22/12/2008

"então é natal, e ano novo também..."


Sabemos que a época natalina, há muito tempo, não é mais vivida apenas como momento maior da cristandade. O natal se tornou para todas as pessoas sinônimo de solidariedade, de esperança, de perdão e superação de conflitos. Em parte, talvez pelo fato de ser comemorado tão próximo ao Ano Novo das sociedades ocidentais. A proximidade das datas fortaleceria naturalmente o sentimento de renovação, de fim de um ciclo e início de outro (tal como insinuado no verso da famosa música de Lennon, que escolhemos como título desta postagem). O sagrado e o profano. A memória religiosa e a promessa terrena se encontrando. A celebração anual da esperança de que um dia a Grande Festa ocorra aqui e agora no reino dos homens.

Nem mesmo esta época de desenfreado consumismo e de indiferença e medo entre as pessoas é capaz de desvirtuar ou eliminar completamente esse momento de celebração e de resistência, que chamamos de espírito natalino.

Trazemos então três poemas, tendo como motivo a figura do Cristo, esse que, até hoje no Ocidente, ainda é o símbolo dessa crença, celebração e resistência. Poemas aparentemente amargos, pessimistas, até mesmo irônicos. Mas nem por isso menos tributários da crença e da possibilidade da Grande Festa, nem por isso menos respeitosos para com essa figura-símbolo. Ao contrário, é da sua crença que brota a sua aparente amargura e ironia.


o lamento do ressuscitado
não nasci, não cresci
nem morri de verdade...
até hoje!!!
chorei assim mesmo
sem mais sangue nas veias

é muito complicado ir além
a porta não abre, não abre...
forçá-la é tentativa vã
e pela fresta a fé não vem

nada do que dei fez a festa
o trunfo, sem triunfo
é só um defunto...
vicente filho




fotopoema: madeiro milenar


ei, companheiro crucificado
2000 já veio e já se foi admirado
da abundância de brilhosas bündchens
de bytes & gates, de gatunos & wall streets
e de restos de gente humana exilada
nas ruas capitais
deitadas em escadarias de catedrais salpicadas de bosta


cruz credo! credo em cruz! não
se
acenderam
ainda
as
luzes
de
tuas
árvores

(poema e fotografia de roberto soares - a foto foi tirada em ponta da fruta, vila velha, es)



UMA VEZ bem que o escutei
ele mesmo lavou o mundo, limpou tudo
sem ser notado, a noite toda
efetivamente

Uno e infinito
aniquilado
ilhado

Brilho havia. Luz. Salvação.
paul celan Junto com este poema de Celan, pretendia publicar os comentários de Flávio Kothe, o seu tradutor aqui no Brasil (em sua tradução de “Poemas”, publicada pela Tempo Brasleiro, Kothe comenta todos os poemas de Celan). Mas como estou em viagem não tenho o livro em mãos.
Assim, vou tentar transmitir de memória o essencial dos comentários de Kothe e quando possível publicá-los-ei na íntegra.

É com uma forte ironia que Celan relembra o breve tempo em que pode “escutar”, em que pode acreditar numa redenção da humanidade advinda da fé ou da abnegação cristã. Mas apesar da gradual descrença e do desespero - mesmo em relação à ação política e à própria possibilidade da vida (Celan se matou em 1970) - a figura do Messias mantém o seu fascínio para Celan: o Cristo como poeta que assume para si o louco e absurdo projeto de se imolar em nome de uma tarefa que ele sabia fadada ao fracasso, ao menos em termos imediatos. Mas mesmo assim se aniquilando, se ilhando, anônimo e desamparado, em nome dessa absurda escolha, em nome do projeto de ligar o homem ao divino, de despertar o que havia de divino no homem e de mostrar ao homem o que poderia haver de humano e precário no divino. O poema parece ser uma espécie de acerto de contas de Celan com a sua nostalgia, com o que ainda restava em seu imaginário de fascínio pela figura do Messias, mas um Messias humano, poeta, precário.

04/12/2008

poema inexato a arthur rimbaud

percebi um anjo correndo
quase-luz, fugia lépido
carregando pesados fardos

no chão algumas moedas engraçadas
no fim da linha um brilho esquisito

o anjo nada via
eu notei que devorava as flores
de um jardim intangível e perfeito


carlos ernesto

orvalho

ORVALHO. e eu estava deitado contigo, ó tu,
no meio do lixo
enquanto uma lua suja
nos lançava respostas

nós nos esmigalhamos separando
e novamente embolamos num só:

o Senhor partiu o pão
o pão partiu o Senhor

paul celan ecos

03/12/2008

arte popular: resgate e comunhão

Esse texto pode ser lido como um complemento ao 'A festa da vida nas ruas', relato poético que escrevi acerca da Iª Festa da Identidade Capixaba, ocorrida no último sábado, no Centro de Vitória.
As tarefas essenciais da arte moderna (entenda-se aqui arte moderna como aquela que veio com a Renascença e se consolidou de vez com o Romantismo, não havendo nessa definição nenhuma pretensão de detalhes acadêmicos) são as da crítica e da inovação, da denúncia e da transformação, seja no aspecto estético, político ou social. Ora, ocorre que com o passar dos séculos, essas tarefas foram se tornando cada vez mais complexas e custosas, pelo próprio fato de que a arte havia que acompanhar as também complexas, custosas, ininterruptas e cada vez mais velozes transformações das sociedades ocidentais, provocadas pelo necessário e revolucionário advento do modo de produção capitalista.

Esse processo de acompanhar, compreender ou questionar a marcha da sociedade, se fez com que a arte moderna cumprisse, e bem, a sua tarefa, por outro lado arrastou-a para a mesma complexidade e sofisticação daquilo que ela acompanhava, e com o tempo esse deslocamento inevitavelmente resultou no distanciamento cada vez maior entre artista, linguagem artística e público, ou pessoas “comuns’’ - distanciamento que só fez se agravar com a consolidação da sociedade e da cultura de massas.
No outro extremo permaneceu a arte popular, sem possibilidade de acompanhar esse projeto de conquista da modernidade, mesmo porque não era e não é vocação da arte popular exercer-se como arte moderna, nessa constante preocupação de renovação.

Ao contrário, a sua vocação é a da permanência, da tradição e, embora a inovação seja também própria da arte popular, ela se dá num ritmo próprio, sem submissão a fatores externos, ou seja, ela não tem como preocupação central a inovação a qualquer preço ou por qualquer motivo; enfim, não existem propostas explícitas de inovação e invenção, quando essas ocorrem são consequências de um proceso natural, decantado ao longo de anos e às vezes décadas. Em razão dessa sua vocação para a permanência e a tradição, a arte popular se manteve mais próxima da maioria das pessoas, de suas vivências e de seus formas de expressão.
É uma arte mais próxima das origens, uma arte que soube conservar um pouco dos mitos, da religiosidade e da transcendência próprias do ser humano, sem se deixar envolver pelo transitório e pelo racional.

Assim, é natural que encontros como o de sábado (Iª Festa da Identidade Capixaba) desemboquem numa verdadeira comunhão entre artistas e povo, entre atores e espectadores, é nada mais nada menos do que o resgate de um tempo em que não havia tanta separação, indiferença e desconhecimento mútuo entre os indívíduos e entre as diversas formas de conhecer e estar no mundo (ciência, arte, religião) - um tempo anterior ao advento da cultura de massas. Na verdade, essa comunhão aponta não só para o resgate do passado, mas também para uma promessa de futuro - um futuro para além da cultura de massas.
Nessas manifestações populares ocorre o encontro concreto, sem mediações teóricas, entre arte e vida, entre cultura e natureza, sem preocupações de se definir aquilo que deve predominar.

