29/03/2010

fiat lux: e deus se faz

no princípio eram trevas
meus olhos abriram-se
e fizeram a luz

no escuro
uma pequena luz
é maior que toda a escuridão
que arranha meus olhos
como a luz era boa
enxerguei nela um homem

vicente gonçalves
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Vicente Filho abre em grande estilo e ousado tema: numa releitura do Gênesis bíblico, poetiza com admirável intuição nada mais nada menos do que o parto do próprio Deus que, ao se fecundar e se parir, dá origem ao próprio Ser, que ao final da contas é Ele próprio. Ao fim, bastante perspicaz a identificação da luz com o homem, criatura predileta do Criador.

Luz e homem, homem iluminado que, habitado pelo Espírito, ao final retornará ao próprio Criador, tendo como projeto maior se cumprir como os olhos do próprio Deus. Nesse caminhar, nessa jornada ao longo dos milênios o homem se tornando cada vez mais luz, lucidez, assumindo-se e elevando-se da matéria puramente inanimada ou animal para ascender-se como Espírito, como Luz, parte constituinte da própria Fonte, do próprio Deus.

E assim, o homem nada mais é do que Deus em processo, é Deus se construindo a duras penas ao longo dos milênios e da História, abdicando de ser apenas Espírito Absoluto para se tornar finito, frágil, aberto - o alemão Hegel trouxe para a Filosofia profundas considerações sobre essa Dialética entre Espírito e Natureza.

Mas - numa abordagem menos metafísica e mais poética, ou mística -, esse processo de se transmutar em finito e fragilidade é também uma forma de Deus admirar-se a si próprio, de se louvar a si próprio através dos olhos e dos êxtases do homem, enfim, de se testemunhar a si próprio enquanto Criação e criatura.
Assim, nessa troca mútua e constante pelos séculos dos séculos, homem e Deus se confundem numa só realidade, num só advento, o homem aos poucos apreendendo que o que lhe cabe ao fim de tudo é buscar agir, viver e sentir como os olhos da Fonte, como aliás já cantava um antigo poeta da Galiléia: “Vós sois os olhos do mundo”.

O poeta Vicente Filho tem essa rara capacidade de captar com singela essência - em versos despojados e aparentemente simples - a poderosa e complexa realidade que nos rodeia, da qual somos feitos e para a qual somos feitos.

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