Para não passar em branco neste dezembro, indico os poemas e o texto publicados no ano passado, por ocasião do natal: então é natal...
Até breve.
guardião invisível
diz mariana botelho:
a rapariga de Vermeer, agora famosa
olha-me. a pérola olha-me.
os lábios vermelhos, húmidos
e brilhantes da rapariga de Vermeer.
rapariga de Vermeer, pérola
turbante azul: és toda luz
e eu sou feito de sombra.
a luz olha a sombra com altivez
condescendência, talvez piedade.
(adam zagajewski - polônia )
Adam Zagajewski nasceu em Lvov ((hoje, Ucrânia), na Polónia, em 1945. Vive entre Cracóvia, Paris e Chicago. É considerado pela crítica internacional como um clássico contemporâneo, como o foram Milosz, Herbert, Holub, Popa ou Brodsky. É um poeta dessa estirpe.
Acaba de publicar, neste 2008, na Farrar, Straus and Giroux, de Nova York, “Eternal Enemies”, traduzido do polaco por Clare Cavanagh, professora de línguas e literaturas eslávicas na Northwestern University, que já havia traduzido para o inglês, Szymborska e Milosz.
Humor, inteligência, cepticismo e economia de linguagem podem ser encontrados nesta versão que trago do inglês, onde conspiram o peso do lugar e da história, a emergência da arte e da vida quotidiana. (Transcrito do blog português poesia ilimitada)
Tadeusz Rózewicz nasceu em Radomsko em 1921. Estudou História da Arte na Universidade de Jagueloniana, em Cracóvia. Viveu em Wroclaw durante trinta anos. Poeta, dramaturgo e novelista foi traduzido em numerosos idiomas, sendo considerado um precursor da vanguarda em poesia e drama, um inovador firmemente arraigado na recriação incessante da tradição romântica. Independente, diz-se convencido de uma missão artística que considera um estado de concentração interna, agilidade interior e sensibilidade ética. Różewicz pesquisa as instâncias contemporâneas da crueldade humana. É o fundador de uma tendência chocante da literatura polaca que se concentra na existência, concebida como o esforço para existir, como a luta contra o nada. Jorge Sousa Braga colabora uma vez mais no Poesia Ilimitada, com a tradução de "A Poesia nem sempre...". (do blog poesia ilimitada)
confiei em mim desde o primeiro momento.
custa muito pouco ser dono do vento.
e à besta não lhe é mais custosa
a vida, até que a lançam à fossa.
nasci, amei, fui longe, fiz o resto.
com medo, às vezes, mantive-me no posto.
paguei sempre as dívidas contraídas
e agradeci, com as mãos estendidas.
se fingida mulher aqui e além me quis,
amei-a, para que pudesse ser feliz.
fiz cordas, varri, dei-me ao vinho
e entre os espertos fingi-me cretino.
vendi brinquedos, pão e poesia,
jornais e livros: o que se vendia.
não morrerei enforcado em fácil trama
ou em grande batalha, mas na cama.
vivi (já está aí o saldo final):
muitos outros morreram deste mal
grito dos excluídos 2009
A continuidade do Grito dos Excluídos (veja nesse blog as matérias O grito ecoa... e O Grito dos Excluídos 2009), já por 15 anos, na verdade reflete uma postura histórica de iniciativas e responsabilidades que alguns setores católicos sempre tiveram em relação às lutas sociais e populares. É a opção verdadeiramente missionária da Igreja.
Como bem colocou padre Kelder Brandão numa de suas homilias, é esta a cura que o Cristo pregava e praticava: não apenas a cura física ou corporal, mas a cura do espírito e dos corações dos desamparados, abandonados ou ignorados por um mundo por demais competitivo, apressado e hostil; enfim, sair de dentro do templo em direção ao mundo e ao povo sofredor, humilhado, manipulado.
Mas, na verdade, a Igreja sair em direção ao povo e ao mundo significa também uma outra 'cura', ou melhor, uma tripla 'cura'. Além da oferecida aos desamparados, há também a 'cura' do próprio movimento popular, como dito acima; afinal o movimento está enfermo, paralisado, esvaziado de seus melhores quadros, que foram convocados pelo governo federal e pelos inúmeros governos municipais e, nesse processo de se colocar a serviço de governos populares, são muitas vezes seduzidos por uma nova maneira de ver o mundo, a si próprios e ao movimento do qual faziam parte, uma visão por demais institucional, que passa a enxergar nas pessoas apenas agentes políticos, apenas peças do jogo político-partidário.