E, embora não seja uma aspiração explícita, ou reconhecida, esses momentos de fusão com o público são tambérm uma aspiração de muitos artistas da modernidade, um resgate do elo perdido, ou a construção de um novo elo.
Sabemos que as condições históricas atuais saõ de um cada vez mais visível esgotamento do modelo de conquista proposto pelo outrora revolucionário sistema capitalista. E talvez essas condições históricas permitam e exijam o advento de uma arte que consiga realmente unir as características essenciais tanto da arte moderna quanto da arte popular.

Com certeza que, nessa construção de uma nova arte, celebrar junto com a arte popular não significará para o artista moderno abdicar da sua tarefa de crítica e denúncia, de invenção e de enfrentamento. Comungar com o povo e com a arte popular não significa se anular perante as características mais simples e espontâneas dessa arte.
Participar da construção de uma arte assim não significa jogar fora todo o precioso e grandioso acúmulo construído pela arte moderna, em sua incansável tarefa de acompanhamento, interpretação e expressão dos dramas e vivências dos homens da idade moderna.
Nem a arte popular teria que passar a ser mais elaborada, mais crítica ou estar em busca da constante inovação, sob o risco de também se afastar do universo das pessoas.

De qualquer forma, esses encontros mostram que é possível, sim, o resgate da comunhão entre arte e vida, entre ator e espectador, e o artista que quer caminhar na direção dessa nova arte com certeza só tem a ganhar quando dedica mais atenção à arte popular e, principalmente, a momentos mágicos e grandiosos como aquele que vivenciamos no sábado passado nas ruas do Centro de Vitória.
Roberto Soares
Ir para 'A festa da vida nas ruas'

02/12/2008

[o silêncio]

o silêncio tange o
sino de tão
leve ninguém
escuta
mariana botelho
ecos

minas - de ouro e horizontes

Em 1997, em BH, participei de uma criativa oficina de poesia, orientada pelo escritor mineiro Duílio Gomes. Num dos encontros, Duílio pediu que criássemos um poema a partir da palavra 'mariana'. Na ocasião criei o poema abaixo: 'mina mariana'. Por algum tempo fiquei inquieto, achava que faltava alguma coisa.
Depois desdobrou-se nesta trilogia, onde falo de passado, presente e vislumbres ou promessas de futuro, tendo como cenário e fio condutor as três capitais de Minas Gerais e o caminho para o mar - entre outras coisas, hoje vejo nos poemas uma espécie de reversão ou superação da história (dolorosa mas generosa) como se Minas ainda pudesse oferecer algo ao mundo, para além dos metais e minérios arrancados de suas entranhas - ou seja, percebo hoje que esses poemas são o meu tributo inconsciente a essa Minas mítica que carregamos dentro de nós, a Minas inconfidente, libertária, redentora, que o nosso imaginário insiste em preservar.

mina mariana

minas não mira o mar
o mar não ri para minas
minas canta uma outra ária
bebeu de outra mina: mariana

ouro preto, ponte inconfidente

a pele - becos e escadas, ruas e templos,
é polvilhada de puros poros de tempo

a alma - amores e escravos, poetas e o polvo
é ponte entre a mina e o horizonte

o ouro: duro, dourado e o sangrado alferes
a alimentar o polvo
a apontar perto e reto o porto ao povo

horizonte belo

floresta concreta plantada no prado
gestada já na mina, nutrida no ouro

promessa vibrátil de amoroso
contorno ao derredor da serra sagrada
consagrada

mas por ora: o polvo
devora a cordilheira e a seara

enquanto imensa família
ora pujante ora indigente
labuta o barro do preto sustento
de serena e morena estrada-manhã

a marchar célere como o amazonas
rumo ao cerrado e serrando ao meio
a bastilha e as esquadrilhas do polvo

e então talvez o mar e as minas
se beijem - aliviados
e o mar leve às aldeias do globo
o polvo - domesticado

o mar a murmurar em cada diferente porto
o nome da canção esquecida - canhota, torta
que brota da mina pura, singela
trilha a ponte de ouro e o horizonte belo
e jorra vibrante lavanda no seu corpo gigante.
tal mágica e rubra bandeira
talvez.

roberto soares

ecos

01/12/2008

a festa da vida nas ruas

Numa inciativa conjunta da Prefeitura Municipal de Vitória e da Comissão Espírito-santense de Folclore, aconteceu no último sábado, 29/11, a I Festa da Identidade Capixaba, que reuniu mais de 60 grupos folclóricos capixabas, num grande desfile pelas ruas do Centro de Vitória.

O tema da festa foi a histórica rivalidade entre as irmandades cristãs apelidadas de Caramurus e Peroás, devotos fervorosos de São Benedito que disputavam, ainda no século 19, a primazia de realizar a festa mais bela para o santo, e o trajeto do cortejo passou em frente aos mais importantes prédios e logradouros históricos do Centro de Vitória.

A seguir, um relato nada jornalísitico do que foi o desfile; ao contrário, a descrição é intencionalmente entusiasmada, decalaradamente apaixonada, de alguém que participou de todo o desfile e se encantou com o que viu e ouviu.

aqui, o início, nas escadarias da Igreja do Rosário e na de mesmo nome

“Foi bonita a festa, pá...”
As ruas da cidade foram tomadas por uma guerrilha multicolorida e multicultural.
Congo, folia de reis, ticumbi jongo, danças indígenas, grupos de dança alemã, pomerana e italiana.
Depois de se concentrar por um longo e festivo tempo na Praça Costa Pereira, lá pelas quatorze horas o assalto se iniciou pelas escadarias da Igreja do Rosário. Com o público e os artistas populares espremidos nas escadas, já se tinha uma impressão, embora ainda vaga, de que estávamos participando de algo diferente, algo mais aconchegante.
Mas, caminhando pelo relvado pátio da Igreja e descendo pela Rua Pereira Pinto, ainda havia uma certa postura de apenas espectadores de um espetáculo promovidos por artistas, ainda havia aquela atitude de distanciamento entre artista e público. Mas também havia já uma atmosfera verdadeiramente efusiva, com pessoas nas portas, janelas e calçadas, aplaudindo, tomadas por uma mistura de surpresa e admiração com aquilo que viam, com aquele rio de gente brotando súbito dos portões da igrejinha da comunidade.

na ladeira e em frente ao bar do Gegê
E na descida da Ladeira São Bento, a coisa começou a mudar de figura. Já não se separava mais público, cantores, músicos, personagens fantasiados. Era uma só vaga humana descendo pela ladeira – sonora, colorida, melodiosa. O cortejo desembocou no cruzamento com a Graciano Neves, em frente ao tradicional Bar do Gegê.
cortando o calçadão da Rua Sete e em frente à Igreja do Carmo
Dali para a frente, certamente que ainda mais animado pelo espírito irreverente da clientela do Gegê, o cortejo assumiu de vez a sua atitude guerrilheira, a sua missão de subverter a ordem natural, que geralmente vemos em relação à arte - de um lado, ou acima, o artista, ativo, centro do espetáculo, de outro lado, ou abaixo, o público, silencioso, espectador passivo.
Do já quarentão reduto da boemia de Vitória, a marcha musical prosseguiu rumo à Igreja do Carmo, passou em frente ao Convento de São Francisco, por cima do Viaduto Caramuru, se afunilou ao lado do Colégio Maria Ortiz e, depois de se espremer num beco, se espraiou pelo paço em frente ao Palácio Anchieta e ao Palácio Domingos Martins.

a bandeira segue em frente mesmo espremida entre os palácios e os muros do poder

Nesse ponto, já havia se configurado em definitivo o caráter subversivo do cortejo. O espetáculo era de todos, feito por todos e para todos, a dança, a cantoria e a música dos instrumentos já não tinham mais sentido sem a participação do público, que ora assistia, ora acompanhava, ora se esgueirava pelas ruas, becos e calçadas junto com os grupos folclóricos, já não havia artistas e público, atores espectadores. Havia apenas arte, cultura, ou melhor, celebração popular - havia na verdade a vida fluindo em festa pelas vias de Vitória, a vida festejando, a vida se festejando numa tarde de sábado.

