28/03/2010

que vais fazer, Deus?

que vais fazer, Deus, se eu morrer?
eu sou teu cântaro (e se eu me quebrar?)
eu sou tua água (e se eu me estagnar?)
eu sou teu hábito e sou teu ofício;
sem mim, tu perderias a razão de ser...

depois de mim, não terás casa em que
palavras próximas e tépidas te acolham
vai cair de teus fatigados pés
a sandália macia que sou eu.

teu largo manto deixar-se-á cair.
teu olhar, que com minhas faces eu
aqueço, como se com almofadas,
virá de longe a procurar por mim
- e ao pôr-do-sol se porá
no colo de estranhas rochas.

que vais fazer, Deus? estou preocupado.

rainer maria rilke (livro de horas, ed. civilização brasileira, 1994)

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Esse poema de Rilke é como um eco, uma pereita confirmação daquilo que foi dito há pouco: com sua costumeira mescla de delicadeza e transcendência, Rilke faz uma verdadeira sagração da simbiose entre Deus e homem.

Rilke dispensa comentários muito longos, mesmo porque a sua poesia já foi comentada aqui no Desvelar, em julho de 2009 (silêncios e desvelos I e silêncios e desvelos II).
De qualquer forma registre-se mais uma vez a admirável e reverente singeleza com a qual Rilke aceita e celebra a condição humana de ser ao mesmo tempo fruto e suporte de Deus - poema que se supera enquanto tal, transmutando-se numa verdadeira, lúcida e profunda oração àquilo que existe, autêntica e suficiente simbiose entre Ser e Verbo, entre a árvore e o fruto: o ser se oferecendo enquanto Verbo, o Verbo percebendo e nomeando o Ser, e se reconhecendo enquanto fruto do Ser.

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