31/03/2010

igrejas - minas

(ouro preto, minas)

Claro que não se pode esquecer que o fausto e a beleza, a imponência e a solidez das igrejas católicas obedeciam a motivações que iam muito além do simples deleite artístico, estético e da vivência espiritual. Eram também uma manifestação de poder e de dominação e sedução das classes populares.

Além do que, muito dessa pompa e imponência foi construída às custas do sofrimento, do trabalho extremo de escravos e despossuídos da época, como costuma acontecer na construção dos grandes monumentos erigidos ao longo da atribulada história.

(ouro preto, minas)

Mas nada disso pode invalidar exatamente o reconhecimento da imponência e da criatividade, da beleza e harmonia presentes nas igrejas católicas. Mais, tão importante quanto valorizar ou reconhecer a sua riqueza arquitetônica e artística, importa aprender o seu símbolo de transcendência, de instância que possibilita, sugere ou reflete a fusão do homem com o divino, do finito com infinito.

A propósito, não custa lembrar a já bastante conhecida etimologia da palavra religião = religare, ligar novamente. juntar terra e céu, profano e sagrado. Igrejas são, então, momentos onde se cristalizam essas tentativas de reencontro, de religação do homem com o universo, do finito com o Infinito.

E já que o assunto dos poemas deste mês é a relação do homem com o sagrado, o transcendente, e já que estamos em meio à celebração da Semana Santa pelos católicos, nada mais apropriado do que publicar algumas fotografias de igrejas.

Além disso, se as escolhidas são as igrejas católicas é porque, pelo menos no Brasil, são elas que representam abundantemente esses momentos de celebração do sagrado, são elas que juntam beleza e imponência, religiosidade e história.

Enfim, são, tal como os poemas publicados neste mês, belos momentos de celebração, criativas e poéticas manifestações do próprio Espírito – sentido que o filósofo Hegel dá a essa palavra, com todas as suas contradições históricas e ‘dores do parto’, tal como também está lembrado nos comentários acerca dos poemas deste mês.

(ouro preto, minas)

(vilarejo de paraguai, cajuri, minas)

Essa singela e curiosa igrejinha de Paraguai, Zona da Mata de Minas, reflete bem a dupla tarefa das arquiteturas católicas. Aí não se percebe nenhum fausto ou luxo. Mas presente a mesma imponência, tornada ainda ostensiva se contrastada com a simplicidade das casas do vilarejo. Como se, ao mesmo tempo em que fosse uma reconfortadora e reverente memória da presença do Mistério (repare-se na modesta morada dos mortos, plantada em pleno pasto, guardada pela árvore e pela igreja), o templo católico agisse também como uma espécie de vigilância social, política e ideológica em relação aos moradores.


antigo seminário do Caraça, minas

antigo seminário do Caraça, minas


aqui, o mesmo bucolismo de Paraguai e da última igreja de Ouro Preto. No Caraça, a junção da religiosidade com a cultura. Pelo Colégio do Caraça passaram nomes de destaque da arte e da literatura mineiras, e representantes da oligarquia política do estado. O Caraça na wikipédia



fotografias: roberto soares


igrejas - espírito santo





igreja de santo atônio, no bairro de mesmo nome, vitória, es. fotografa do alto do morro da fonte grande. há um agardável choque descobrir - em meio ao verde, ao mar e ao casario popular - a imponente igreja que lembra templos muçulmanos ou hindus


convento da penha, vila velha, es. famoso centro de peregrinação. a propósito, realiza-se na próxima semana, do dia 05 ao 12, a concorrida Festa da Penha. acontece a romaria dos homens, uma das maiores do país. não da para perceber mas o convento está encarapitado no alto de uma íngreme colina, donde se contempla o mar e a maior parte dos municípios da grande vitória (serra, cariacica, vitória e vila velha). pra se ter uma idéia da altura, remeto a uma vista do porto de tubarão e à terceira ponte, embaixo, ambos fotografados lá do alto (veja também o poema terceira ponte nesta edição).



terceira ponte, com vitória à esquerda e vila velha à direita do vídeo

fotografias: roberto soares

poemas para deus

Num certo sentido, a Quaresma não é algo que diga respeito apenas aos católicos, mas a todas as denominações religiosas, e até mesmo aos que não têm nenhuma crença ou vivência religiosa.
Claro, não a Quaresma em si, com todas os seus milenares rituais católicos, mas aquilo que a motiva, que a fundamenta.
Pois a Quaresma, para os católicos, é essencialmente conversão, o tempo de se interiorizar, ocasião para se refletir sobre a sua espiritualidade, a sua relação com Deus.

Dito em termos diferentes dos católicos, é momento para o indivíduo confirmar, fortalecer ou mesmo rever a sua postura em relação a algo maior do que ele, seja esse algo Deus, Fonte, Poder Supremo, Energia, Ser...
E certamente que essa atitude, de indagar acerca da existência dessa Fonte ou Presença Superior, é algo universal, inerente a todo indivíduo, enfim, constitutivo da própria condição humana.

Falta ainda registrar que obviamente não podemos negar a função de repressão, alienação e manutenção da ordem dominante, que é própria das religiões institucionalizadas.
Quanto ao caráter transformador, combativo e libertador de algumas religiões - e principalmente de alguns setores dentro da Igreja Católica, mormente na Igreja Latinoamericana - não é o propósito desses comentários. A esse respeito veja na edição de setembro de 2009 os textos O grito ecoa e O grito e a cura.

O que se vai considerar aqui, tendo como pano de fundo os poemas publicados em março, é o caráter de complexidade da relação do homem com o Ser; o que se entende aqui é que – mesmo que a pretexto de uma ação política ou artística libertadora - não podemos reduzir a inquietude e a interrogação, próprias de nossa constituição ontológica (e que para a maioria das pessoas no mais das vezes se expressa na religiosidade), não podemos reduzir essa inquietação ao fenômeno da religião, principalmente das religiões institucionalizadas, com o seu exército de igrejas e sacerdotes.

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Assim, em meio à sacra atmosfera da Quaresma dos católicos, Desvelar publica neste março poemas que falam de Deus, para Deus, com Deus, contra Deus.

Na verdade, os poemas aqui publicados desmentem o imaginário de que os poetas da modernidade seriam daqueles que mais desafiam, ignoram ou escarnecem do ícone Deus. Para alguns críticos, é até mesmo um sinal de maturidade e evolução artística quando o poeta moderno supera o seu constrangimento ou a sua arrogância para tratar do tema, com toda a seriedade - e a criatividade que lhe for própria.

Para outros, inclusive, a tarefa mais ousada dos poetas e filósofos verdadeiramente criativos e ousados deveria ser a mesma dos místicos, devotos e religiosos extremos, qual seja, chegar o mais próximo possível de Deus, do Sagrado, do da Presença Inapreensível, vê-lo Face a Face – mesmo que, ao contrário dos místicos, essa busca seja para negar a existência ou a validade desse Sagrado, dessa Presença, mesmo que seja para colocar no seu lugar outras divindades, outro Absoluto... outro Deus, tal como a Razão, a História, a Arte, o Belo, a Vida etc.

Enfim, mesmo numa civilização tão racionalista e tecnicista como o é a civilização ocidental - tão distanciada do mistério e da transcendência – não apenas os poetas, filósofos, místicos e religiosos mas qualquer pessoa, que ainda tenha um mínimo de inquietude e de abertura para o mundo, certamente tem que se haver com perguntas e descobertas acerca da origem e do sentido dela próprio e das realidades que nos cercam, que nos solicitam, nos desafiam, nos oprimem ou nos encantam.

Afinal, ainda não estamos completamente mergulhados num asséptico, incolor e assustado mundo de plástico e de vida eletrônica, ainda somos de carne, osso e consciência, ou espírito, ou alma, para quem preferir.

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Como os comentários estão um tanto ou quanto longos, preferi não publicá-los num texto único, num só bloco. Assim, logo após cada poema, vêm os respectivos comentários, que vão se encadeando e s e complementando, como se num só texto.

Aos poemas para Deus, de Deus.