Era como se os artistas precisassem de fato das pessoas, da sua presença, para que a sua arte se realizasse naqueles momentos: total comunhão, interdependência, entre vida e arte.

Palácio Anchieta

Palácio Domingos Martins

nas proximidades da Catedral

Por fim, depois de ladear a Catedral de Vitória os guerrilheiros da arte popular, descendo pela Escadaria , finalmente retornaram ao ponto de partida.
O que foi realmente uma pena, da próxima vez que o percurso seja um pouco mais longo e demorado. Com certeza os atores do espetáculo – músicos, cantores, dançarinos e o público – encontrarão um fôlego extra, em nome dessa celebração da vida e da diferença, da tolerância e da riqueza cultural.
Aliás, será imperdoável, será injustificável que o Poder Público não faça o que estiver ao seu alcance para que essa celebração ocorra novamente, por muitas e muitas vezes – com certeza, não faltarão recursos para que aarte popular tenha a mesma atenção que o carnaval, o Festival Nacional de Teatro, o Vitória Cine Vídeo e outros eventos culturais de grande e médio porte patrocinados pela Prefeitura de Vitória e pelo Governo do Estado.

Afinal, a arte popular, coletiva, e o folclore merecem o mesmíssimo cuidado que a arte contemporânea, individual ou de grupo. E que não se cometa a afronta, o pecado de querer aprisionar essa celebração da beleza e da alegria, da resistência e da vida, em uma forma convencional, como uma espécie de desfile, com arquibancadas, cordões de isolamento, ingressos e camarotes e tudo o mais a separar o público dos artistas populares, a separar o público de si mesmo e a dividi-lo em castas.

Para ler mais sobre a poesia e a espontaneidade da arte popular clique em 'Arte Popular: resgate e comunhão'

que vais fazer, Deus?

Optei por publicar duas traduções diferentes do poema que vais fazer...? - a primeira de Geir Campos e a segunda por Paulo Plínio Abreu; os outros poemas de 'O livro de horas' foram também traduzidos por Geir Campos, Ed. Civilização Brasileira, 1994 (nota: os poemas de “O livro de horas” não têm títulos)

que vais fazer, Deus, se eu morrer?
eu sou teu cântaro (e se eu me quebrar?)
eu sou tua água (e se eu me estagnar?)
eu sou teu hábito e sou teu ofício;
sem mim, tu perderias a razão de ser...

depois de mim, não terás casa em que
palavras próximas e tépidas te acolham
vai cair de teus fatigados pés
a sandália macia que sou eu.

teu largo manto deixar-se-á cair.
teu olhar, que com minhas faces eu
aqueço, como se com almofadas,
virá de longe a procurar por mim
- e ao pôr-do-sol se porá
no colo de estranhas rochas.

que vais fazer, Deus? estou preocupado.

Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.

Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.
Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.

(Tradução: Paulo Plínio Abreu)

(rainer rilke, 'O livro de horas')

leveza

leve é o pássaro:
e a sua sombra voante
mais leve

e a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve

e o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto
mais leve

e o desejo rápido
desse antigo instante
mais leve

e a fuga invisível
do amargo passante
mais leve
cecília meirelles

ecos


regresso

minha casa cheira a nordeste
onde são tantas
minas

descubro-me para sempre
atada
a essas portas que se
fecham
mariana botelho
ecos

sertão, poté

debaixo do barranco
passa um rio, tão raso
a correr sobre a areia
tão baixo que deito-me
e não sinto a água

sinto a mágoa calada
o silêncio seco
de um lugar bom
para um rio passar

vicente filho
ecos

outubro

choveu bem agora bem cedo
poças de brilho aquático brincam
pula-pula para os pés passeantes
pássaros ensandecidos à cata
de gotas de arco-íris
cheiro verde e fecundo: sensualidade
saindo de paus umedecidos
no tenro ventre da terra

ruas andam encolhidas
nos becos um ar de susto
sob a ameaça de desabar
sobre todos nós sobre tudo
um céu que desfila plumas
(lavadas, pefumosas)
mas ainda carregando
sob vestes azuis-cinzentas
bombas de chumbo líquido

é precioso prosseguir:
pacificado périplo no templo do dia
tempo de águas primordiais
a imergir a memória com acenos

ora sedentos ora amenos

( roberto soares, outubro 2006)

vivo, divinizo

Ainda envolto na transcendente atmosfera de Rilke, esta modesta tentativa de comunhão poética com o mundo, de minha lavra.

de setembro o sol se perfuma
manhãs de cheiro de mexerica

fumos e incensos insondáveis
escorrem pelas largas alturas

aves inventam voltas
em intérminas vias de vento

límpidas estradas aguardam e acolhem
o andar sereno de secretas sedes

em janelas de escola, sonha-se:
o rolar de sedosas bolas de gude
por trilhas de delicada poeira

tantos moradores do mundo
a entoar o mesmo e uno hino:
- vivo, divinizo...

enquanto o sol de azul se bronzeia
nos aéreos areais

o Teu olho alimenta e aquece
o meu se alimenta e não esquece

juntos nossos olhos
se alumbram em instantes de setembro

(roberto soares, setembro 2006)

a hora inclina-se - rilke

a hora inclina-se e toca em mim
com claro bater metálico
os sentidos me tremem. sinto: eu posso...
e colho o dia plástico.
nada estava acabado antes de eu ver:
todo o devir aguardando em quietude.
maduros meus olhares: a cada um
como uma noiva, chega a coisa ansiada.

nada é pequeno para mim: gosto de tudo
e tudo eu pinto sobre ouro com grandeza
e bem alto o levanto
sem saber de quem vai a alma libertar
(rainer rilke, "O livro de horas")

se ao menos - rilke



se ao menos uma vez tudo se aquietasse
se se calassem o talvez e o mais ou menos
e o riso à minha volta...
se o barulho que fazem meus sentidos
não perturbasse mais minha vigília...

então, num pensamento multifário
poderia eu pensar-te até aos teus limites
e possuir-te (só o tempo de um sorriso)
e oferecer-te a vida inteira, como
um agradecimento

(rainer rilke, "livro de horas")

anil


manhãs, rastros de infância:
riachos fugidios
paisagens feitas de alimentos
ausências

afluentes recorrentes
areias sem porto fixo

o aberto abraço da manhã carrega um sorriso anil de felicidade, que se estende quilometricamente. borboletas edificam casas bonitas como crianças. um coração ainda não esquecido das primeiras fomes se alimenta nestas veias feitas de mansidão.
roberto soares

sobre o 'desvelar'

o desafio da tensão interna

DESVELAR busca dar espaço também para a poesia que ainda traz um pouco dessa capacidade serena e modesta de testemunhar o ser e o tempo, e que tem sido esquecida por uma certa poesia moderna, na sua preocupação excessiva, ora com labirintos existenciais e narcisistas, ora com a legítima invenção de códigos verbais, ora com o simples jogo com as palavras; jogos, códigos e atmosferas poéticas que, originais ou repetitivos, depois irão servir de objeto/pretexto para críticos, professores e/ou prefaciadores debruçarem-se sobre o poema e as palavras como se estivessem a dissecar entranhas ou analisar partículas com microscópios.