E outra 'cura' se processa, claro, no âmbito dos próprios fiéis e da própria Igreja Católica. Ao se colocar à disposição para aprender e praticar a 'cura', o católico está curando a si próprio, encontrando o verdadeiro sentido de ser cristão, ao conseguir ver de fato em si e no outro a ' luz do mundo', o 'sal da terra'.
Quanto à Igreja Católica, enquanto instituição milenar ('santa e pecadora', para usar uma expressão do documento conclusivo do 1º Sínodo da Arquidiocese de Vitória), ela se ‘cura’ ao cumprir o seu papel de fundir num plano maior a prática espiritual e a prática política.
Ao optar verdadeiramente por cuidar do céu e da cidade, do cosmo e da polis, a Igreja traz para uma outra dimensão a atividade política, lembra que os frutos de todo o trabalho e de toda vivência humana têm sempre algo de sagrado e sempre colocam a vida plena em primeiro lugar, porque é sempre sagrada não apenas a vida humana mas a de todas as coisas, de todo o cosmos.
E, ao se ‘curar’, a Igreja peregrina acaba por ‘curar’, depurar, sacralizar a própria atividade política. Já não se trata de ver nas pessoas apenas peças de um processo político, por mais transformador ou revolucionário que esse processo seja, ou pretenda ser. Trata-se agora de ver no outro uma realidade mais rica e complexa e ao mesmo tempo mais frágil e carente de afeto, de acolhimento. Trata-se de ver a ação política também como espaço para que as pessoas se irmanem de fato, se reconheçam uns aos outros - o espaço político não deve se pautar apenas pela eficiência, pragmatismo, mesmo que se trate de um espaço revolucionário.
Mesmo porque, talvez somente esse ato de se irmanar e de acolher é que seja realmente revolucionário. A história tem demonstrado à exaustão que a simples eficiência revolucionária - ou transformadora das estruturas sociais e econômicas - não se sustenta, não transforma de fato os indivíduos e, por extensão, as novas instituições que eles criam a partir do processo revolucionário.
Pois, por mais que a ação política revolucionária tenha aprendido a colocar em pauta temas como o respeito às diferenças, a fraternidade, a solidariedade, nos momentos decisivos a chamada dimensão subjetiva, interior, das pessoas é esquecida em nome da defesa ou manutenção do processo revolucionário e, então, as pessoas voltam a ser friamente tratadas apenas como soldados de uma causa ou de um exército.
Assim, é preciso uma abordagem mística, ou transcendente, da ação política transformadora, construir coletivos que sejam de fato sinônimos de acolhimento e amizade, um acolhimento e uma transcendência que não se percam nos primeiros percalços ou urgências do processo de transformação. A ação política tradicional nunca acolhe com a mística e o calor humano necessários para transcender a si própria, ou para se situar numa outra dimensão.
A igreja peregrina pode e deve ser a doadora dessa ação política transcendente. Principalmente nestes tempos de indiferença, hostilidade e desconhecimento do outro, é possível trabalhar com o projeto de uma Igreja que atraia e seduza as pessoas, ao reverenciar em primeiro lugar o acolhimento, e nesse acolhimento propor às pessoas um novo sentido, não somente para a ação política mas para as suas próprias existências: enfim, a Igreja peregrina pode e deve atrair novos sujeitos, se souber construir coletivos onde a própria ação politica esteja sumetida a um sentido maior, o sentido do sagrado, do mistério que há em todos e tudo.
grito dos excluídos 2009 - vitória, es
imagem bem a propósito: a necessidade de uma verdadeira reaproximação entre o movimento popular e a igreja peregrina (ou progressista, para quem preferir), simbolizada por padre Kelder dando uma 'forcinha' para a faixa do CPV, observado por Waldemar Cunha (de verde), presidente do entidade.
Depois da publicação, em julho, de alguns trechos de “O senhor Ventura”, obra em prosa do escritor português Miguel torga, temos neste agosto uma pequena amostra da poesia feita atualmente em Portugal, com poemas selecionados dos blogs portugueses Hospedaria Camões e Casa dos Poetas.
Esta primeira seleção é de poemas mais longos, que refletem uma certa vocação da literatura portuguesa para o abundante, o barroco, para a escrita derramada aos borbotões, sem constrangimentos de parecer obsoleta, sem preocupação de etiquetagens modernas ou pós-modernas.