Roberto Soares (Quaresma de 2010)

29/03/2010

fiat lux: e deus se faz

no princípio eram trevas
meus olhos abriram-se
e fizeram a luz

no escuro
uma pequena luz
é maior que toda a escuridão
que arranha meus olhos
como a luz era boa
enxerguei nela um homem

vicente gonçalves
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Vicente Filho abre em grande estilo e ousado tema: numa releitura do Gênesis bíblico, poetiza com admirável intuição nada mais nada menos do que o parto do próprio Deus que, ao se fecundar e se parir, dá origem ao próprio Ser, que ao final da contas é Ele próprio. Ao fim, bastante perspicaz a identificação da luz com o homem, criatura predileta do Criador.

Luz e homem, homem iluminado que, habitado pelo Espírito, ao final retornará ao próprio Criador, tendo como projeto maior se cumprir como os olhos do próprio Deus. Nesse caminhar, nessa jornada ao longo dos milênios o homem se tornando cada vez mais luz, lucidez, assumindo-se e elevando-se da matéria puramente inanimada ou animal para ascender-se como Espírito, como Luz, parte constituinte da própria Fonte, do próprio Deus.

E assim, o homem nada mais é do que Deus em processo, é Deus se construindo a duras penas ao longo dos milênios e da História, abdicando de ser apenas Espírito Absoluto para se tornar finito, frágil, aberto - o alemão Hegel trouxe para a Filosofia profundas considerações sobre essa Dialética entre Espírito e Natureza.

Mas - numa abordagem menos metafísica e mais poética, ou mística -, esse processo de se transmutar em finito e fragilidade é também uma forma de Deus admirar-se a si próprio, de se louvar a si próprio através dos olhos e dos êxtases do homem, enfim, de se testemunhar a si próprio enquanto Criação e criatura.
Assim, nessa troca mútua e constante pelos séculos dos séculos, homem e Deus se confundem numa só realidade, num só advento, o homem aos poucos apreendendo que o que lhe cabe ao fim de tudo é buscar agir, viver e sentir como os olhos da Fonte, como aliás já cantava um antigo poeta da Galiléia: “Vós sois os olhos do mundo”.

O poeta Vicente Filho tem essa rara capacidade de captar com singela essência - em versos despojados e aparentemente simples - a poderosa e complexa realidade que nos rodeia, da qual somos feitos e para a qual somos feitos.

28/03/2010

que vais fazer, Deus?

que vais fazer, Deus, se eu morrer?
eu sou teu cântaro (e se eu me quebrar?)
eu sou tua água (e se eu me estagnar?)
eu sou teu hábito e sou teu ofício;
sem mim, tu perderias a razão de ser...

depois de mim, não terás casa em que
palavras próximas e tépidas te acolham
vai cair de teus fatigados pés
a sandália macia que sou eu.

teu largo manto deixar-se-á cair.
teu olhar, que com minhas faces eu
aqueço, como se com almofadas,
virá de longe a procurar por mim
- e ao pôr-do-sol se porá
no colo de estranhas rochas.

que vais fazer, Deus? estou preocupado.

rainer maria rilke (livro de horas, ed. civilização brasileira, 1994)

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Esse poema de Rilke é como um eco, uma pereita confirmação daquilo que foi dito há pouco: com sua costumeira mescla de delicadeza e transcendência, Rilke faz uma verdadeira sagração da simbiose entre Deus e homem.

Rilke dispensa comentários muito longos, mesmo porque a sua poesia já foi comentada aqui no Desvelar, em julho de 2009 (silêncios e desvelos I e silêncios e desvelos II).
De qualquer forma registre-se mais uma vez a admirável e reverente singeleza com a qual Rilke aceita e celebra a condição humana de ser ao mesmo tempo fruto e suporte de Deus - poema que se supera enquanto tal, transmutando-se numa verdadeira, lúcida e profunda oração àquilo que existe, autêntica e suficiente simbiose entre Ser e Verbo, entre a árvore e o fruto: o ser se oferecendo enquanto Verbo, o Verbo percebendo e nomeando o Ser, e se reconhecendo enquanto fruto do Ser.

a Deus

tua delicadeza não bastou
quero chamas a consumir
os cataventos se foram
e meu rosto desaba no espelho

quero uma aliança com o eterno
que se renove na imensidão
da morte
e quando o equinócio chegar
quero estar no seu zênite

como um deserto que reflete
como um deserto que não termina
e se dana
na própria infinitude

quero-te e não te quero
aos demônios ouço
e te persigo
e me arrebato em tua poesia
inefável


retenho a vida, forte e insubmisso
tramas a minha morte
sou anjo de pedra
pedra ou sonho?
vida ou torpor?


sou-te e não me abrigo
tens a mim e não me possuis
amo-te e não entendo
a razão deste amor

carlos ernesto
(cartas ao mar fechado, edição do autor, 1979)

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Mas, interrompendo a vívida celebração de Vicente e Rilke, com o poema de Carlos Ernesto brota já uma primeira dissidência, um primeiro desafio à onipotência da divindade. Há na verdade uma como que rebelião da razão contra o mistério, do finito contra o infinito.
É como um grito que misturasse raiva e impotência, fascínio e lamento, pelo fato de a razão do poeta-filósofo não conseguir captar em sua inteireza o mistério do ser, e principalmente não conseguir se apreender no meio da rica ambigüidade humana, que é ser ao mesmo tempo fruto e alimento do Espírito.

É um magnífico e rico desfile de imagens a ilustrar a ambígua condição de alguns poetas do ocidente, a condição de ateus arrependidos e nostálgicos. Como se o Ser, o Mistério, não desse ao poeta ocidental outra opção que não um ateísmo, a partir do momento em que não se nos revela de forma clara, racional, a partir do momento em Deus não se nos manifesta de forma inequívoca, com sinais claros no céu da nossa vida e da nossa História.

A condição de ateu arrependido provém então, dessa incapacidade de poetas e filósofos do Ocidente em apreenderem o Mistério e o Sagrado através da simples intuição - ou daquilo que os religiosos chamam de fé – exigindo que esse Sagrado, que essa Fonte se manifeste de forma racional, ou pelo menos de forma mais direta, que jogue de igual para igual com o homem, e não do alto de sua obscura, intangível e arrogante realidade.
E ao mesmo tempo há uma certa nostalgia nesse ateísmo, uma saudade de um obscuro tempo de inocência, provavelmente na infância, quando tudo é magia, comunhão, celebração do mundo e do Mistério.

No fim do poema, um interessante e denso jogo entre rendição e resistência, entre comunhão e distanciamento, esse jogo de presença e fuga com que o Ser se apresenta àqueles que procuram inutilmente capturá-lo, desvelá-lo em toda sua inteireza, ou por outra, esse jogo com que Deus se apresenta àqueles que buscam vê-lo de perto, Face a Face

obsessão

não posso esconder:
- Deus é um troço
que me incomoda

inseto algures
na noite em claro

inquieta pulga
que me passeia
fazendo cócegas.

Deus me aflige
como doença
que progredisse
secretamente.

Deus é um bicho
de estimação.
se o escorraço
Deus me perdoa
e volta, à-toa.

Deus me persegue
como um remorso

waldo motta
(salário da loucura, 1984)
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Waldo Motta, num tom mais tranquilo, coloquial, menos iracundo e trágico do que no poema de Ernesto, reconhece e descreve com maestria e com mais leveza esse jogo de esconde-esconde.
Ao final, o poema deixa explícita aquela ambígua condição que no poema de Ernesto era apenas vislumbrada: a incômoda situação de ateu arrependido que envolve o poeta, o poeta tomado pelo ‘remorso’ de, ao contrário das chamadas pessoas comuns, não conseguir vivenciar, com simplicidade e confiança, realidades como Deus, Mistério, Fonte.

É preciso registrar que Waldo Motta é, neste país, um dos poucos poetas de renome que vem assumindo com todas as letras a temática de Deus, da religiosidade e do sagrado em sua obra, não se incomodando em arranhar sua reputação de poeta marginal, iconoclasta, com essa explícita opção pelo sagrado.

Isso, em se tratando de um dos mais criativos, radicais e desbocados poetas da atualidade brasileira, não é pouca coisa, e só vem ilustrar a afirmação feita acima: a de que a maturidade artística e poética não tem que necessariamente excluir o tema do sagrado e do divino, nem tem que se ater apenas a dissecações e malabarismos verbais e semióticos, pelo contrário, a maturidade pode e deve se dar pelo poder de síntese, de amplitude, de superação de etapas.