Claro que nada contra as criações poéticas apuradas, que se voltam para o próprio ato de criar e para os elementos do poema - as palavras, a frase, o som; enfim, tanto a metapoética, a poesia do poema, quanto qualquer outra fala poética têm seu espaço e necessidade dentro do exercício da poesia – e seria muita tolice pretender o contrário. Assim, não há neste blog nenhuma ressalva a qualquer poesia mais apurada ou mais técnica, mais cerebral ou mais hermética. Como também não haverá nenhuma ressalva a comentários técnicos, às “dissecações” do poema.
Mas o que é preciso lembrar é que se o poeta, ou se todo poeta, para se aproximar do leitor, precisa ser exaustivamente interpretado - através de análises técnicas, lingüísticas, semióticas, semânticas, certamente profundas e inteligentes - então a poesia corre realmente o perigo de existir somente para si própria e para poetas e especialistas.

Enfim, no blog DESVELAR sempre haverá espaço para uma poesia que busque atingir o leitor de chofre, iluminando-o como um relâmpago, atingindo-o como um soco verbal ou envolvendo-o como uma cariciosa melodia, mas de qualquer forma através de um contato imediato, de primeiro grau, ou com uma razoável grau de pureza, sem excessivas turvações que necessitem ser clareadas por terceiras pessoas; é preciso não se constranger com a comunicação que se faz de forma simples, entre poeta, poema e leitor.

Talvez um dos maiores desafios do poeta seja o de tentar conciliar a pesquisa, a invenção e o apuro com a pureza, a simplicidade e o contato imediato com o leitor. O poeta só tem a ganhar quando busca se esforçar ao máximo para navegar entre essas duas margens, numa constante tensão interna do processo de criação do poema, entre busca interior/exterior e comunhão com o outro e, nesse exercício do equilíbrio, não se deixando envolver além do necessário pelas exigências da pesquisa, da invenção ou do puramente cerebral que, às vezes, traiçoeiramente faz o poeta descambar para o solipsismo.

Claro que tudo o que dissemos nesse último parágrafo diz respeito a poetas que têm, entre suas preocupações, essa proposta de estabelecer um vínculo com o leitor de poesia, seja ele artista ou não.
E a propósito das preocupações e propostas múltiplas dos poetas, e diferentes da aqui exposta, é interessante acompanhar o bate-papo recente que houve no blog “as escolhas afectivas”, a respeito do papel da poesia. Recomendamos especial atenção à fala do poeta Carlito Esteves, com sua defesa da poesia enquanto “uma aventura intelectual’.

sobre rainer rilke

Neste blog, há vários poemas do tcheco Renê Rilke que foram extraídos da obra “O livro de horas”, publicado em 1905.

São belas amostras de sua poesia metafísica, vazados numa fala mais singela, que às vezes lembra o tom coloquial, mas nem por isso destituídos da densidade própria de seus poemas, densidade até aflitiva para esses nossos assépticos tempos e, infelizmente para muitos, uma densidade obsoleta . Nessa obra Rilke parece dialogar diretamente com a fonte de todo o universo, mas numa espécie de religiosidade terrestre, como se estivesse a conversar com um Deus acessível, quase tão frágil e desamparado como a criação. A própria referência do título é significativa: livros de horas são manuscritos próprios da Idade Média, ricamente ilustrados para fazer referência à devoção cristã, contendo textos, orações e salmos. Em sua forma original o livro de horas servia como leitura litúrgica para determinados horários do dia.

E “O Livro de horas” de Rilke é como se fossem singelas conversas com o divino, das quais lançamos mão ao longo do precário horário de nosso existir. Nessa obra Rilke consegue com naturalidade exercitar um encontro entre beleza e transcendência, oferecendo um pequeno vislumbre daquilo que poderia ser um real encontro entre arte e religiosidade, para além das limitações impostas impostas por religiões, filosofias, sabedorias e escolas artísticas.

Enfim, poetas como Rilke oferecem uma visão do que poderá ser o grande encontro entre arte, religião e razão, a grande integração - entre todas as formas de saber e perceber o mundo - que nos espera lá á frente da história; claro, desde que consigamos superar este momento de barbárie imposto ao mundo pelo perda de controle da razão tecnicista, domindora e instrumental própria do capitalismo industrial, caso consigamos criar e consolidar alternativas ao visível esgotamento do outrora revolucionário e necessário modo de produção capitalista.

sobre o 'Poesia Viva'

DESVELAR publica uma amostra de uma dessas boas surpresas que encontramos na rede. É o jornal "Poesia Viva", já em sua edição de número 33.
Repare-se na espontaneidade e na precisão dos poemas selecionados, no seu esforço para envolver o leitor na temática em questão, repare-se como não deixam de oferecer ao leitor imagens nítidas, situações convincentes, mesmo sem abandonar a invenção e a autonomia da linguagem; enfim, os poemas realizam aquele difícil equilíbrio de todo bom poema, aquela tensão interna entre a necessidade da invenção e a possibilidade da real comunicação com o leitor.
Falamos aqui um pouco mais das propostas do jornal e da Editora UAPÊ. Mas antes conheçam alguns poetas publicados na última edição online do jornal, começando pelo editorial – o tema deste número é a vida urbana.
o projeto UAPÊ
O jornal 'Poesia Viva' tem uma longa história, foi lançado em 1994. É um excelente veículo de divulgação da poesia: rigoroso e despretensioso, sóbrio e criativo, sem abrir mão da leveza e da criatividade.
E no caso do Poesia Viva há ainda um diferencial, pois, na verdade, o jornal faz parte de um projeto mais amplo, que é editora UAPÊ.
E parece que não só os poemas selecionados, mas todo o projeto do jornal Poesia Viva e da editora UAPÊ, procura seguir essa linha do equilíbrio entre a invenção e expressão, entre a pesquisa e a comunicação com o leitor - o que é bastante gratificante nesses tempos de afastamento da poesia em relação ao leitor.
O compromisso fundamental da UAPÊ é exatamente o de valorizar e divulgar a criação poético-literária que tenha um mínimo de respeito e afinidade com a cultura brasileira: “A Editora Uapê - Espaço Cultural Barra traz no seu significado o compromisso com a cultura brasileira. Uapê na língua índigena dos Uaupés, tribo do alto amazonas, expressa a flor vitória-régia.
Nossa proposta editorial valoriza a produção intelectual e artística dos autores, criando oportunidades para aqueles que querem publicar obras de qualidade, comprometidas com a realidade brasileira, cultivando, assim, as raízes do nosso solo cultural.”
Em sua edição impressa o Poesia Viva é uma publicação em formato tablóide, trimestral, e um dos seus principais objetivos é “ a troca entre novos e consagrados poetas, curiosos e amantes, viabilizando a divulgação dos poemas publicados e estimulando a leitura e as discussões sobre a poesia.”
Ainda com a palavra, os editores do Poesia Viva:
“A apresentação dos poemas é feita a partir de um fio condutor que se manifesta nas ilustrações de artistas contemporâneos. A cada exemplar, uma entrevista exclusiva com um grande poeta: Manoel de Barros, Adélia Prado, Fernando Py, Olga Savary, Affonso Romano de SantAnna deram depoimentos preciosos sobre suas obras e o universo literário.
A partir de janeiro de 2005, o Jornal Poesia Viva passou a ter também uma versão online, com todo o conteúdo do jornal impresso disponível na internet”.
Se você ainda não clicou lá em cima, conheça aqui alguns trabalhos de poetas publicados pelo "Poesia Viva".

