28/03/2010

os vestígios

OS VESTÍGIOS DA MORDIDA no nenhures.

Também a isso
tens de combater
a partir daqui


paul celan
(fiaposóis, ed. tempo brasileiro, 1985)

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Paul Celan vai além das dúvidas e ambiguidades de Ernesto e Waldo. Não deixa nenhuma margem para qualquer espécie de comunhão com o sagrado, não se coloca a disposição para tocar, ‘morder’ o longínquo e o mistério
O fato é que Celan vivenciou por demais - ou introjetou excessivamente - o aspecto áspero da vida e do mundo; em parte pelo fato de a sua mãe ter sido assassinada num campo de concentração nazista, em parte pela sua sensibilidade de poeta visceralmente comprometido com o seu tempo e, assim, ele não elabora uma obra crente, ou por demais poética, para ele não fazia sentido poetizar o que não é poetizável.

Se não há em Celan espaço para a mera idolatria do belo, muito menos o há para a Utopia e para o Sagrado. O nenhures, o intangível, o longínquo, recusado e combatido pelo poeta, tanto pode significar a utopia proposta pela Razão ou pela Revolução, quanto a morada do Sagrado, o desvelamento de uma transcendente Presença, de uma suposta Fonte, Deus – tudo isso tem de ser esquecido, ignorado, ‘combatido’ a partir deste mundo e por causa deste mundo, ou das ‘cabeças monstruosas’ que dirigem este mundo, tal como diz em outro de seus poemas:

‘as cabeças, monstruosas, e a cidade
que elas constroem, em busca da
felicidade’


Aparentemente, esse combate e recusa ao sagrado por parte de Celan seria o equivalente da posição marxista de ver a religiosidade meramente como fonte de alienação, o famoso ‘ópio do povo’ - ou Deus como mera e complexa criação das subjetividade humana, para responder aos seus anseios e angústias, medos e impotências frente ao Real.

Mas aqui há uma situação mais complexa, Celan não reduz a religiosidade e a transcendência a apenas um narcótico, uma ilusão existencial. E não podendo recusar totalmente a possibilidade e a necessidade de transcendência para o homem, Celan também é atravessado por aquele mesmo dilema do qual falamos há pouco, aquela ambiguidade que envolve alguns poetas modernos na sua relação com o sagrado: não o nega, mas também não o assume, não o apreende mas também não consegue ignorá-lo.

Uma inequívoca mostra da presença desse dilema na obra de Celan é um poema já publicado aqui no Desvelar, no por ocasião do natal de 2008: apesar de um tom levemente irônico, o poema nos passa a impressão daquela mesma saudade de uma fé ou de uma crença que nunca existiram integralmente, daquela mesma sensação de ‘remorso’ da qual fala Waldo Motta, daquela mesma impressão de estar ao mesmo tempo próximo e distante do Sagrado, dentro e fora do divino, da qual fala Ernesto.

E no caso de Celan as suas dúvidas, inquietudes, dilemas, levaram-no realmente a uma poesia visceral, contribuindo talvez para literalmente destruí-lo. Afinal, o seu suicídio, em 1970, certamente que em parte deve ter sido provocado pela sua incapacidade de crer numa possibilidade de redenção para a humanidade, para a história e para a própria condição humana.
Celan não logrou ou não quis essa crença, fosse através da ação política, da beleza artística ou mesmo da apreensão do sagrado, do divino que há na história e no mundo, e que nos cabe desvelar e mesmo ajudar a construir, cada um da forma que puder.
O poeta não conseguiu acreditar que seria possível para o poeta resistir ao mal e ao erro espalhado no mundo pelas ‘cabeças monstruosas’; não vislumbrou que é possível e necessário, não somente ao poeta mas a qualquer indivíduo, contribuir para extirpar do mundo as condições sociais objetivas que sustentam essas ‘cabeças monstruosas’, mesmo que essa vitória não se dê ao longo de nosso breve tempo de vida.

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