Waldo, na verdade, tem trilhado um caminho que dificilmente pode ser rotulado de apenas artístico ou poético, é uma construção que procura plasmar numa só arquitetura elementos de arte, ciência, religião, história, misticismo, cabala, entre outras manifestações do conhecimento humano - ou do Espírito, se assim preferirem os hegelianos.

Oportunamente, Desvelar publicará um comentário mais aprofundado da obra de Waldo Motta, para que o leitor tire as próprias conclusões acerca de suas propostas – polêmicas, para dizer o mínimo.

os vestígios

OS VESTÍGIOS DA MORDIDA no nenhures.

Também a isso
tens de combater
a partir daqui


paul celan
(fiaposóis, ed. tempo brasileiro, 1985)

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Paul Celan vai além das dúvidas e ambiguidades de Ernesto e Waldo. Não deixa nenhuma margem para qualquer espécie de comunhão com o sagrado, não se coloca a disposição para tocar, ‘morder’ o longínquo e o mistério
O fato é que Celan vivenciou por demais - ou introjetou excessivamente - o aspecto áspero da vida e do mundo; em parte pelo fato de a sua mãe ter sido assassinada num campo de concentração nazista, em parte pela sua sensibilidade de poeta visceralmente comprometido com o seu tempo e, assim, ele não elabora uma obra crente, ou por demais poética, para ele não fazia sentido poetizar o que não é poetizável.

Se não há em Celan espaço para a mera idolatria do belo, muito menos o há para a Utopia e para o Sagrado. O nenhures, o intangível, o longínquo, recusado e combatido pelo poeta, tanto pode significar a utopia proposta pela Razão ou pela Revolução, quanto a morada do Sagrado, o desvelamento de uma transcendente Presença, de uma suposta Fonte, Deus – tudo isso tem de ser esquecido, ignorado, ‘combatido’ a partir deste mundo e por causa deste mundo, ou das ‘cabeças monstruosas’ que dirigem este mundo, tal como diz em outro de seus poemas:

‘as cabeças, monstruosas, e a cidade
que elas constroem, em busca da
felicidade’


Aparentemente, esse combate e recusa ao sagrado por parte de Celan seria o equivalente da posição marxista de ver a religiosidade meramente como fonte de alienação, o famoso ‘ópio do povo’ - ou Deus como mera e complexa criação das subjetividade humana, para responder aos seus anseios e angústias, medos e impotências frente ao Real.

Mas aqui há uma situação mais complexa, Celan não reduz a religiosidade e a transcendência a apenas um narcótico, uma ilusão existencial. E não podendo recusar totalmente a possibilidade e a necessidade de transcendência para o homem, Celan também é atravessado por aquele mesmo dilema do qual falamos há pouco, aquela ambiguidade que envolve alguns poetas modernos na sua relação com o sagrado: não o nega, mas também não o assume, não o apreende mas também não consegue ignorá-lo.

Uma inequívoca mostra da presença desse dilema na obra de Celan é um poema já publicado aqui no Desvelar, no por ocasião do natal de 2008: apesar de um tom levemente irônico, o poema nos passa a impressão daquela mesma saudade de uma fé ou de uma crença que nunca existiram integralmente, daquela mesma sensação de ‘remorso’ da qual fala Waldo Motta, daquela mesma impressão de estar ao mesmo tempo próximo e distante do Sagrado, dentro e fora do divino, da qual fala Ernesto.

E no caso de Celan as suas dúvidas, inquietudes, dilemas, levaram-no realmente a uma poesia visceral, contribuindo talvez para literalmente destruí-lo. Afinal, o seu suicídio, em 1970, certamente que em parte deve ter sido provocado pela sua incapacidade de crer numa possibilidade de redenção para a humanidade, para a história e para a própria condição humana.
Celan não logrou ou não quis essa crença, fosse através da ação política, da beleza artística ou mesmo da apreensão do sagrado, do divino que há na história e no mundo, e que nos cabe desvelar e mesmo ajudar a construir, cada um da forma que puder.
O poeta não conseguiu acreditar que seria possível para o poeta resistir ao mal e ao erro espalhado no mundo pelas ‘cabeças monstruosas’; não vislumbrou que é possível e necessário, não somente ao poeta mas a qualquer indivíduo, contribuir para extirpar do mundo as condições sociais objetivas que sustentam essas ‘cabeças monstruosas’, mesmo que essa vitória não se dê ao longo de nosso breve tempo de vida.

pluma noturna

precisava ver!!!
acima o canto, fora do normal
preso, numa pluma viva
à vida fugidia ia

a gemer duplamente
vôo pra baixo
e entôo alto
o tom da canção

um vazio longe de encontros
navega sem leme, sem lua
sem mar... à glória
que nunca há

vicente gonçalves

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Este outro poema de Vicente Filho, se não trata abertamente do Sagrado, traz qualquer coisa de diáfano, de obscuro, que o aproxima do tema.
Não deixa de ter uma certa relação com o poema de Celan, como se Vicente estivesse a labutar com palavras e sensações, numa precária e inglória tentativa de tocar o intangível ‘nenhures’, de descrever o indizível, de colocar no papel aquilo que não se apreende claramente enquanto sentimento ou percepção, e muito menos enquanto manifestação de palavras claras, ordenadas.

Apesar disso, Vicente Filho, além de se dispor a ‘morder o nenhures’, ainda braceja para trazê-lo para perto, mesmo sabendo da impossibilidade de realizar plenamente tal tarefa – ou talvez por isso mesmo, insistindo nesse ‘canto fora do normal’, entendendo que essa talvez seja uma das mais viscerais tarefas do poeta: forcejar por dizer o indizível, mesmo sabendo-o indizível, mesmo sabendo que essa sua tarefa está condenada a uma ‘glória que nunca há’.

18/03/2010

março

Como se pode perceber, o tema dos poemas deste mês é nada mais nada menos que o Indizível, o Todo, a Presença, o Mistério, o Ser, a Fonte, ou se se preferir, simplesmente Deus. Comentários, e mais poemas, até o final do mês.

16/03/2010

brasilianas (I)


No dia 1º de março, aconteceu em São Paulo o ‘Fórum Democracia e Liberdade de Expressão’, organizado pelo Instituto Millenium. Participaram do encontro conhecidas figuras do jornalismo, do mundo acadêmico, empresarial e da política: Arnaldo Jabor, Demétrio Magnoli, Carlos Alberto Di Franco, Reinaldo Azevedo, o ex-ministro do Planejamento Antônio Palocci e o ministro das Comunicações Hélio Costa, entre outros.

Pela diversidade de áreas profissionais e pela competência profissional dos expositores - e até mesmo pela presença de membros ou ex-membros do governo Lula - poder-se-ia esperar que houvesse sido realmente um encontro para tratar com seriedade, responsabilidade e isenção partidária, do tema proposto, a saber, a liberdade de expressão na democracia.
Mas o que se viu não foi bem isso. Segundo relatos de várias fontes, o que ocorreu foi uma espécie de preparação dos setores anti-populares para as eleições presidenciais deste ano, preparação desesperada e descarada, pelo que se deduz da leitura do texto abaixo.

Na verdade poderíamos até mesmo acrescentar o rótulo de esquizofrênico a esse encontro. Afinal, numa definição bastante superficial esquizofrenia é um sintoma de quem vive dividido entre duas realidades opostas, ou melhor, de quem vive dividido entre o mundo real, concreto, e um mundo inventado, acolhedor, fictício mas protetor.
E parece que é que ocorre com os participantes do tal encontro: parece que ainda não se deram conta do irreversível processo de transformação política e social iniciado há já quase uma década no Brasil e na América Latina.

E, dependendo da evolução do esgotamento capitalista e da capacidade de articulação, mobilização e proposição de um movimento anticapitalista em nível global, tal processo pode em breve se estender ao mundo como um todo.
Aí, de um jeito ou de outro, os esquizofrênicos deste país e deste mundo vão ter que acordar e aprender a viver no novo mundo que já temos como construir; e com certeza vão gostar muito mais desse novo mundo, quando puderem tirar os véus que lhes cobrem os olhares que, apesar de inteligentes e argutos, ainda não aprenderam a desvelar com generosidade o mundo e a vida em toda sua inteireza e transcendência.
Abaixo, a reportagem da jornalista Bia Barbosa, que esteve presente ao encontro do Instituto Millenium, originalmente publicada no no site da Carta Maior.

