentar justificar as falhas da foto - um desses ‘misteriosos’ desvelamentos da criação artística. Registro ainda que a foto foi tirada próximo a uma padaria do centro de Vitória, a ‘Pão Gostoso’, mas de resto poderia ser obtida em qualquer lugar da cidade, são personagens que abundam por aí - desde que ‘fora do shopping’, é claro.
Assim como também estão em toda parte da cidade sinais de uma explosão/implosão cada vez mais iminente. Como, aliás, também já alerta o poema ‘Receituário para racistas...’, de Waldo Motta, com suas incendiárias invocações de 'um angu' a respingar para todos os lados e em cima de todo mundo.
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Enfim, aí estão algumas explosões do verbo a tentar retratar as explosões e implosões de cada dia na cidade.
Mas que as potencialidades dessa explosão sejam, sim, canalizadas para a destruição do que essa ordem tem de ruim, ultrapassado, desumano e... bárbaro, rumo à construção de algo libertário, decente. Porque, afinal, alguma explosão vai com certeza acontecer, e afinal é melhor alguma explosão real do que essas pequenas e disfarçadas explosões e implosões do dia a dia.
Pois o risco é que fiquemos apenas nessas pequenas e fragmentadas explosões, que vão aos poucos instalando a barbárie nas cidades e nas nossas vidas, e aos poucos vão fazendo com que aceitemos a barbárie como algo natural. O risco é, também, que essas implosões do dia a dia sejam cada vez mais utilizadas pelos poderes do Estado, que sejam conduzidas ou manipuladas rumo à barbárie, barbárie essa que contribui exatamente para a manutenção da velha ordem: violência, consumismo, medo, existências deprimidas e sufocadas, até que se instale de vez uma instabilidade quase total: nas ruas, no trabalho, em casa, no trânsito.
Pois claro que tudo isso é muito interessante para o atual sistema de poder, afinal seria a ordem feita de desordem, seria a ordem da instabilidade, a ordem que deixaria a todos e todas assustados, reacionários e à mercê das exigências e promessas do Poder de plantão, promessas e exigências que com certeza sempre virão vazadas num tom de urgência e de esperança; ou seja, primeiro cria-se um caos, depois exigem-se sacrifícios e renúncias da massa assustada e, ao mesmo tempo, acena-se com mudanças e soluções que sempre estão um pouco mais além do presente, num eterno recomeço, com mais caos e mais sustos e renúncias, e mais projetos de mudanças e soluções... Enquanto isso, a barbárie preenchendo cada dia mais os nossos espaços, ao mesmo tempo em que a ordem anestesia-nos com seus corredores de shoppings atulhados de bugigangas, eletrônicas ou não, e anestesia-nos com vários outros narcóticos, internéticos ou não.
E que a explosão seja como uma resposta àquele grito lançado há décadas por Drummond, quando lamentava não se poder ‘dinamitar a ilha de manhattan’. Que nos permita um recomeço, onde se possa enfim juntar todo mundo, misturar todos e todas num novo, libertário e grande angu: prostitutas, jovens mendigos, bêbados, poetas, os deslumbrados dos shoppings, mercadores e marcados. Onde afinal todos nos encontremos livres do domínio do medo ou da indiferença, quando então as pessoas não precisarão mais se comportar como almas de plástico a se refugiar em shoppings, a fugir do verdadeiro mundo e da verdadeira vida, como se assim pudessem de fato deixar o ‘mal de lado’, quando na verdade o que se deixa de lado é o encontro com a riqueza e a fragilidade, com a coragem e o mistério de cada um.
Que ela nos permita superar a dicotomia entre o shopping e as ruas, para que a rua seja novamente o lugar de todos e todas, que não sejam mais sinônimo de medos, mendicâncias e merdas nas calçadas, nem que haja mais necessidade de existir coisas e espaços como shoppings, ou que pelo menos eles não sejam mais sinônimo de refúgio, de guetos e de fuga do mundo, que os novos espaços de lazer sejam realmente lugar de encontro entre pessoas.
E que essa explosão venha logo, venha realmente a tempo de evitar que essa ordem já degenerada nos transforme em autômatos a habitar nos bueiros da história, assépticos, saciados e moderninhos, mas assustados como ratos e com alma de plástico; que a explosão provoque em nosso ‘louco tempo’ uma transformação bastante diferente daquele mórbido roteiro que o jovem Ernesto retratava, já em 1978, no seu vibrante poema ‘A metamorfose’; aproveitando a metáfora dos roedores: para que não tenhamos a incômoda sensação de viver como ratos num mundo transformado num imenso e policiado ‘parque de araque’, tal como no poema de Vicente Filho, ‘no shopping’.
E que esses e muitos outros poetas, com as suas explosões do verbo, sigam cumprindo uma tarefa que também é da poesia, que é a de alertar para o perigo da morte da alma, da ausência da lucidez, do sonho e da ousadia, e a de convidar ou convocar para as reais e pulsantes possibilidade de um outro mundo e de uma outra vida. Que continuem com seus cantos incendiários e indignados, a colaborar para que esses nossos espaços de resistência, estas nossas cidades, além de fascinantes e envolventes, mantenham-se também como promessa de resgate e redenção.