30/11/2008

ah...

o suspiro é apenas
o começo da agonia
que de tão vadia me faz sorrir

como se ainda fosse o tempo
em que pardais drogados
mexiam nos telhados
enquanto o sol atravessava a vidraça

é apenas agonia o sorriso de agora

(vicente filho)

love star - amor de doido

hoje, a mais faceira estrela
que eu vi - tentei laçá-la
com o melhor laço
que eu mesmo teci

pra amarrá-la num esteio
pra depois ficar a vê-la
vergonhosa a sorrir
da bravura que fiz

brava noite
baldo braço
que nunca desiste

não é triste meu sonhar
se a estrela existe

(vicente filho)

sobre mariana botelho

A fala de Mariana Botelho é sem dúvida algo que a gente sente logo vontade de definir como ‘coisa suave’.
Sim, para além do jogo verbal fácil e previsível, o fato é que se é logo remetido para o nome de seu espaço na internet.

Surpreende a maneira singela e espontânea como Mariana expressa obscuridades, vivências e encontros de difícil descrição. Sua poesia está inundada de águas e nostalgias, de silêncios e sedes, mas tudo isso partilhado de fato com quem a lê. Há que aplaudir ainda a naturalidade e a pertinência com que ela brinca, joga, dialoga com o próprio poema, com o próprio ato de criar, fecundar poesia, também isso singelamente ofertado a leitor, sem necessitar complexas e sufocantes dissecações.

Essa facilidade de construir pontes com o leitor – seja ele quem for, artista ou não – sem abrir mão da invenção, só vem a confirmar algo que já tivemos oportunidade de abordar em outro texto aqui no blog ("sobre o desvelar"): é possível, sim, dar luz a uma poética elaborada e inquieta e, ao mesmo tempo, preservar um mínimo de contato com o leitor – claro, desde que esse contato seja uma das preocupações, ou propostas, do poeta.
Lendo os poemas de Mariana lembro-me imediatamente de outro poeta presente aqui no blog, Vicente Filho, também lá do norte de Minas - Poté, próximo ao Vale do Jequitinhonha. Claro, a fala de Mariana é mais elaborada, o poema é mais burilado, mas percebe-se nos dois a mesma espontaneidade e a mesma vocação para a concisão, o poema enxuto. Posso estar até entusiasmado, mas me parece haver uma simbiose perfeita entre os poemas “sertão, poté”, “nascente” e “água’’.

sobre vicente filho

Vicente Gonçalves de Paula Rilho é de Minas (Poté, Viçosa e agora Beagá). Não tem livro publicado, não frequenta meios lítero-artísticos. É desses que, embora negligentes e até incomodados com a tarefa de criar, não conseguem fugir do fado - têm a poesia na veia, ou na mão, uma certa poesia não exatamente filósofica, mas filosofante, e que mistura melancolias e impotentes ironias. Um delicado, espontâneo e preciso domínio das palavras, uma despretensiosa entrega ao despojamento da fala, e nessa entrega um resgate do surpreendente frescor das palavras, quando abordadas na sua simplicidade.

Há na sua poesia uma nostalgia de tempos, lugares, sensações, mas nostalgia que às vezes se compraz em ironizar a si própria, ironia, ao fim, que consegue tornar a nostalgia ainda mais melancólica e poética.

Há também uma comoção indignada com as tristezas provocadas pela inevitável marcha da história, mas uma comoção também marcada pela discreta ironia do poeta, ora com sua própria indignação, ora com a tristeza e o desamparo daqueles são afetados pela implacável marcha; e também aqui uma ironia que só faz crescer a indignação e a perplexidade do poeta, como se ao invés de cinismo e descrença, a ironia mais o irmanasse àqueles de quem fala.

E por fim a fala amorosa, com seus encontros e desencontros. A mesma e sutil presença de uma ironia desamparada, ou o mesmo desamparo irônico, mas ironia e desamparo permeados por uma forte e explícita celebração da pessoa ou imagem amada.

apresentação geral

Os poemas de Paul Celan foram extraídos de "Hermetismo e Hermenêutica: Paul Celan - Poemas", de Flávio R. Kothe, Ed. Tempo Brasileiro, 1985.

Os de Cecília Meireles: "Mar absoluto e retrato natural", Ed. Nova Fronteira, 1983 e "Doze Noturnos de Holanda", Ed. Nova Fronteira, 1986.

Os Poemas de Rainer Maria Rilke foram selecionados de "O livro de horas", Editora Civilização Brasileira, 1994, tradução de Geir Campos.
Todos os poemas de Rilke e muitos dos de Celan não possuem títulos, têm apenas primeiras palavras em maiúsculas -tal como grafado nos originais.

Os meus poemas e os de Vicente Gonçalves Filho são inéditos. Os de Carlos Ernesto foram extraídos de "Flutuais e Cartas ao Mar fechado", edição do autor, e poemas inéditos.

Os poemas de J. Leo Araujo foram extraídos de “Poemas & Poemas’, edição do autor (1976).

Os poemas de Mariana Botelho foram extraídos do seu blog "Suave Coisa" - http://quelevequenada.blogspot.com/.

poesia de grafites

As fotografias abaixo são registros de grafittis, feitos nas ruas do Centro de Vitória.
O registro parece oportuno, pelo fato de as palavras e figuras saírem da trivialidade ingênua ou dos códigos herméticos de tribos urbanas, que geralmente predominam nessas manifestações.

Claro que uma leitura mais exigente poderia facilmente apontar um certo primarismo e obviedade nos jogos verbais de alguns dos grafittis. Mas para se atingir, de forma mais ampla, o seu heterogêneo e movimentado público, os grafiteiros não podem e nem precisam se embrenhar em construções verbais demasiadamente experimentais. Desse ponto de vista, certamente o autor - ou autores ? - tem a concisão, o ineditismo e a coloquialidade da mensagem na medida certa, próprios para atrair o olhar dos leitores, ou dos transeuntes, numa despretensiosa mas sedutora amostra de poesia nas ruas.



ir para poesia de grafites II

26/11/2008

minhas camisas-de-força

minha mulher
minha flor de lis
bem que mais quis

confesso:
usava suas camisas
para ficar dentro de você

era lastro, era vício
amar é atitude
que temos de temer

ecos

Ecos é uma teia: poemas afins na temática, na atmosfera - às vezes uma afinidade somente insinuada.
Poeta é evidentemente fundador de uma fala única e insubstituível. Mas há esses encontros, em que as falas de diferentes poetas tangenciam, encontram uma às outras, como se todas essas falas fossem ecos ou murmúrios de uma fala primeva, indiferenciada, mesmo que os poetas estejam diametralmente afastados no tempo e no espaço.
Quando a fala poética mais do que nunca se parece como um mágico e explícito momento de desvelamento do ser, das coisas e do tempo.
Convite silencioso, frágil, quase inaudível a ouvidos infelizmente educados para ruídos e falatórios exagerados, quase impalpável a olhos educados para imagens e objetos supostamente indispensáveis.

13/11/2008

as folhas caem

as folhas caem como se do alto
caíssem murchas, dos jardins do céu
caem com gestos de quem renuncia.

e a terra, só, na noite de cobalto,
cai de entre os astros na amplidão vazia.

caímos todos nós. cai esta mão.
olha em redor: cair é a lei geral.

e a terna mão de Alguém colhe, afinal,
todas as coisas que caindo vão.