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Encontro promovido em São Paulo por setores da grande mídia, na segunda-feira (1º), expôs o preconceito, a desinformação e o desespero da direita brasileira com a possibilidade de vitória da ministra Dilma Rousseff nas eleições presidenciais deste ano. Com profundo ranço ideológico, e sem reservas, os expositores falaram da necessidade de organizar o discurso e a ação para evitar um eventual terceiro governo democrático popular.

Se algum estudante ou profissional de comunicação desavisado pagou os R$ 500,00 que custavam a inscrição do 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, organizado pelo Instituto Millenium, acreditando que os debates no evento girariam em torno das reais ameaças a esses direitos fundamentais, pode ter se surpreendido com a verdadeira aula sobre como organizar uma campanha política que foi dada pelos representantes dos grandes veículos de comunicação nesta segunda-feira, em São Paulo.

Promovido por um instituto defensor de valores como a economia de mercado e o direito à propriedade, e que tem entre seus conselheiros nomes como João Roberto Marinho, Roberto Civita, Eurípedes Alcântara e Pedro Bial, o fórum contou com o apoio de entidades como a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), ANER (Associação Nacional de Editores de Revista), ANJ (Associação Nacional de Jornais) e Abap (Associação Brasileira de Agências de Publicidade). E dedicou boa parte das suas discussões ao que os palestrantes consideram um risco para a democracia brasileira: a eleição de Dilma Rousseff.

A explicação foi inicialmente dada pelo sociólogo Demétrio Magnoli, que passou os últimos anos combatendo, nos noticiários e páginas dos grandes veículos, políticas de ação afirmativa como as cotas para negros nas universidades. Segundo ele, no início de sua história, o PT abrangia em sua composição uma diversidade maior de correntes, incluindo a presença de lideranças social-democratas. Hoje, para Magnoli, o partido é um aparato controlado por sindicalistas e castristas, que têm respondido a suas bases pela retomada e restauração de um programa político reminiscente dos antigos partidos comunistas.

“Ao longo das quatro candidaturas de Lula, o PT realizou uma mudança muito importante em relação à economia. Mas ao mesmo tempo em que o governo adota um programa econômico ortodoxo e princípios da economia de mercado, o PT dá marcha ré em todos os assuntos que se referem à democracia. Como contraponto à adesão à economia de mercado, retoma as antigas idéias de partido dirigente e de democracia burguesa, cruciais num ideário anti-democrático, e consolida um aparato partidário muito forte que reduz brutalmente a diversidade política no PT. E este movimento é reforçado hoje pelo cenário de emergência do chavismo e pela aliança entre Venezuela e Cuba”, acredita. “O PT se tornou o maior partido do Brasil como fruto da democracia, mas é ambivalente em relação a esta democracia. Ele celebra a Venezuela de Chávez, aplaude o regime castrista em seus documentos oficiais e congressos, e solta uma nota oficial em apoio ao fechamento da RCTV”, diz.

A RCTV é a emissora de TV venezuelana que não teve sua concessão em canal aberto renovada por descumprir as leis do país e articular o golpe de 2000 contra o presidente Hugo Chávez, cujo presidente foi convidado de honra do evento do Instituto Millenium. Hoje, a RCTV opera apenas no cabo e segue enfrentando o governo por se recusar a cumprir a legislação nacional. Por esta atitude, Marcel Granier é considerado pelos organizadores do Fórum um símbolo mundial da luta pela liberdade de expressão – um direito a que, acreditam, o PT também é contra.

“O PT é um partido contra a liberdade de expressão. Não há dúvidas em relação a isso. Mas no Brasil vivemos um debate democrático e o PT, por intermédio do cerceamento da liberdade de imprensa, propõe subverter a democracia pelos processos democráticos”, declarou o filósofo Denis Rosenfield. “A idéia de controle social da mídia é oficial nos programas do PT. O partido poderia ter se tornado social-democrata, mas decidiu que seu caminho seria de restauração stalinista. E não por acaso o centro desta restauração stalinista é o ataque verbal à liberdade de imprensa e expressão”, completou Magnoli.

O tal ataque

Para os pensadores da mídia de direita, o cerco à liberdade de expressão não é novidade no Brasil. E tal cerceamento não nasce da brutal concentração da propriedade dos meios de comunicação característica do Brasil, mas vem se manifestando há anos em iniciativas do governo Lula, em projetos com o da Ancinav, que pretendia criar uma agência de regulação do setor audiovisual, considerado “autoritário, burocratizante, concentracionista e estatizante” pelos palestrantes do Fórum, e do Conselho Federal de Jornalistas, que tinha como prerrogativa fiscalizar o exercício da profissão no país.

“Se o CFJ tivesse vingado, o governo deteria o controle absoluto de uma atividade cuja liberdade está garantida na Constituição Federal. O veneno antidemocrático era forte demais. Mas o governo não desiste. Tanto que em novembro, o Diretório Nacional do PT aprovou propostas para a Conferência Nacional de Comunicação defendendo mecanismos de controle público e sanções à imprensa”, avalia o articulista do Estadão e conhecido membro da Opus Dei, Carlos Alberto Di Franco.
“Tínhamos um partido que passou 20 anos fazendo guerra de valores, sabotando tentativas, atrapalhadas ou não, de estabilização, e que chegou em 2002 com chances de vencer as eleições. E todos os setores acreditaram que eles não queriam fazer o socialismo. Eles nos ofereceram estabilidade e por isso aceitamos tudo”, lamenta Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja, que faz questão de assumir que Fernando Henrique Cardoso está à sua esquerda e para quem o DEM não defende os verdadeiros valores de direita. “A guerra da democracia do lado de cá esta sendo perdida”, disse, num momento de desespero.

O deputado petista Antonio Palocci, convidado do evento, até tentou tranqüilizar os participantes, dizendo que não vê no horizonte nenhum risco à liberdade de expressão no Brasil e que o Presidente Lula respeita e defende a liberdade de imprensa. O ministro Hélio Costa, velho amigo e conhecido dos donos da mídia, também. “Durante os procedimentos que levaram à Conferência de Comunicação, o governo foi unânime ao dizer que em hipótese alguma aceitaria uma discussão sobre o controle social da mídia. Isso não será permitido discutir, do ponto de vista governamental, porque consideramos absolutamente intocável”, garantiu.
Mas não adiantou. Nesta análise criteriosa sobre o Partido dos Trabalhadores, houve quem teorizasse até sobre os malefícios da militância partidária. Roberto Romano, convidado para falar em uma mesa sobre Estado Democrático de Direito, foi categórico ao atacar a prática política e apresentar elementos para a teoria da conspiração que ali se construía, defendendo a necessidade de surgimento de um partido de direita no país para quebrar o monopólio progressivo da esquerda.

“O partido de militantes é um partido de corrosão de caráter. Você não tem mais, por exemplo, juiz ou jornalista; tem um militante que responde ao seu dirigente partidário (...) Há uma cultura da militância por baixo, que faz com que essas pessoas militem nos órgãos públicos. E a escolha do militante vai até a morte. (...) Você tem grupos políticos nas redações que se dão ao direito de fazer censura. Não é por acaso que o PT tem uma massa de pessoas que considera toda a imprensa burguesa como criminosa e mentirosa”, explica.

O “risco Dilma”
Convictos da imposição pelo presente governo de uma visão de mundo hegemônica e de um único conjunto de valores, que estaria lentamente sedimentando-se no país pelas ações do Presidente Lula, os debatedores do Fórum Democracia e Liberdade de Expressão apresentaram aos cerca de 180 presentes e aos internautas que acompanharam o evento pela rede mundial de computadores os riscos de uma eventual eleição de Dilma Rousseff. A análise é simples: ao contrário de Lula, que possui uma “autonomia bonapartista” em relação ao PT, a sustentação de Dilma depende fundamentalmente do Partido dos Trabalhadores. E isso, por si só, já representa um perigo para a democracia e a liberdade de expressão no Brasil.