Mas que as potencialidades dessa explosão sejam, sim, canalizadas para a destruição do que essa ordem tem de ruim, ultrapassado, desumano e... bárbaro, rumo à construção de algo libertário, decente. Porque, afinal, alguma explosão vai com certeza acontecer, e afinal é melhor alguma explosão real do que essas pequenas e disfarçadas explosões e implosões do dia a dia.
Pois o risco é que fiquemos apenas nessas pequenas e fragmentadas explosões, que vão aos poucos instalando a barbárie nas cidades e nas nossas vidas, e aos poucos vão fazendo com que aceitemos a barbárie como algo natural. O risco é, também, que essas implosões do dia a dia sejam cada vez mais utilizadas pelos poderes do Estado, que sejam conduzidas ou manipuladas rumo à barbárie, barbárie essa que contribui exatamente para a manutenção da velha ordem: violência, consumismo, medo, existências deprimidas e sufocadas, até que se instale de vez uma instabilidade quase total: nas ruas, no trabalho, em casa, no trânsito.
Pois claro que tudo isso é muito interessante para o atual sistema de poder, afinal seria a ordem feita de desordem, seria a ordem da instabilidade, a ordem que deixaria a todos e todas assustados, reacionários e à mercê das exigências e promessas do Poder de plantão, promessas e exigências que com certeza sempre virão vazadas num tom de urgência e de esperança; ou seja, primeiro cria-se um caos, depois exigem-se sacrifícios e renúncias da massa assustada e, ao mesmo tempo, acena-se com mudanças e soluções que sempre estão um pouco mais além do presente, num eterno recomeço, com mais caos e mais sustos e renúncias, e mais projetos de mudanças e soluções... Enquanto isso, a barbárie preenchendo cada dia mais os nossos espaços, ao mesmo tempo em que a ordem anestesia-nos com seus corredores de shoppings atulhados de bugigangas, eletrônicas ou não, e anestesia-nos com vários outros narcóticos, internéticos ou não.
E que a explosão seja como uma resposta àquele grito lançado há décadas por Drummond, quando lamentava não se poder ‘dinamitar a ilha de manhattan’. Que nos permita um recomeço, onde se possa enfim juntar todo mundo, misturar todos e todas num novo, libertário e grande angu: prostitutas, jovens mendigos, bêbados, poetas, os deslumbrados dos shoppings, mercadores e marcados. Onde afinal todos nos encontremos livres do domínio do medo ou da indiferença, quando então as pessoas não precisarão mais se comportar como almas de plástico a se refugiar em shoppings, a fugir do verdadeiro mundo e da verdadeira vida, como se assim pudessem de fato deixar o ‘mal de lado’, quando na verdade o que se deixa de lado é o encontro com a riqueza e a fragilidade, com a coragem e o mistério de cada um.
Que ela nos permita superar a dicotomia entre o shopping e as ruas, para que a rua seja novamente o lugar de todos e todas, que não sejam mais sinônimo de medos, mendicâncias e merdas nas calçadas, nem que haja mais necessidade de existir coisas e espaços como shoppings, ou que pelo menos eles não sejam mais sinônimo de refúgio, de guetos e de fuga do mundo, que os novos espaços de lazer sejam realmente lugar de encontro entre pessoas.
E que essa explosão venha logo, venha realmente a tempo de evitar que essa ordem já degenerada nos transforme em autômatos a habitar nos bueiros da história, assépticos, saciados e moderninhos, mas assustados como ratos e com alma de plástico; que a explosão provoque em nosso ‘louco tempo’ uma transformação bastante diferente daquele mórbido roteiro que o jovem Ernesto retratava, já em 1978, no seu vibrante poema ‘A metamorfose’; aproveitando a metáfora dos roedores: para que não tenhamos a incômoda sensação de viver como ratos num mundo transformado num imenso e policiado ‘parque de araque’, tal como no poema de Vicente Filho, ‘no shopping’.
E que esses e muitos outros poetas, com as suas explosões do verbo, sigam cumprindo uma tarefa que também é da poesia, que é a de alertar para o perigo da morte da alma, da ausência da lucidez, do sonho e da ousadia, e a de convidar ou convocar para as reais e pulsantes possibilidade de um outro mundo e de uma outra vida. Que continuem com seus cantos incendiários e indignados, a colaborar para que esses nossos espaços de resistência, estas nossas cidades, além de fascinantes e envolventes, mantenham-se também como promessa de resgate e redenção.
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Textos relacionados: ‘ocupar as ruas, manter a chama’, ‘paisagem urbana, humana (I) e ‘amamos muito tudo isso’
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Por fim, vale registrar que nenhum dos poetas, comentados neste texto, restringe a sua fala a apenas cantos engajados ou indignados com a miséria social, afetiva, intelectual ou espiritual, imposta aos homens e mulheres pela lógica do atual modelo de civilização; a esse respeito leia também o texto um pouco de mares e silêncios.
Roberto Soares Coelho
Roberto Soares Coelho
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