(rainer rilke, "livro de horas")

10/11/2008

"Poesia Viva"

Editorial: vida urbana

As cenas da vida urbana representam o teatro do mundo, aí onde o tempo excede e dele as pessoas, de imediato, não se dão conta seguindo seu próprio ritmo, caminhos indecifráveis para nós outros transeuntes. As cenas da vida urbana mostram nos intervalos a fugacidade da vida sombras asas soltas flores despetaladas coisas no seu desgaste. Hoje tocadas desejadas, amanhã, jogadas fora. Mas nesse tempo e espaço a trajetória da vida humana se instala em redes de trabalho, lazer alegrias e violências que se batem. Espantos e lamentos, o acaso acontece.

Ninguém pode escapar dos apelos para o que se passa em volta. Uma teia invisível entrelaça vitrines e barracas. Buzinas e cigarras. Andanças e paradas. Agressões e romances. Às vezes um poeta lança um olhar para a revoada de pássaros ou um ipê estalando sóis, um olhar para a natureza abafada no cinzento dos arranha-céus, rolos de fumaças e árvores perdidas umas das outras. Vai descobrindo o tempo limando as horas e o enigma misterioso da existência que transcende o corre-corre do dia-a-dia, de modo tão febril, que poucos param a fim de descobrir o modo de decifrá-lo. De olhos vedados muitos nem percebem que o destino pode quebrar os nós e fechar as portas a qualquer esquina.

Mas o poeta no jogo das cenas percebe que o homem não existe sozinho na estratosfera dos sonhos, acha-se ligado à trama no fio da tessitura, embora desconhecido. E se assume autor de peça de teatro onde não há diretor nem equipe de apoio, somente cenário. O poeta inventa palavras cantos sentidos ritos para os enredos, sabendo, todavia, os ventos fugazes irão desfazer até os poemas. (ir para 'sobre o poesia viva')



Favela ou porque a polícia não apareceu

caminho da vida
o caminho da morte
o mesmo
salto no abismo
o mesmo
olhar sem ternura

nas vielas escuras
os passos desviam-se
somente

cinco inocentes mortos
oito pessoas feridas
e um churrasco regado a cerveja
e samba
Marília Amaral

Alienação

O viaduto era a sua casa.
Do viaduto, ele tudo via.

Via tudo: o luxo dos ricos
e o lixo dos pobres.

Fama\casa\carro.
Fome fodida\coisa\curra.

Pobre, corra da fome.
Fuja da coisa fundida!
Fundida em lixo, restos e ratos.
Fodida em doença e desespero.

Pobre, curre a fama e a riqueza!
Cobre caro a fome!
Não foge, não curra e não corre,
pois só os ricos correm em seus carros.
Por cima do viaduto, eles correm
e não sabem de suas entranhas.
Viaduto: casa estranha,
entranha pobre e podre.

Do viaduto, ele tudo via.
Todavia, só via.
Sem luta.

Laura Esteves

O solitário gesto de viver

não demanda a coragem que há na faca,
na ponta do punhal e até no grito
de quem fala mais alto e está coberto
de razões, de certezas, de verdades.
O gesto de viver se oculta em dobras
tão íntimas do ser, que o desfazê-las
é mais que indelicado, é violência
que nem sequer se pode conceber.
O gesto de viver é só coragem,
mas, de tal forma próprio e incomparável,
que não se exprime em verbo, imagem,
mímica
ou qualquer outra forma conhecida
de contar, definir ou explicar.
A coragem no gesto de viver
está em coisas simples, por exemplo,
na diária decisão de levantar.
E mais, em se vestir e trabalhar
por entre espadas, punhos e navalhas,
peito aberto, sem armas, passo firme,
e à noite, ainda intato, regressar

Reynaldo Valinho Alvarez


Mem de Sá com Gomes Freire

Paulo, codinome Kelly Lee.
De Ubá, o teimoso sotaque – “uai!”.
Pensa na mãe morta, lembra do pai,
E, no trottoir noturno, sorri.

Lembra do pai, que a pôs para fora,
dos irmãos, que lhe viraram a cara.
Mas sorri, por hábito, e, coisa rara!,
uma lágrima escapa-lhe, agora.

Ubá é tão longe, a infância perdida...
E tudo, ali, parece inverossímil!
A lágrima sai negra, do rímel:
“Pior que a morte, só mesmo a vida!”

Kelly - e seu troféu é o codinome!,
exibe, quase nu, seu belo corpo.
Paulo morreu pra sempre, está morto,
afogado em litros de silicone!

Mas algo dele resiste nela,
bem ali, em plena Mem de Sá!
Talvez um velho sonho ou, quiçá,
sua morta mãe, que, por ela, vela.

Ricardo Thomé

A moça na praça

O vento atravessa
a praça
um raio rompe
a carcaça
da negra nuvem
que se esgarça
e a paisagem
se embaça
Mãos se abandonam
sem graça
coração se
despedaça
a moça chora
e disfarça
lágrimas de chuva
inundam a praça

Silvio Ribeiro de Castro



Sol indo embora nuvens de chumbo
no ônibus Náuseas cheiro ácido suor
amônia álcool sangue pisado pingos
do dia tiritante lida Náuseas me
acomodo pé suspenso no ar ombro a
ombro troncos encostos toques maus
pensamentos Náuseas solavancos
trancos balanços paradas entrecortes
gente saindo entrando empurrões
cotoveladas suspiros estalidos crianças
zumbindo guinchos batidas hip-hop
Náuseas cabeças fixas olhos giratórios
ar sufocativo motorista invisível
toco a estridente campainha ele nem
se liga

Leda Miranda Hühne

sobre o jornal 'poesia viva'

05/11/2008

uma alca-téia em belô

Este poema de Vicente Filho foi escrito em 97, por ocasião do Fórum das Américas (encontro preparatório para a instalação da extinta ALCA), realizado em Belo Horizonte, com os incentivos de FHC; mais especificamente, o poema foi escrito na histórica noite em que as escurecidas ruas do hiper centro de Belo horizonte (coincidentemente, a rede elétrica entrou em colapso) se transformaram num campo de batalha, com os combativos protestos que houveram contra o Fórum e a criação da ALCA. É interessante olhar para trás e perceber o quanto houve de lutas e de avanços, e o quanto ainda há que avançar rumo à dignidade e à autonomia dos povos da América Latina. É preciso estar sempre de “olhos abertos” contra os “exércitos de ciscos” que vêm do norte ou de qualquer outro lugar...

exércitos de ciscos
para olhos abertos

tribos de maníacos
para vítimas certas
cobertores rasgados
nas indigências descobertas
hoje sofremos incertos
mendigos ao relento
enquanto no Foro das Américas
os lobos acham consenso
vicente filho
ecos

fsm 2009

O convite abaixo foi enviado pelo professor Helder Gomes, e trata de um encontro preparatório para o Fórum Social Mundial, a realizar-se em janeiro de 2008, em Belém. O que chama a atenção no encontro é o espaço dedicado à discussão da crise econômica global.

São urgentes e benvindas essas iniciativas que partem dos movimentos sociais, visando discutir a atual crise, numa clara percepção de que os seus abalos serão sentidos de forma muito profunda nas estruturas do capitalismo atual.