“O que está na cabeça de quem pode assumir em definitivo o poder no país é um patrimonialismo de Estado. Lula, com seu temperamento conciliador, teve o mérito real de manter os bolcheviques e jacobinos fora do poder. Mas conheço a cabeça de comunistas, fui do PC, e isso não muda, é feito pedra. O perigo é que a cabeça deste novo patrimonialismo de estado acha que a sociedade não merece confiança. Se sentem realmente superiores a nós, donos de uma linha justa, com direito de dominar e corrigir a sociedade segundo seus direitos ideológicos”, afirma o cineasta e comentarista da Rede Globo, Arnaldo Jabor. “Minha preocupação é que se o próximo governo for da Dilma, será uma infiltração infinitas de formigas neste país. Quem vai mandar no país é o Zé Dirceu e o Vaccarezza. A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo”, alerta Jabor.

Para Denis Rosenfield, ao contrário de Lula, que ganhou as eleições fazendo um movimento para o centro do espectro político, Dilma e o PT radicalizaram o discurso por intermédio do debate de idéias em torno do Programa Nacional de Direitos Humanos 3, lançado pelo governo no final do ano passado. “Observamos no Brasil tendências cada vez maiores de cerceamento da liberdade de expressão. Além do CFJ e da Ancinav, tem a Conferência Nacional de Comunicação, o PNDH-3 e a Conferência de Cultura. Então o projeto é claro. Só não vê coerência quem não quer”, afirma. “Se muitas das intenções do PT não foram realizadas não foi por ausência de vontades, mas por ausência de condições, sobretudo porque a mídia é atuante”, admite.

Hora de reagir

E foi essa atuação consistente que o Instituto Millenium cobrou da imprensa brasileira. Sair da abstração literária e partir para o ataque.
“Se o Serra ganhasse, faríamos uma festa em termos das liberdades. Seria ruim para os fumantes, mas mudaria muito em relação à liberdade de expressão. Mas a perspectiva é que a Dilma vença”, alertou Demétrio Magnoli.
“Então o perigo maior que nos ronda é ficar abstratos enquanto os outros são objetivos e obstinados, furando nossa resistência. A classe, o grupo e as pessoas ligadas à imprensa têm que ter uma atitude ofensiva e não defensiva. Temos que combater os indícios, que estão todos aí. O mundo hoje é de muita liberdade de expressão, inclusive tecnológica, e isso provoca revolta nos velhos esquerdistas. Por isso tem que haver um trabalho a priori contra isso, uma atitude de precaução. Senão isso se esvai. Nossa atitude tem que ser agressiva”, disse Jabor, convocando os presentes para a guerra ideológica.
“Na hora em que a imprensa decidir e passar a defender os valores que são da democracia, da economia de mercado e do individualismo, e que não se vai dar trela para quem quer a solapar, começaremos a mudar uma certa cultura”, prevê Reinaldo Azevedo.
Um último conselho foi dado aos veículos de imprensa: assumam publicamente a candidatura que vão apoiar. Espera-se que ao menos esta recomendação seja seguida, para que a posição da grande mídia não seja conhecida apenas por aqueles que puderam pagar R$ 500,00 pela oficina de campanha eleitoral dada nesta segunda-feira.

brasilianas (II)


No endereço ‘É triste estarmos falando em lulismo’, uma breve mas reveladora entrevista com Mauro Iasi (um dos fundadores do PT), o leitor encontrará uma lúcida crítica, tanto às limitações do governo Lula quanto às do próprio PT, em relação à necessidade de articular, de promover com mais urgência e intensidade a real hegemonia e participação direta dos setores populares na condução do país.

Claro, cada um tem o seu ponto de vista em relação aos avanços e limitações do governo petista e em relação ao realismo político das correntes majoritárias do PT, com a sua postura de fazer concessões e alianças conservadoras, em nome do acúmulo de forças e de um pretenso processo de transformação socialista, gradual mas seguro, que assim não oportunidade ou pretextos para os setores antipopulares promoverem o retrocesso, a interrupção do avanço popular.

Mas, por isso mesmo, é sempre bom ouvir as vozes contrárias, que alertam para as distorções, para as conseqüências do abandono de princípios e estratégias essenciais num real processo de construção popular, em nome do realismo político, da governabilidade e da manutenção da institucionalidade. Nada como exercer de fato o raciocínio e a postura dialética, que exigem sempre o respeito e a lúcida atenção às diversas concepções e práticas envolvidas no processo de transformação popular.

Além disso, a entrevista com Iasi é um ótimo contraponto: no texto sobre o Instituto Millenium o que se vê são críticas e impropérios ao PT oriundas dos representantes das elites, já na entrevista as críticas vêm de um militante de um partido com uma postura mais à esquerda, ou mais radical que o do PT.
Por aí se vê como o processo é um pouco mais complexo do que crêem tanto os setores mais moderados quanto os expoentes com discurso radicalizado, independente de quão lúcidas, acuradas e bem articuladas sejam as análises que um lado e outro faz da lutas e dos governos populares.
Trecho: "Seu respaldo em amplos setores dos trabalhadores representa mais uma hegemonia passiva do que de fato uma organização independente que colocaria os trabalhadores na cena política na defesa de seus interesses de classe. O apoio, eleitoral e midiático, dos setores mais empobrecidos deve-se a uma mescla de assistencialismo e características carismáticas que emanam da liderança de Lula, acima do partido e muitas vezes contra ele. O PT esperava colocar a classe trabalhadora com independência e autonomia no cenário político e de fato não é isso que vemos. "
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O artigo A miséria moral de ex-esquerdistas pode ser lido como uma contundente análise do sociólogo Emir Sader aos discursos e à prática de alguns dos presentes no encontro do Instituto Millenium, e que um dia defenderam posições ideológicas e posturas de vida completamente opostas às que abraçam hoje.
Trecho: "Viraram pobres diabos, que vagam pelos espaços que os Marinhos, os Civitas, os Frias, os Mesquitas lhes emprestam, para exibir seu passado de pecado, de devassidão moral, agora superado pela conduta de vigilantes escoteiros da direita. A redação de jornais, revistas, rádios e televisões está cheia de ex-trotskistas, de ex-comunistas, de ex-socialistas, de ex-esquerdistas arrependidos, usufruindo de espaços e salários, mostrando reiteradamente seu arrependimento, em um espetáculo moral deprimente."

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Ainda nessa seleção de textos que tratam de questões especificamente nacionais, vale conhecer um pouco mais da história e da atual situação da Escola Florestan Fernandes, combativo centro de formação idealizado, criado e mantido pelo MST, mas que é aberto a toda e qualquer entidade ligada à luta popular. Veja na matéria Vamos manter viva a universidade dos trabalhadores.
Trechos: "A escola oferece cursos de nível superior, ministrados por mais de 500 professores, nas áreas de Filosofia Política, Teoria do Conhecimento, Sociologia Rural, Economia Política da Agricultura, História Social do Brasil, Conjuntura Internacional, Administração e Gestão Social, Educação do Campo e Estudos Latino-americanos. Além disso, cursos de especialização, em convênio com outras universidades (por exemplo, Direito e Comunicação no campo). (...)
(...) Claro que esse processo provocou a ira da burguesia e de seus porta-vozes "ilustrados". Não faltaram aqueles que procuraram, desde o início, desqualificar a qualidade do ensino ali ministrado, nem as "reportagens" sobre o suposto caráter ideológico das aulas (como se o ensino oferecido pelas instituições oficiais fosse ideologicamente "neutro"), ou ainda as inevitáveis acusações caluniosas referentes às "misteriosas origens" dos fundos para a sustentação das atividades. As elites, simplesmente, não suportam a ideia que os trabalhadores possam assumir para si a tarefa de construir um sistema avançado, democrático, pluralista e não alienado de ensino. Maldito Paulo Freire!".

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Finalizando, no blog do Miro, o texto Veja apela para bandidos traz um análise precisa de como já estão sendo eficientemente colocadas em prática as diretrizes elaboradas no Fórum do Instituto Millenium:

Trecho: "A Casa Millenium, que reúne a lama da direita midiática nativa, deveria instituir um prêmio para os seus freqüentadores mais sádicos. A revista Veja já é uma forte concorrente. Logo após o seu convescote, ela já produziu duas capas espalhafatosas contra a campanha de Dilma Rousseff."

terceira ponte...