Mas essa abundância verbal não significa um descolamento de temas atuais, vívidos, e nem impossibilita o presença de uma atmosfera ou tonalidade contemporânea. Atmosfera ora desamparada e melancólica, melancolia bem típica aliás da tão decantada ‘alma’ portuguesa (‘beleza destroçada’) ora despojada/prosaica (‘computador no lixo’, ‘ode ao vinil’) ou com tons de engajamento no coletivo, mas engajamento numa dimensão mais complexa, mais abrangente, como em ‘nós somos’.
Há que registrar ainda duas falas mais para o transcendente (‘crepúsculo’, ‘se o teu olho é simples...’), que certamente se inserem na tradição daquela poesia metafísica (mas de uma metafísica terrena, que se desvela no concreto) tão bem representada pela poesia de Rilke, brevemente desvelada no mês passado.
E por fim a a celebração de venturas/desventuras amorosas e existenciais - ‘duas vezes nada’, 'a secção dos congelados', ‘os amantes inadequados’ e o singelo-contundente ‘as prostitutas’. Aqui, outra infiltração brasileira nessa celebração portuguesa, a mineira Mariana Botelho, com a ardente-generosa entrega de seu ‘toma’.
Leia mais sobre os poetas de Portugal, aqui publicados, em Hospedaria Camões e Casa dos Poetas.
Os trechos publicados abaixo fazem parte do material de divulgação e mobilização do 15º Grito dos Excluídos, cujo lema, em 2009, é “A força da transformação está na organização popular”. O Grito foi lançado em 1995, numa iniciativa da CNNB (leia-se Igreja Católica progressista) junto com os movimentos sociais, e é sempre realizado no 07 de setembro, nos mesmos horários e locais das comemorações do chamado Dia da Independência. Segundo os organizadores, essa é uma forma de chamar a atenção para a longa caminhada que o povo brasileiro tem pela frente, antes de poder se considerar realmente independente e soberano.
O texto e o tema deste ano demonstram que o Grito dos Excluídos não é um evento isolado, circunstancial, que ocorreria apenas por inércia, mas que é paciente e lucidamente construído no interior da chamada Igreja Progressista e junto com os movimentos sociais e as comunidades. Ou seja, mobilizações como essa mostram que amplos setores da Igreja Católica ainda estão comprometidos com a transformação das estruturas sociais e políticas e com as contradições deste mundo terreno, e não apenas com a evolução espiritual de indivíduos e sociedades.
A CNBB acertou em cheio ao eleger para este ano o tema da organização popular. Pois, na verdade, já passou a hora de se promover no país uma reorganização ou um resgate do movimento popular.
Sabemos que o movimento está cada dia mais anestesiado e esvaziado, e muito dessa apatia está na opção, ou necessidade tática, de ter que apoiar (ou ao menos não ameaçar) a estabilidade de um governo que tem claramente um projeto, ou pelo menos uma orientação, democrático-popular, mas que optou por se sustentar cada vez mais nos poderes instituídos, formais ou informais (Congresso, Judiciário, empresários etc) ao invés de se apoiar preferencialmente nas organizações populares e nos movimentos sociais.
Esse afastamento de um governo popular, em relação aos movimentos que o instituíram, torna difícil para esse mesmo governo implementar um projeto mais ousado, criativo e transformador, já que sempre encontrará resistências daquelas forças institucionais com os quais o governo se aliou - e isso independente do grau de corrupção, de desumanidade ou de descompromisso com a vida plena por parte dessas forças. Além disso, perde-se a oportunidade histórica de oferecer às camadas populares a possibilidade aprender a governar, de se co-responsabilizar pelos destinos de seu país, com todos os erros e acertos que um tal aprendizado implicaria.
E se as organizações e as lideranças não são convocadas para participar e se responsabilizar efetivamente pelo governo popular, e se não há uma renovação do movimento através da mobilização e sedução (promovida também pelo governo popular) de novas pessoas até então desligadas do movimento, a conseqüência é aquela apatia, esvaziamento e desorientação do movimento apontada no início. Desorientação que poderá até mesmo repercutir contra o próprio governo, quando se tornarem insustentáveis as pressões golpistas que costumam ser o último recurso de pessoas e forças sociais que nunca se conformam quando um povo começa e despertar e a aprender a dar um novo sentido, uma nova condução às instituições e poderes de Estado.
É nesse contexto que iniciativas como o Grito dos Excluídos são um sopro de alento para aqueles que crêem numa ação política mais espontânea, corajosa e calorosa.