Além disso, a crise diz respeito tanto aos governantes quanto à sociedade civil, e não somente em relação às suas conseqüências econômicas, mas, também e principalmente, em relação às possibilidades de transformações sociais e políticas, através de propostas e soluções alternativas, que respondam a um provável esgotamento do atual modelo econômico. Trata-se de demonstração de lucidez e de senso de oportunidade, visto que é preciso estarmos atentos, prontos para oferecer alternativas mais humanizadoras e menos irracionais.

A esse respeito, aliás, cerca de 550 organizações sociais de 88 países tomaram posição sobre a reunião do G-20, marcada para 15 de Novembro para debater a crise financeira mundial.Esse movimento propõe uma conferência internacional convocada pelas Nações Unidas, mas não o G20, reivindicando uma resposta verdadeiramente mundial a esta crise e apresentam princípios para isso acontecer.

Trata-se declaração de cidadãos, movimentos sociais e organizações não-governamentais de apoio a um programa transitório de transformação económica radical.
Nascida de discussões entre associações presentes no Fórum dos Povos Ásia-Europa, realizado em Pequim em Outubro de 2008, nela foi feita “uma avaliação das implicações da crise económica mundial e da oportunidade que ela nos oferece para trazer para a praça pública algumas das alternativas, viáveis e motivadoras, nas quais muitos de nós temos vindo a trabalhar há décadas.”
A relação completa das entidades que assinam a Declaração pode ser encontrada na seguinte página: http://www.choike.org/bw2/listado.php

Abaixo o convite enviado por Helder Gomes:
Rumo à Belém

FSM 2009

Pauta 1 - Debate
A Natureza da Crise Econômica Mundial
O papel dos movimentos populares
Reinaldo Carcanholo e Helder Gomes

Pauta 2

Organização da Delegação Capixaba para o FSM 2009

Quinta-Feira - 06/11 - 18h30min

Conexões de Saberes
Centro de Vivência da UFES

epílogo - simón zavala

O poema abaixo é do Simón Zavala, poeta equatoriano


epílogo
vim uma vez aqui
e te atirei minhas mãos

te entreguei minha palavra
desgarrada

te disse que o meu nome
era emprestado
e que eu era outro
enfiado neste corpo

te contei do meu sonho
forjado nos temporais
te mostrei o pedaço de minha alma
que permaneceu em minha mãe

por fim te ofereci minha sombra

no teu aniversário
e pendurei minhas pegadas
no teu quarto

um dia
me acordaram e encurralaram
outra vez as horas
me despedi de todos os teus desejos
e te deixei à porta
o meu olhar

(Simón Zavala Guzmán – Guayaquil, Equador, tradução: Roberto Soares)



ecos

carta aberta a barak obama

Certamente que hoje é um dia histórico, com a eleição do primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos e com o fim da era dos conservadores e belicistas à frente da superpotência imperialista.
Mas nesse momento de euforia generalizada - e legítima - com a eleição de Barak OBama, entendemos como benvinda a Carta Aberta, divulgada pela Agência Carta Maior. Afinal, por mais bem intencionado que seja esse ou aquele governante, não está em suas mãos mudar radicalmente as posições de um determinando governo, muito menos as estruturas e exigências de um determinado modelo de produção – ainda mais em se tratando dos governo dos Estados Unidos e do modo de produção capitalista.
De qualquer forma, o jovem e promissor Barak OBama terá feito muito se corresponder às expectativas e sonhos daqueles que o elegeram. Quanto às expectativas e anseios dos demais povos do mundo, parece que o documento da Carta Maior, divulgado abaixo, tem muito a lhe dizer.

Nossa Carta a Obama
Se os EUA querem reconquistar o respeito dos outros povos do mundo, se querem resgatar a imagem que se deteriorou, devem se considerar como um país entre outros, e a eles igual, não como uma potência eleita para a missão de impor a ordem imperial e os interesses capitalistas no mundo. Devem dar espaço para que progrida o espaço de um mundo multipolar, em que todos os países participem das decisões fundamentais - Carta Maior.
(Esta carta está aberta a adesões de veículos da pequena grande imprensa alternativa de todo o mundo)
O seu governo pretende resgatar a imagem dos EUA no mundo e mudar sua relação com a América Latina. É preciso que o sr. saiba que a imagem do seu país no mundo é a imagem da maior potência imperial da história da humanidade. Que à horrível imagem de potência intervencionista no destino de outros países, de exploradora das suas riquezas, ao longo de todo o século passado, se acrescentou no século XXI a política de “guerras humanitárias”, invasões que mal escondem os interesses de exploração e opressão de outros territórios e povos, de que o Iraque e Afeganistão são os exemplos mais recentes.
(...)

Os EUA devem reconhecer publicamente o grave erro de terem apoiado o golpe militar de abril de 2002 contra o presidente Hugo Chavez, legitimamente eleito e reeleito pelo povo venezuelano. Devem terminar definitivamente com articulações golpistas nesse país, na Bolívia e no Equador e comprometer-se, publicamente, a nunca mais desenvolver atividades de ingerência nos assuntos internos de outros países.

Se quiserem ter relações cordiais com a América Latina, o novo governo dos EUA devem destruir imediatamente o muro na fronteira com o México, legalizar a situação dos trabalhadores imigrantes nos EUA e favorecer a livre circulação das pessoas, como tem pregado a livre circulação de mercadorias e de capitais.(...)

Se quiserem voltar a ser respeitados, os EUA devem deixar de tratar de favorecer ou forçar a exportação de sua mídia, de sua indústria cultural, de sua forma de vida, que pode ser boa para os EUA, mas pode ser nefasta para outros países. Essas fórmulas, muitas vezes impostas, favorecem formas ditatoriais de imprensa, formas estereotipadas de ver o mundo, modos consumistas de viver. Que os EUA deixem cada país escolher suas formas de se pensar a si mesmo, de ver o mundo, de viver e de produzir arte e cultura.Se o sr. quiser fazer um governo diferente, deve abandonar qualquer idéia de querer impor o que os EUA considerem que seja democrático. Que cada país, cada povo, defina seu próprio caminho. Os EUA nem inventaram a democracia, nem são mais democráticos que muitos outros países.

Os EUA devem abandonar suas pretensões de ser um império mundial que zele pela ordem imperialista no mundo. Devem dar espaço para que progrida o espaço de um mundo multipolar, em que todos os países participem das decisões fundamentais. Neste sentido, devem apoiar o fim do direito de veto no Conselho de Segurança da ONU, devem dar lugar à democratização desse órgão. Devem obedecer as decisões da ONU de terminar o bloqueio à Cuba, em favor do direito do povo palestino a um estado próprio e independente, entre tantas outras decisões, bloqueadas pelo veto norte-americano. Se vetos de outros países há, isso deve ser combatido pela suspensão universal do direito ao veto.

Em suma, se os EUA querem reconquistar o respeito dos outros povos do mundo, se querem resgatar a imagem do seu país que se deteriorou, devem se considerar como um país entre outros, e a eles igual, não como uma potência eleita para a missão de impor a ordem imperial e os interesses capitalistas no mundo. Devem respeitar as decisões que outros povos tomem no sentido de escolher caminhos antiimperialistas e anticapitalistas. Devem assinar o Protocolo de Kyoto, aceitando reduzir suas emissões de gases poluidores, condição básica para iniciar uma nova etapa na luta contra a destruição ambiental no planeta. Devem diminuir seu orçamento militar, revertendo essas verbas para o campo social. Devem combater os monopólios privados da mídia, a indústria tabagista, a da segurança para-militar, devem colocar como seu objetivo principal construir uma sociedade justa, a começar pela de seu próprio país, aquele em que, dentre aquelas do centro do capitalismo, a desigualdade mais cresceu nos últimos anos.