...primeiras manhãs

digo que o impalpável deus mistério
tem dias que dá de dormitar e orar
nestas bandas aqui do mundo

acontece:
os raios engenheiros do sol
vêm vistoriar a ponte e a manhã
mas se esquecem e se encantam:
brincam
cintilam
tintilam
nas águas profundas da baía
toda céu-dourada lá pelas dez horas

parece:
ora querem trazer o céu para a terra
ora querem fundir mar-e-céu azuzuis
ora querem
afundar e
dormir
ali

parece - e acontece – uma
oração de alegria azul dourada e calada
(danada de bonita, uai!)

roberto soares

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Este meu poema, e mais os três que se seguem, querem tão somente uma celebração do divino no meio mesmo do mundo. Três despretensiosas e singelas tentativas de desvelar a fugitiva presença do Ser em meio à infinidade de entes e fenômenos que povoam o Real, sem tentar fixar o Indizível, o Difuso, de forma desesperada ou exigente; ao contrário, a única preocupação é a de identificar e reconhecer o divino em realidades concretas, bem ao alcance nossos olhos e mãos: os raios do sol, o vento, os lírios, azul, o mar.
O poema terceira ponte, primeiras manhãs eu o escrevi em 98, logo nos primeiros meses de minha chegada aqui em Vitória. Publico aqui uma fotografia da Terceira Ponte.
Quanto a deus nos lírios, poema da portuguesa Renata Botelho, foi extraído do blog Hospedaria Camões.
Note-se o vigoroso contraste do poema a pérola... com o poema pluma noturna, ambos de Vicente Filho: no primeiro o sagrado é nomeado e apontado com firmeza, confiança e ímpeto quase guerreiro, ao passo que no segundo poema, como já apontamos tudo é difícil, hesitante, difuso.
A registrar ainda que tempo, vazado num tom mais engajado e menos metafórico, mais prosaico, não se detém tanto nessa ênfase da pura celebração - ou melhor, não faz a celebração do homem em meio aos entes do mundo, faz a celebração do homem em meio à sua própria história, embora, claro, uma celebração meio amarga, ou mais lúcida.
Uma reverente prospecção do mistério que se manifesta na história que fazemos, uma politização transcendente, uma inserção desta mesma história que fazemos num horizonte maior, no vasto e enigmático horizonte do tempo ao qual não temos acesso - bem, pelo menos enquanto não podemos ou não conseguimos ver a Fonte face a face.

a pérola nossa de cada dia

o que é uma pérola
são os olhos
uma linda boca
o nariz

deus, o que é deus
o mar o vento o sol
e se deus for a pérola dos olhos
e o vento que entrando
da beira do mar
em minhas narinas
em minha boca resfolegante
e o sol resplandecendo na manhã

aí sim, é deus

vicente gonçalves

deus nos lírios

sinto deus, todas as noites, nos lírios
de monet. olham para mim
por esta sombra incerta que morre
aos poucos comigo, cobrem
de seiva viva a escuridão da casa
e afastam os demônios
que se escondem nas frestas do sono.

pela manhã, junto as pétalas tenras
caídas no lençol, e rezo baixinho
com os pardais, um verso branco.


renata correia botelho - portugal
(blog hospedaria camões)

tempo

crianças correndo na chuva
o rio da vida segue impiedoso
e as lágrimas escorrem
como a areia do tempo.

às vezes sonho o passado
acordo em lágrimas
às vezes durmo presente
acordo futuro
danço na linha do tempo
invento formas
defino conteúdos
de vidas presentes,
passadas e futuras . . .

rasgo entranhas em troca de um pouco de ópio e verdade
rasgo o véu translúcido do tempo que escorre
rasgo a própria veste da vergonha na cara.

restaria ainda a velha ordem de roma
do rei e suas vestes perecíveis
dos ratos e suas afiadas presas . . .

não resistisse essa rara vergonha
corroído estaria o meu coração
não restasse essa alma que sonha
restaria apenas um corpo no chão.

aquilo que passa
como enxurrada de verão
não volta com o tempo
não se repete da mesma forma
não se clona ou reproduz.

depois de nós
haverão muitos
[aventureiros do tempo]
evocando os mesmos gestos
que outrora fizemos
entoando as mesmas notas
da política e das verdades inventadas.

há porém um tempo
além do próprio tempo
em que zeus escapa
da boca terrível de seu pai

onde o que foi não veio,
não virá e não vai.
é o tempo do centro da roda
do eterno indizível
do véu do santíssimo
do chifre de moisés
das tábuas da lei
da voz de Elohim
e El Shadai.

willian berger

11/03/2010

horrores do espírito santo (I)

A matéria abaixo, embora curta, provocou uma certa agitação no Espírito Santo, principalmente entre as entidades e as pessoas ligadas aos movimentos sociais e aos direitos humanos. O texto é de autoria do jornalista Elio Gaspari e aborda a importante reunião que haverá em Genebra, entre representantes da ONU e dos direitos humanos do ES, para tratar da deprimente e desumana situação em que se encontram os presídios do Espírito Santo.

Um verdadeiro espetáculo de horrores, do qual tivemos uma amostra na excelente, embora chocante, reportagem da TV Record, que foi exibida na segunda-feira à noite - provavelmente também em função desse encontro em Genebra, na Suíça, que certamente contribuirá para desnudar ainda mais a situação de desmando, de descaso e corrupção que ainda contamina, e muito, as instituições do Estado.
A Comissão de Direitos Humanos do ES teve que recorrer à ONU, já que não conseguiu resolver, nem no âmbito estadual nem no federal, a trágica e assustadora situação dos presídios capixabas. Esse envolvimento da ONU certamente denigre não apenas a imagem do Espírito Santo como do próprio país.

Em dezembro de 2008, por ocasião da deflagração da Operação Naufrágio, a Polícia Federal, após demoradas e cuidadosas investigações e seguindo determinação do STJ, prendeu três desembargadores e o próprio presidente do Tribunal de Justiça do ES - fato histórico, como nunca antes tinha acontecido neste país, parodiando o presidente Lula.
Na ocasião, alguns analistas mais sérios entenderam que, além de conivente ou omisso para com os descalabros de políticos, desembargadores, conselheiros do Tribunal de Contas e demais autoridades investidas pelo povo, o governo Hartung foi de certa forma responsável por esse mesmo descalabro e degradação das instituições.

Isso, a partir do momento em que estabeleceu relações de favorecimento e pressão em relação aos membros dos poderes Legislativo e Judiciário, num projeto explícito de governar praticamente sem nenhuma oposição, quase que de forma imperial – aliás, nos meios capixabas mais esclarecidos e engajados o governador Hartung é chamado exatamente de “O Imperador”.

Enfim, com a Operação Naufrágio - que ainda está nos seus desdobramentos judiciais, com a possível e breve instauração de ação penal contra 26 envolvidos – e com esse envolvimento da ONU na questão dos presídios, fica ainda mais patente que o governo Paulo Hartung, ao contrário daquilo que alardeia em suas peças publicitárias, poucas transformações promoveu naqueles aspectos que mais afetam a população: segurança, saúde, educação e, principalmente, cidadania e transparência na governança.
E isso tudo, apesar do verdadeiro presente que recebeu do governo Lula, logo no início do mandato de ambos, em 2002, a saber, a antecipação do pagamento dos royalties do petróleo produzido pela Petrobras em áreas do estado.

Pena que o governo Lula, e o seu braço político local, o PT do Espírito Santo, não tenham sabido ou conseguido condicionar o presente ao ‘Imperador’ com exigências de um governo mais comprometido com as questões sociais e de cidadania e, nessa terrível questão dos presídios, com no mínimo um governo mais humano.

Na verdade, bem que algumas correntes mais combativas do Partido tentaram fazer essas exigências, mas inteligentemente Hartung atraiu para seu projeto de poder a corrente majoritária do PT/ES, chefiada pelo atual prefeito de Vitória, João Coser, que nenhuma contestação tem feito às práticas de Hartung, como se ele, Coser, não fosse no ES a liderança que tem o maior controle do Partido do atual Presidente da República, como se ele, Coser, não fosse o aliado preferencial de Hartung para a próxima eleição a governador.