Pois com essa institucionalização e engessamento dos movimentos sociais fica evidente que, neste momento histórico do Brasil, tem falhado o tripé Partido-Governo-Movimentos Sociais. Sabe-se que não tem havido a necessária autonomia entre do PT e dos Movimentos Sociais em relação ao Governo Popular, como também não tem havido a necessária integração entre o PT e os movimentos sociais.
Neste sentido, mais que benvindo é fundamental esse quarto ‘pé’, não somente para ajudar a sustentar o tripé da transformação, mas também para renovar, arejar, animar (no sentido de dar ‘anima’, alma) às pessoas e instâncias que promovem a transformação - e para questioná-las e enfrentá-las quando for o caso.
Veja também
Não fales as palavras dos homens.
Palavras com vida humana.
Que nascem , que crescem, que morrem.
Faze a tua palavra perfeita.
Dize somente coisas eternas
Vive em todos os tempos
Pela tua voz .
Sê o que o ouvido nunca esquece.
Repete-te para sempre.
Em todos os corações.
Em todos os mundos.
cecília meireles
Nos ‘Cânticos’, publicados acima, vemos confirmar-se uma certa afinidade de Cecília Meireles com o poeta alemão Rainer Rilke, que tem alguns de seus poemas publicados abaixo. Ambos são poetas de coisas, poetas que reverenciam o mundo que nos cerca, na sua simples e ao mesmo tempo enigmática aparição: paisagens, casas, cidades, céus, árvores, nuvens, o próprio tempo. Sabe-se que Rilke desenvolvia, principalmente através de suas cartas, quase que uma estética e uma metafísica para explicar sua própria criação poética. Para ele, escrever era uma forma de buscar aquilo que chamava de ‘o espaço interior do mundo’. Escrever seria uma decorrência do cuidado que deveríamos dedicar às coisas, era uma forma de retratar com palavras o ‘indizível’ que há na simples presença dos entes.
Para Rilke, seríamos os “os mais perecíveis entre os perecíveis” de todos os entes, ou seja, os únicos a tomar consciência não só de nossa finitude e precariedade mas também da finitude e precariedade de todos os entes, de todas as coisas que nos cercam. Para Rilke, então, deveríamos existir no mundo como viventes perplexos e admirados, a testemunhar acerca da queda e da precariedade de todas as coisas. E escrever seria uma forma de trazer para o mundo um pouco desse cuidado para com o perecimento das coisas e de nós próprios. Na verdade, escrever seria dar um duplo testemunho, pois é através da escritura que se realizam a delicadeza e o silêncio que existem no perecimento e na finitude das coisas e de nós próprios.
Ao reverenciar e registrar a precariedade, aquele que escreve traz para o ser o que ainda não existe, acrescenta entes ao ser, dá vida ao indizível que há no ser e nos entes, e isso não para evitar o perecimento ou para deixar uma espécie de memória nobre daquilo que se vai, ou qualquer coisa do tipo – escrever seria algo mais profundo, algo mais ôntico e cósmico, e ao mesmo tempo mais inútil, ou menos ‘útil’, é simplesmente dar voz àquilo que não fala, pensa ou sente, mas que no seu silêncio está tão ou mais presente do que ao ser do que nós.
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Rilke é de fato um dos representantes da tradição da poesia filosófica ou metafísica alemã. Aliás, percebe-se como a poesia e o pensamento de Rilke ecoam a filosofia de Heidegger - mas tendo escrito sua obra antes do filósofo alemão. Em sua filosofia Heidegger irá apresentar conceitos como o cuidado e o desvelamento que devemos ter em relação ao ser, a preocupação em resgatar o sentido de ser que se manifesta na aparição das coisas; enfim, naquilo que interessa aqui, há a mesma preocupação, o mesmo desvelo que há em Rilke com a aparição e desaparição das coisas.
Em ambos há também o cuidado em não permitir que sejamos demasiadamente envolvidos pela tecnologia modernosa, com a consequente instrumentalização e padronização da existência. Heidegger fala da existência autêntica em oposição a uma existência inautêntica, a uma existência padronizada, fabricada por uma modernidade na qual o que alimenta a engrenagem é a necessidade de que o indivíduo fale o que todos falam, coma o que todos comam, pense o que todos pensam, sinta o que todos sintam - aliás, uma engrenagem que é extremamente competente em fazer com que sintamos medo e desconforto ao não pensarmos e sentirmos uns iguais aos outros.
Roberto Soares