09/03/2010

carta

eu sim - mas a estrela da tarde que subia e descia o céu
[cansada e esquecida?
mas os pobres, batendo às portas, sem resultado, pregando a noite
[e o dia com seu punho seco?
mas as crianças, que gritavam de coração alarmado: "por que
[ninguém nos responde?"
mas os caminhos, mas os caminhos vazios, com suas mãos
[estendidas à toa?
mas o santo imóvel, deixando as coisas continuarem seu rumo?
e as músicas dentro de caixas, suspirando de asas fechadas?

ah! - eu, sim - porque já chorei tudo, e despi meu corpo
[usado e triste
e as minhas lágrimas o lavaram, e o silêncio da noite o enxugou.
mas os mortos, que dentro do chão sonhavam com pombos leves
[e flores claras
mas os que no meio do mar pensavam na mensagem que a praia
desenrolaria rapidamente até seus dedos...
mas os que adormeceram, de tão excessiva vigília - e eu não sei
[mais se acordarão...
e os que morreram de tanta espera... - e que nem sei se foram
[salvos...

eu, sim. mas tudo isso, todos esses olhos postados em ti, no alto
[da vida
não sei se te olharão como eu
renascida de mim, e desprovida de vinganças
no dia em que precisares de perdão

cecília meirelles
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Em Carta, Cecília Meirelles se assume como porta-voz da fragilidade e da precariedade, não apenas do humano, mas de toda e qualquer realidade finita.
Mas essa sua rebeldia e acusação contra o Infinito, provocada exatamente pela sua compaixão pelo finito, deve ser lida como uma celebração tanto do finito quanto do Infinito, tanto do Eterno quanto do provisório - se bem que uma celebração negativa, é verdade.

Pois ao perceber (e se comover com) o secreto lamento e perplexidade das coisas, Cecília no fundo o que faz é um impressionante inventário do colorido e da diversidade, da palpitação e da delicadeza que habita no mundo que é ofertada pelo Infinito - ou riqueza na qual o Ser se desdobra. São tantas criaturas, são tantos inatantes, frutos pendentes da árvore. E o único que pode ter olhos e compaixão para todos eles é exatamente o fruto humano.

Donde se pode entender que, ao fazer a sua acusação, a poeta está apenas cumprindo-se como olhos do divino, pois na fala da poeta é o próprio Infinito que fala, é o Infinito que, transmutado no finito humano, testemunha seus próprios desdobramentos, os seus quase infinitos entes - ou sua criação, para quem preferir.
É o Infinito, a Fonte, Deus, o Ser, a Presença, quem, através do poético e profundo olhar humano, permite a esse mesmo humano perceber as falhas, os limites que ainda existem e sempre existirão no meio do mundo.

E no processo de nos permitir esse olhar, o mesmo Infinito também nos insinua, ou nos abre a possibilidade, ou nos coloca a tarefa de, enquanto frutos privilegiado que somos, realizarmos uma intervenção e uma participação generosas, cuidadosas, praticarmos um real envolvimento na transformação e no aperfeiçoamento da criação, do mundo, dos entes e, por conseqüência, do próprio Infinito, do próprio Espírito.
Afinal, se como diz Hegel o Espírito negou-se a si mesmo para se cumprir como Natureza, como finito e imperfeito, nada mais lógico que convoque suas criaturas privilegiadas para ajudarem-no a se aperfeiçoar, para colaborarem, co-operarem no sentido de que o Espírito retorne a si mesmo. Ou para quem preferir a Bíblia: “Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto ato o presente dia” (Romanos, 8-22).

E neste processo de co-operarem no retorno do Espírito a si mesmo, o finito que somos nós estará se alçando a um nível mais elevado de compreensão e vivência, estaremos nos tornando de fato parte, centelha do Espírito.
É neste sentido que o poema-acusação de Cecília pode ser lido como uma singela, entre milhares, co-operação no sentido de continuarmos o difícil e fascinante parto da criação.

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