Se o sr. fizer tudo isso, ou pelo menos se mover nessa direção, pensamos que poderá contar com o respeito e com relações cordiais por parte dos governos populares e dos povos da América Latina.

02/11/2008

nós, embalalagens ambulantes




Sábado último, quem passava pela Praça Costa Pereira se deparava com cenas inusitadas. Encontrava mendigos ou andarilhos caminhando tranquilamente pela praça, vestidos de sacolas plásticas, de supermercados ou lojas de departamentos. Pareciam um desses transeuntes solitários que de quando em quando encontramos pela cidade, com seus gestos, posturas e falas irreverentes, enigmáticas, que no mais das vezes deixam as pessoas curiosas ou até mesmo incomodadas – as quais, para nos tranqüilizarmos, classificamos como atitudes de “doidinhos’.
Na verdade, eram atores realizando uma performance teatral. Os atores (Roberta Portela e Nicholas Lopes, entre outros) pertencem ao Grupo Virundangas e estão há cerca de seis meses no Espírito Santo, vindos de Ouro Preto, onde se formaram em Artes Cênicas.
Quanto à performance, a interpretação fica a critério de cada um, segundo os atores. Com certeza é uma clara mensagem contra o degradação ambiental provocada pelas embalagens plásticas e contra o consumismo patético e absurdo ao qual as pessoas têm sido conduzidas nas três últimas décadas - certamente como resultado dos artifícios da economia capitalista em seu esforços para se manter hegemônica, num momento da história em que inúmeros indícios parecem apontar para o seu esgotamento, enquanto processo histórico necessário e outrora revolucionário – mas isso é asunto para outro e bastante longo espaço.
De qualquer forma, podemos ver no ato do Virundanga também um sutil alerta para o perigo de nós próprios nos transformarmos cada vez mais em mercadorias, já que no atual modelo de produção e civilização nossa principal função é exatamente a de produzir e consumir, produzir para consumir, viver para produzir e consumir, até nos consumirmos de vez numa embalagem qualquer.

31/10/2008

a bica

corre, sempre a esperar-te
a água da bica
para que você venha
e lave teu rosto criança

tomada a atitude
ela seguirá no fluxo normal
levando para onde você não sabe
teus sonhos da noite dormida
vicente filho

desarmonia

O romancista é um poeta desgraçado.
Condenado a sua infalível pantomima
Gesticula abarcando sua infindável solidez
Somente com olhos, argutos - acima de tudo, perenes.
É um espantalho carcomido pelo martírio
de ser incapaz de dizer
Coisas.

É a um só tempo verme e coveiro, criatura emblemática
Onde a carência de gestos apenas lhe curva as costas.
É, portanto, desses seres capsulares.
Casulo de seda amparado por brocas.
E, talvez, bocas.

Satisfaz-se com ínfimas atribulações
mas permanece sentado, alvejando
A blindagem sagrada do tempo com vicejante suavidade
caminhando, sabe deus, com que tez altiva e mole
molestando a carnavalesca desordem das impossibilidades.
Curiosa engrenagem de instinto subjugada pela vergonha
de saber-se inconciliável com
Suas verdades.
Somente a concisão lhe impressiona.

george saraiva

28/10/2008

o lado B da feira do verde

Têm sido realizadas, no restaurante “Sol da Terra”, Centro de Vitória, reuniões para a organização de um espaço alternativo na Feira do Verde.
Será um espaço de contraponto ao marketing social e ambiental, no qual as grandes empresas transformam a Feira. Até o momento têm participado membros da Brigada Índígena, do Coleduc - Coletivo Educador Ambiental, FASE, Fórum de Entidades do sul do estado e inúmeros outros militantes e entidades (cerca de 20 pessoas).
A Feira do Verde começa no dia 10/11 e será realizada na Praça do Papa.
Um ponto que tem se feito presente nas reuniões é o cuidado com o caráter da intervenção de um movimento alternativo e contestador, crítico e emancipatório, num evento eminentemente institucional. Afinal, fomos convidados e concordamos em participar de um acontecimento onde vão estar presentes grandes empresas poluidoras de nosso estado, ou melhor, um evento onde o discurso maquiado dessas empresas acaba por prevalecer.
Nesse caso, a saída mais lógica seria ir direto para o enfrentamento e o questionamento explícitos, contundentes, desse discurso e dessas práticas preservacionistas e reducionistas, que tentam direcionar o problema da degradação ambiental para questões meramente técnicas, numa visão fragmentada, distorcida, que inclusive procura sutilmente passar a mensagem de que os cidadãos têm a mesma culpa das empresas e dos governos e de que as pessoas - enquanto indivíduos e não enquanto coletivos - teriam o poder de mudança e reversão do problema ambiental. Vide o slogan da Feira: “Somos todos responsáveis...”
Mas foi observado que o enfrentamento radical poderia não ser a estratégia correta, pois poderíamos perder o espaço conquistado no território do próprio adversário, ou seja, poderíamos dar motivo para que, no próximo ano, não nos fosse permitido participar da Feira. Além disso, seríamos mal interpretados pelo imenso público que comparecerá à Feira, já que essas pessoas não têm, no seu cotidiano, acesso às reais informações do que se passa com relação à degradação ambiental e, possivelmente, não estariam preparadas para absorver tantas informações contraditórias e de forma tão contundente - o que seria certamente bastante explorado pela mídia conservadora e submissa ao grande capital.
Diante do impasse, falou-se na possibilidade de desistirmos dessa participação pois, nos tornando reféns do ambiente de moderação e distorção dos fatos, correríamos o risco de: a) contribuir para a construção, junto ao grande público, de uma imagem negativa do movimento ambiental autônomo e emancipatório ou b) perder nossa própria identidade e até mesmo a credibilidade que conquistamos enquanto movimento autônomo e combativo, enfim, iríamos “queimar o nosso filme” durante a Feira, seríamos domesticados, cooptados, neutralizados pelo aparato que dá sustentação ao atual modelo de produção e consumo.
Por fim, decidiu-se por uma participação que, mesmo sem partir para a contestação pública e radical, provoque uma espécie de tensão interna durante o evento. Ou seja, a idéia é procurar envolver o grande público, atrair, de forma inteligente e criativa, as pessoas para o espaço de nossos debates, palestras, denúncias – e também mostras, vídeos, fotografias e apresentações culturais de raiz, que não sejam massificantes e alienantes.
Assim, estaremos fazendo a disputa interna e política das mentes e corações que passarem pela Feira, de forma equilibrada, com a possibilidade de conquistarmos cada vez mais espaços de atuação na Feira do Verde – e quem sabe até mesmo subverter, no futuro, os propósitos desse que já é dos maiores eventos de meio ambiente do Brasil. Mas isso, claro, sem perder a autonomia e a coerência entre nosso discurso e nossa prática.
Por falar em autonomia, uma das entidades parceiras, a Brigada Indígena, optou por nos apoiar e desenvolver atividades conjuntas, mas sem que as suas manifestações e estratégias de atuação ficassem a reboque da nossa intervenção na Feira. Em suas intervenções a Brigada Indígena sempre opta por manifestações mais contundentes, enfrentamentos mais radicais, sem cair na agressão física ou na destruição de patrimônio. Veremos o que os companheiros da Brigada reservam neste ano para nós, para o grande público e, claro, para os grandes responsáveis pela degradação ambiental.
Ainda sobre o Lado B da Feira do Verde: estarei publicando em breve a programação completa das atividades, assim que a mesma estiver concluída.