Parece que inclusive já está praticamente acertado que o PT irá indicar o vice-prefeito para compor chapa com o candidato de Hartung, Ricardo Ferraço – no Encontro Estadual que irá definir se o Partido lança candidato próprio, ou se apóia candidato de outro partido, tem-se como quase certo que as correntes contrárias à aliança com Hartung serão derrotadas pelos submissos e iludidos delegados ligados a Coser, que estarão em esmagadora maioria.

Claro que toda essa movimentação de Coser e de seu grupo político em direção a Hartung naturalmente que conta com o apoio, e talvez até com a exigência da direção nacional do PT, que visa em primeiro lugar um palanque forte no ES para a candidatura Dilma; claro que temos que ser realistas e levar em conta a necessidade dessas articulações em nome de um projeto maior para o país.

Mas o problema está no grau das concessões que o PT precisa fazer nessas alianças em nome desse projeto maior. E, no caso do ES, é lamentável vermos o governo federal conceder tanto a Hartung e, covardemente, o seu Partido não exigir a contrapartida em termos de um governo mais transparente, democrático e humanizado. E, particularmente no caso da situação dos presídios, é muito triste e desalentador testemunhar a corrente majoritária do PT/ES, capitaneada pelo Sr. Coser, calar-se perante a barbárie que o governo Paulo Hartung vem perpetrando contra a população carcerária do ES.
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Ainda a respeito do texto de Elio Gaspari vale um registro interessante: ‘A Tribuna’ é um jornal de Vitória, capital do ES, um jornal até que simpático, despretensioso e bem feito, e que publica todos os domingos a coluna do referido jornalista. Só que neste domingo, 07/03, dia em que o texto de Gaspari foi publicado em inúmeros jornais do país, coincidentemente a coluna não foi publicada n’ A Tribuna.
Por esse bizarro mas nada inocente episódio, em pleno século XXI e num dos estados da região sudeste, percebe-se a descarada natureza das relações entre imprensa e poder executivo dentro do estado capitalista.

Por outro lado, e suavizando um pouco a suspeita contra o jornal, nesse mal disfarçado episódio de auto-censura, circula pela internet a versão de que foi o próprio Gaspari quem teria solicitado a não-publicação de seu artigo. Isso, se verdade, seria ainda mais preocupante, afinal provaria o temor ou a influência que um governador de um pequeno estado exerce, mesmo à distância, num dos jornalistas de maior renome no país. Coisas do estado capitalista e de suas obscuras redes de poder.

E, a propósito do horror instalado nos presídios capixabas, recomendamos acessar o site da TV Record, para ler ou assistir a reportagem do dia 08/03/2010. Num texto a ser publicado em breve tentaremos dar uma pálida idéia dessa realidade chocante, crua e competentemente mostrada pela reportagem.

horrores do espírito santo II

O economista bem educado governa no ES um sistema prisional que envergonharia o soba do Uzbequistão, escreve Elio Gaspari, jornalista, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 07-03-2010.Eis o artigo.
As masmorras de Hartung aparecerão na ONU
Elio Gaspari
Na próxima segunda-feira, dia 15, o governador Paulo Hartung (PMDB-ES) tem um encontro marcado com o infortúnio. Depois de anos de negaças, o caso das "masmorras capixabas" será discutido em Genebra, num painel paralelo à reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Hartung tem 52 anos, um diploma de economista e a biografia de um novo tipo de político. Esteve entre os reorganizadores do movimento estudantil no ocaso da ditadura. Filiou-se ao PSDB, ocupou uma diretoria do BNDES, elegeu-se deputado estadual, federal, e senador.Na reunião de Genebra estará disponível um "dossiê sobre a situação prisional do Espírito Santo". Tem umas 30 páginas e oito fotografias que ficarão cravadas na história da administração de Hartung. Elas mostram os corpos esquartejados de três presos. Um, numa lata. Outro em caixas e uma cabeça dentro de um saco de plástico.
Todos esses crimes ocorreram durante sua administração. Desde a denúncia da fervura de presos no Uzbequistão o mundo não vê coisa parecida.As "masmorras capixabas" são antigas, mas a denúncia teve que ser levada à ONU porque as organizações de defesa dos direitos humanos não conseguem providências do governo do Espírito Santo, nem do comissariado de eventos de Nosso Guia. Sérgio Salomão Checaira, presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, demitiu-se em agosto do ano passado porque não teve apoio do Ministério da Justiça para reverter o quadro das prisões de Hartung.
Há um mês, uma comitiva que visitava o presídio feminino de Tucum (630 presas numa instituição onde há 150 vagas) foi convidada a deixar o prédio. Se quisessem, poderiam conversar com as prisioneiras pelas janelas.O Espírito Santo tem 7.000 presos espalhados em 26 cadeias, com uma superlotação de 1.800 pessoas. Há detentos guardados em contêineres sem banheiro (equipamento apelidado de "micro-ondas"). Celas projetadas para 36 presos são ocupadas por 235 desgraçados. Alguns deles ficam algemados pelos pés em salas e corredores.
Os governantes tendem a achar que os problemas vêm de seus antecessores, que as soluções demoram e que, em certos casos, não há o que fazer. Esquecem-se que têm biografias.

09/03/2010

carta

eu sim - mas a estrela da tarde que subia e descia o céu
[cansada e esquecida?
mas os pobres, batendo às portas, sem resultado, pregando a noite
[e o dia com seu punho seco?
mas as crianças, que gritavam de coração alarmado: "por que
[ninguém nos responde?"
mas os caminhos, mas os caminhos vazios, com suas mãos
[estendidas à toa?
mas o santo imóvel, deixando as coisas continuarem seu rumo?
e as músicas dentro de caixas, suspirando de asas fechadas?

ah! - eu, sim - porque já chorei tudo, e despi meu corpo
[usado e triste
e as minhas lágrimas o lavaram, e o silêncio da noite o enxugou.
mas os mortos, que dentro do chão sonhavam com pombos leves
[e flores claras
mas os que no meio do mar pensavam na mensagem que a praia
desenrolaria rapidamente até seus dedos...
mas os que adormeceram, de tão excessiva vigília - e eu não sei
[mais se acordarão...
e os que morreram de tanta espera... - e que nem sei se foram
[salvos...

eu, sim. mas tudo isso, todos esses olhos postados em ti, no alto
[da vida
não sei se te olharão como eu
renascida de mim, e desprovida de vinganças
no dia em que precisares de perdão

cecília meirelles
******************
Em Carta, Cecília Meirelles se assume como porta-voz da fragilidade e da precariedade, não apenas do humano, mas de toda e qualquer realidade finita.
Mas essa sua rebeldia e acusação contra o Infinito, provocada exatamente pela sua compaixão pelo finito, deve ser lida como uma celebração tanto do finito quanto do Infinito, tanto do Eterno quanto do provisório - se bem que uma celebração negativa, é verdade.

Pois ao perceber (e se comover com) o secreto lamento e perplexidade das coisas, Cecília no fundo o que faz é um impressionante inventário do colorido e da diversidade, da palpitação e da delicadeza que habita no mundo que é ofertada pelo Infinito - ou riqueza na qual o Ser se desdobra. São tantas criaturas, são tantos inatantes, frutos pendentes da árvore. E o único que pode ter olhos e compaixão para todos eles é exatamente o fruto humano.

Donde se pode entender que, ao fazer a sua acusação, a poeta está apenas cumprindo-se como olhos do divino, pois na fala da poeta é o próprio Infinito que fala, é o Infinito que, transmutado no finito humano, testemunha seus próprios desdobramentos, os seus quase infinitos entes - ou sua criação, para quem preferir.
É o Infinito, a Fonte, Deus, o Ser, a Presença, quem, através do poético e profundo olhar humano, permite a esse mesmo humano perceber as falhas, os limites que ainda existem e sempre existirão no meio do mundo.

E no processo de nos permitir esse olhar, o mesmo Infinito também nos insinua, ou nos abre a possibilidade, ou nos coloca a tarefa de, enquanto frutos privilegiado que somos, realizarmos uma intervenção e uma participação generosas, cuidadosas, praticarmos um real envolvimento na transformação e no aperfeiçoamento da criação, do mundo, dos entes e, por conseqüência, do próprio Infinito, do próprio Espírito.
Afinal, se como diz Hegel o Espírito negou-se a si mesmo para se cumprir como Natureza, como finito e imperfeito, nada mais lógico que convoque suas criaturas privilegiadas para ajudarem-no a se aperfeiçoar, para colaborarem, co-operarem no sentido de que o Espírito retorne a si mesmo. Ou para quem preferir a Bíblia: “Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto ato o presente dia” (Romanos, 8-22).

