ORVALHO. e eu estava deitado contigo, ó tu
no meio do lixo
enquanto uma lua suja
nos lançava respostas
nós nos esmigalhamos separando
e novamente embolamos num só:
o Senhor partiu o pão
o pão partiu o Senhor
paul celan
(fiaposóis, ed. tempo brasileiro, 1985) ********************* Celan, novamente radical, novamente visceral. Se no poema anterior, Cecília advoga em nome de coisas inanimadas e movimentos variegados, Celan o faz em nome do próprio homem, aponta o dedo para o ‘Senhor’ em razão de sua imperícia em providenciar algo tão básico: suprir de pão àqueles a quem ofereceu tanto.
Afinal, haveria uma insanável contradição ontológica entre oferecer o mundo, a beleza, o existir, e principalmente fazer do homem os olhos do divino, centelha do Espírito, e ao mesmo tempo não dar ao homem - ou pelo menos não dar a todos os homens - as condições concretas para fruir adequadamente de tudo isso e, principalmente, para se cumprir enquanto tarefa, enquanto partícipe do parto da criação.
Se a distante estrela de Cecília se acha cansada de sua própria e vasta órbita pelo cosmos, esquecida dos homens e pelos homens, aqui, até a nossa vizinha lua é suja, encardida, e não responde com brilhos e inspiração a poetas embevecidos; afinal o que a lua testemunha é por demais sórdido, na visão do poeta.
E se Cecília faz breve menção aos pobres com o seu punhos secos a exigir o pão que não lhes chega, Celan faz dessa ausência de pão o motivo central de seu cortante e breve poema-acusação. Não faz um vibrante inventário dos existentes, escolhe como cenário de sua acusação tão somente o lixo, os detritos, o resto, os escolhos da humanidade.
Para ele, o que há para observar é o conflito pelo pão, que ‘esmigalha e embola’ os homens. O pão ‘partido pelo Senhor’ não dá para todos. E assim a luta pelo pão divide a humanidade e negaria o caráter de sagrado do mundo, ‘parte o Senhor’ ao meio.
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