09/03/2010

de profundis


[...] “De profundis. Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes dentro de mim? Por que me fizeste separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites, ajudai-me, eu só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meu dedos e encaminha-se para a morte serenamente e eu nada posso fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto que passa, sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não saberei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco e o que me resta para viver no entanto continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim? Que não sou nada, dai-me o que preciso. Deus dai-me o que preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas, vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver em lagrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxilio que eu não tenho pecados, das profundezas chamo por vós e nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, Deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou nada,das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós”.

Clarice Lispector
(perto do coração selvagem, 1944)
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Um impressionante canto vindo das profundezas de um coração. Comovente apelo de uma consciência desolada, fragmentada, em busca da unidade perdida. É o brado de um ente finito querendo se aconchegar novamente no Infinito.
Esse trecho da famosa obra de Clarice Lispector é baseado no não menos famoso Salmo 130.

Mas aqui é claramente um brado desesperado, um lamento que se sabe fadado ao fracasso. Um lamento próprio do poeta ocidental, que se sente desgarrado da Fonte, do todo, que foi levado pela História e pela Razão à orgulhosa condição ter que se distanciar do Ser e do Sagrado para melhor se exercer como instrumento da Arte e da Razão, e para essa mesma Razão melhor exercer o seu domínio sobre o Real.

Por isso talvez seja ainda mais comovente do que o salmo original. Comove o tom cru, bruto, com que a autora reconhece seu desespero e seu desgarramento. Ou por outra, com base nos termos que vimos usando até agora: comove a forma com que o Espírito manifesta-se através do Verbo, ao testemunhar o desamparo e a perplexidade de um de seus frutos privilegiados.

No limite, é o lamento do próprio Espírito, já aquele que lamenta, o homem, é a voz do Infinito no tempo e no mundo terreno, já que o Infinito celebra e apreende a si próprio através do singular ser finito que é o homem, através do olhar humano.. Somente o homem pode lamentar assim a dor da separação, o desamparo de estar só, desgarrado da própria Fonte. Às coisas e aos animais não é dado esse atributo.

O que está expresso, então, nessa admirável manifestação do Verbo é muito mais do que aquela condição de ateu arrependido e saudosista, própria do poeta ocidental, abordada ao falarmos do poema de Ernesto.
Do que trata é de saudade e do anseio do finito pelo Infinito e do próprio. Infinito por si mesmo. Do que se trata é da manifestação do próprio Infinito através do Verbo, da palavra forjada pelos homens. Palavra que ao ser criada teve como um de seus fundamentos também a apreensão e celebração do Mistério, e não apenas a mera comunicação e interação entre os homens ou um mero domínio do Real.

Nessa linha, tanto quanto os cânticos, a música e a oração, um poema é em última instância mais um momento de apreensão e celebração do Mistério, da Presença, da Fonte – seja ele um poema canto vívido e colorido, um brado indignado e humanista, seja ele um tocante e profundo lamento como este de Clarice.

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