E neste processo de co-operarem no retorno do Espírito a si mesmo, o finito que somos nós estará se alçando a um nível mais elevado de compreensão e vivência, estaremos nos tornando de fato parte, centelha do Espírito.
É neste sentido que o poema-acusação de Cecília pode ser lido como uma singela, entre milhares, co-operação no sentido de continuarmos o difícil e fascinante parto da criação.

orvalho

ORVALHO. e eu estava deitado contigo, ó tu
no meio do lixo
enquanto uma lua suja
nos lançava respostas

nós nos esmigalhamos separando
e novamente embolamos num só:

o Senhor partiu o pão
o pão partiu o Senhor


paul celan
(fiaposóis, ed. tempo brasileiro, 1985) ********************* Celan, novamente radical, novamente visceral. Se no poema anterior, Cecília advoga em nome de coisas inanimadas e movimentos variegados, Celan o faz em nome do próprio homem, aponta o dedo para o ‘Senhor’ em razão de sua imperícia em providenciar algo tão básico: suprir de pão àqueles a quem ofereceu tanto.

Afinal, haveria uma insanável contradição ontológica entre oferecer o mundo, a beleza, o existir, e principalmente fazer do homem os olhos do divino, centelha do Espírito, e ao mesmo tempo não dar ao homem - ou pelo menos não dar a todos os homens - as condições concretas para fruir adequadamente de tudo isso e, principalmente, para se cumprir enquanto tarefa, enquanto partícipe do parto da criação.

Se a distante estrela de Cecília se acha cansada de sua própria e vasta órbita pelo cosmos, esquecida dos homens e pelos homens, aqui, até a nossa vizinha lua é suja, encardida, e não responde com brilhos e inspiração a poetas embevecidos; afinal o que a lua testemunha é por demais sórdido, na visão do poeta.

E se Cecília faz breve menção aos pobres com o seu punhos secos a exigir o pão que não lhes chega, Celan faz dessa ausência de pão o motivo central de seu cortante e breve poema-acusação. Não faz um vibrante inventário dos existentes, escolhe como cenário de sua acusação tão somente o lixo, os detritos, o resto, os escolhos da humanidade.

Para ele, o que há para observar é o conflito pelo pão, que ‘esmigalha e embola’ os homens. O pão ‘partido pelo Senhor’ não dá para todos. E assim a luta pelo pão divide a humanidade e negaria o caráter de sagrado do mundo, ‘parte o Senhor’ ao meio.




de profundis


[...] “De profundis. Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes dentro de mim? Por que me fizeste separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites, ajudai-me, eu só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meu dedos e encaminha-se para a morte serenamente e eu nada posso fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto que passa, sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não saberei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco e o que me resta para viver no entanto continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim? Que não sou nada, dai-me o que preciso. Deus dai-me o que preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas, vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver em lagrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxilio que eu não tenho pecados, das profundezas chamo por vós e nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, Deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou nada,das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós”.

Clarice Lispector
(perto do coração selvagem, 1944)
**********************
Um impressionante canto vindo das profundezas de um coração. Comovente apelo de uma consciência desolada, fragmentada, em busca da unidade perdida. É o brado de um ente finito querendo se aconchegar novamente no Infinito.
Esse trecho da famosa obra de Clarice Lispector é baseado no não menos famoso Salmo 130.

Mas aqui é claramente um brado desesperado, um lamento que se sabe fadado ao fracasso. Um lamento próprio do poeta ocidental, que se sente desgarrado da Fonte, do todo, que foi levado pela História e pela Razão à orgulhosa condição ter que se distanciar do Ser e do Sagrado para melhor se exercer como instrumento da Arte e da Razão, e para essa mesma Razão melhor exercer o seu domínio sobre o Real.

Por isso talvez seja ainda mais comovente do que o salmo original. Comove o tom cru, bruto, com que a autora reconhece seu desespero e seu desgarramento. Ou por outra, com base nos termos que vimos usando até agora: comove a forma com que o Espírito manifesta-se através do Verbo, ao testemunhar o desamparo e a perplexidade de um de seus frutos privilegiados.

No limite, é o lamento do próprio Espírito, já aquele que lamenta, o homem, é a voz do Infinito no tempo e no mundo terreno, já que o Infinito celebra e apreende a si próprio através do singular ser finito que é o homem, através do olhar humano.. Somente o homem pode lamentar assim a dor da separação, o desamparo de estar só, desgarrado da própria Fonte. Às coisas e aos animais não é dado esse atributo.

O que está expresso, então, nessa admirável manifestação do Verbo é muito mais do que aquela condição de ateu arrependido e saudosista, própria do poeta ocidental, abordada ao falarmos do poema de Ernesto.
Do que trata é de saudade e do anseio do finito pelo Infinito e do próprio. Infinito por si mesmo. Do que se trata é da manifestação do próprio Infinito através do Verbo, da palavra forjada pelos homens. Palavra que ao ser criada teve como um de seus fundamentos também a apreensão e celebração do Mistério, e não apenas a mera comunicação e interação entre os homens ou um mero domínio do Real.

Nessa linha, tanto quanto os cânticos, a música e a oração, um poema é em última instância mais um momento de apreensão e celebração do Mistério, da Presença, da Fonte – seja ele um poema canto vívido e colorido, um brado indignado e humanista, seja ele um tocante e profundo lamento como este de Clarice.

tu, escuridão


tu, escuridão da qual descendo
de ti gosto mais que da labareda:
ela reduz
o mundo em que reluz
a uma espécie de círculo
fora do qual nenhum ser a conhece.

já a escuridão, em si tudo contém:
formas e flamas e animais, e eu
- assim como também ela reúne
pessoas e potências...

e pode ser isto: uma grande força
a se mover nos subúrbios de mim...

acredito nas noites.

rainer rilke
(livro de horas, ed. civilização brasileira, 1994)
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Poderíamos adequadamente encerrar com este poema de Clarice, e com essa identificação entre Palavra e Infinito, entre Verbo e Mistério, poema e oração.
Mas deixemos que Rilke feche este cortejo de poemas para Deus, de Deus, contra Deus.
O seu poema é um sereno, mas não menos profundo, cântico ao obscuro, ao inominado, ao informe, ao nada, às trevas.
Pareceria uma contradição fechar com um cântico ao nada, se até aqui viemos falando de Luz, Olhar, Forma, Ser, Presença.

Mas este poema de Rilke faz lembrar que o Ser somente se sustenta em relação ao Nada, em combate ao Não-Ser: o Universo se expande rumo ao intocado, o Cosmos cresce exatamente ocupando o Vácuo, ou por outra, a Criação, que ainda geme as dores do parto, só pode se parir em meio ao Grande Útero do Vazio. Tudo o que o Mistério foi, é e vier a ser somente pode se dar num cenário cercado de Nada, de Obscuro.

São então duas faces da mesma realidade: de um lado a ameaça do Nada a rondar e espreitar o Ser, o Cosmos; de outro, uma espécie de comunhão entre o Ser e Nada, entre Criação e Vazio, ente Cosmos e Escuridão: a Criação precisa do Vazio para parir, o Cosmos precisa da Escuridão para se intumescer, o Nada atrai o Ser para que este o preencha.

Mas deixando de lado a metafísica: o poema de Rilke é uma celebração àquilo que ainda não é mas que será penetrado pelo Ser, e ao mesmo àquilo que oferece ao Ser a possibilidade de vir a ser, de se fazer Presença e Mistério.
E o poema de Rilke, como de resto qualquer poema, não deixa de ser ele próprio um vir a ser, uma nova presença no informe, no nada daquilo que ainda não era, uma nova manifestação do Infinito através de seu finito sentinela no mundo, o homem.
E Rilke, ao dar vazão ao seu testemunho, serenamente celebra e ‘acredita’ nesta vasta ‘noite’ que chamamos de Infinito e Finito, Ser e Nada, Cosmos e Vazio, Vida e Morte.